Opinião
- 14 de outubro de 2020
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Como lidar com a incerteza – de "saber tudo" para "entender um pouco"
Por Alister McGrath
A década de 1960 agora parece um sonho distante – um momento desbotado na história cultural imbuído de um otimismo e idealismo generalizados, cuja resiliência intelectual na época foi dada por uma crença de que as grandes questões da vida poderiam ser resolvidas de forma definitiva e inequívoca pelo Positivismo Lógico direto e sem bobagens de A. J. Ayer, ou as totalizações da ideologia marxista.
Eu pensava que estava à beira de uma nova era de clareza e certeza, mas na verdade, era simplesmente uma época de novos e breves dogmas da moda que eram tão efêmeros quanto aqueles que foram substituídos.
Eu ansiava por uma verdade simples naquela época, resistindo a qualquer reconhecimento de complexidade. Eu estava buscando um relato objetivo e universal do nosso mundo, independente do lugar e do tempo, acreditando que as ciências naturais e a razão humana, individual ou colaborativa, eram capazes de trazer essa verdade racional segura e convincente.
De fato, por um tempo eu acreditei que tinha encontrado, antes de gradualmente perceber, em um processo de desilusão, não apenas que eu tinha falhado em encontrar este Nirvana racional, mas que ele nem mesmo estava lá para ser encontrado.
E a filosofia, que, alguns sugerem, oferece respostas completas e confiáveis para as grandes perguntas da vida? Apesar dos bem-vindos momentos de transparência racional, nosso mundo parece frustrantemente resistente ao domínio intelectual total. Embora a filosofia nos ofereça uma gama impressionante e envolvente de possibilidades intelectuais, não há evidências persuasivas de que tenha resolvido decisivamente qualquer uma das grandes questões da vida.
Podemos certamente tomar e defender posições comprometidas sobre essas questões, mas estas devem ser vistas como opiniões e julgamentos, e não como conhecimento seguro.
A história cultural da filosofia revela como o raciocínio humano tem sido moldado por seus contextos históricos e culturais, sugerindo que suas soluções podem ser transitórias e locais, em vez de permanentes e universais. Até recentemente, a filosofia europeia tem sido fortemente etnocêntrica e monopolista, tratando filosofias chinesas e indianas com uma condescendência arrogante.
Rompendo com a ambição universal da já passada “Era da Razão” ocidental, é agora amplamente admitido que precisamos falar de “filosofia comparada”, reconhecendo como métodos filosóficos e suposições (incluindo as do Iluminismo) são moldados por seus contextos culturais e históricos.
Embora a filosofia nos ofereça uma gama impressionante e envolvente de possibilidades intelectuais, não há evidências persuasivas de que tenha resolvido decisivamente qualquer uma das grandes questões da vida.
Felizmente, muitos filósofos estão agora atentos a essas percepções mutáveis da relação entre filosofia e seus contextos culturais instáveis e não fixos. Mary Midgley, uma das mais interessantes desse grupo de filósofos historicamente e culturalmente iluminados, claramente apreciava os pontos fortes e os limites do empreendimento filosófico à luz de tal atenção cultural e histórica.
Nós filosofamos em meio a um mundo em mudança, e nossas filosofias nunca podem ser consideradas definitivas ou finais. Filosofar, na verdade, não é uma questão de resolver um conjunto fixo de quebra-cabeças. Em vez disso, envolve encontrar as muitas maneiras particulares de pensar que serão as mais úteis à medida que tentamos explorar este mundo em constante mudança. Porque o mundo – incluindo a vida humana – muda constantemente; pensamentos filosóficos nunca são definitivos. Seu objetivo é sempre nos ajudar a superar a dificuldade atual.
Dada a vulnerabilidade de nossas respostas vacilantes e frágeis às perguntas últimas da vida, como lidar com essa incerteza? Afinal, não somos máquinas de calcular lógicas, mas criaturas que perceberam a importância da intuição e das emoções em nos ajudar a tomar decisões sobre nossas identidades, aspirações e verdadeiro significado.
Os algoritmos mecânicos racionais do Iluminismo – tão brilhantemente parodiados no Guia do Mochileiro das Galáxias, de Douglas Adams – podem oferecer apenas respostas lógicas ou matemáticas inadequadas (e muitas vezes incompreensíveis) para o que são questões fundamentalmente existenciais, mas são muitas vezes colocadas como se fossem questões lógicas ou científicas.
A fé religiosa, vista pelos racionalistas dogmáticos como uma violação da razão humana, é melhor vista como ilustrando o dilema racional que todos nós enfrentamos na tentativa de entender as coisas. A fé é uma rejeição da ilusão racionalista de que podemos ter conhecimento claro e seguro das respostas às perguntas definitivas sobre nosso significado, valor e propósito.
Talvez fosse possível acreditar que essas grandes perguntas poderiam ser definitivamente respondidas por um apelo a provas convincentes ou esmagadoras; no entanto, a discussão seguiu em frente, e devemos deixar tais ilusões para trás.
Podemos dar respostas que acreditamos ser justificadas e avalizadas, mas não podemos provar que são certas e confiáveis, mesmo que acreditemos que são. A fé é uma disposição, até mesmo uma determinação, de lidar com este mundo apenas “meio” iluminado, acreditando com nossas mentes e confiando em nossos corações que podemos encontrar boas respostas para nossas perguntas, enquanto tentadoramente sabemos que não podemos provar que elas são verdadeiras.
A fé é uma rejeição da ilusão racionalista de que podemos ter conhecimento claro e seguro das respostas às perguntas definitivas sobre nosso significado, valor e propósito.
Há, de fato, uma única faculdade humana chamada razão; no entanto, ela dá origem a múltiplas racionalidades. Há muitas maneiras pelas quais os seres humanos podem ser racionais, uma das quais é a abordagem monopolista associada à Era da Razão; outra é a distinta racionalidade da fé cristã.
Os primeiros escritores cristãos reafirmavam constantemente que sua fé era logikos: racional, no sentido de corresponder a uma profunda compreensão das verdades fundamentais sobre nossa situação dentro de uma ordem maior das coisas. Mas essas verdades profundas são melhor entendidas como sabedoria e não como conhecimento, na medida em que nos permitem viver significativamente em um mundo complexo, lidando com o sofrimento humano, vulnerabilidade, trauma e fracasso.
A sabedoria, no entanto, não é um conjunto de ideias abstratas, mas algo que é melhor compreendido através de exemplares – seres humanos vivos que são vistos como personificação dessas ideias, e são capazes de expressá-las na prática. Aprendemos o que significa ser bom, fiel e carinhoso através de encontros com pessoas que exemplificam essas qualidades e evocam tanto admiração de nossa parte quanto um desejo de emulá-las.
O cristianismo fala da personificação da sabedoria e da bondade em Jesus Cristo, usando a linguagem da “encarnação” para expressar a crença central de que Cristo se manifesta e corporifica a sabedoria divina, enquanto, no entanto, enfrente rejeição, sofrimento e crucificação.
Cristo exemplifica, encarna e torna possível a capacidade cristã de lidar com a falta de sentido, incoerência, incerteza e tragédia. Parte do discipulado cristão é o desenvolvimento da “mente de Cristo” (1 Coríntios 2:16), um hábito de pensamento e raciocínio que nos permite cultivar resiliência diante dos enigmas e traumas da vida.
O cristianismo não oferece apenas uma nova maneira de contemplar nosso mundo, mas uma capacidade aprimorada de viver dentro dele e de lidar com suas incertezas e complexidades, bem como nossa própria fragilidade e falhas. Ele nos permite confrontar relatos simplistas e rasos de nossa situação, como o racionalismo superficial do Iluminismo, ou o otimismo fácil de uma ideologia do “pensamento positivo”, que busca exorcizar qualquer reconhecimento dos aspectos mais sombrios e perturbadores da natureza humana ou da criação.
A realidade é complexa e ambivalente; a sabedoria exige que reconheçamos isso em vez de forçá-la a ser uniformemente simples e positiva. A violência intelectual é incapaz de suprimir essa verdade sombria sobre nosso mundo, que o cristianismo afirmou e enfrentou, em vez de implausivelmente nega-la.
A sabedoria é uma forma de conhecimento que se abstém de leituras simples e superficiais da realidade, impulsionadas por uma intolerância à incerteza. Ela exige uma profunda imersão nos paradoxos e problemas de viver em um mundo resistente a interpretações rápidas e fáceis.
Os “sábios” são aqueles que estão dispostos a adaptar seus padrões de pensamento e vida a este mundo complexo em vez de tentar forçar o mundo a se conformar com suas ideias preconcebidas. A sabedoria exige que respeitemos e abracemos ativamente um profundo mistério, algo que transcende os limites da compreensão humana.
G. K. Chesterton declarou que, reconhecendo algo como misterioso, todo o resto fica lúcido. Como Newton descobriu ao propor a ideia de gravidade, e os cristãos ao expressar a noção da Trindade, muitas vezes descobrimos que algo que não entendemos – e talvez nem possamos – nos permite entender todo o resto. Paradoxalmente, os mistérios têm uma notável capacidade de iluminar.
Nós, de fato, vemos através de um vidro escuro (1 Coríntios 13:12), sendo cativos à nossa capacidade limitada de contemplar e entender, e à fragilidade das verdades em que baseamos nossas vidas. É por isso que nos ligamos aos outros por companhia e solidariedade, agarrando-nos a uma visão de realidade e personificação da sabedoria, que por sua vez nos segura, encorajando-nos a sondar e descobrir suas profundezas e riquezas.
De alguma forma, as sombras do cosmos parecem mais suaves e suportáveis quando viajamos em companhia – e em esperança, sabendo que alguém caminhou por essa escuridão antes de nós, abrindo uma trilha que podemos seguir.
• Alister McGrath é um dos mais influentes pensadores cristãos da atualidade. Bioquímico, com pós-doutorado em biofísica molecular e doutorado em teologia, é professor de ciência e religião na Universidade de Oxford. É autor de vários livros, entre eles: C. S. Lewis, Richard Dawkins e o Sentido da Vida, Deus e Darwin, A Ciência de Deus, Como Lidar com a Dúvida e Teologia Pura e Simples e O Ajuste Fino do Universo. É presidente do Centro Oxford para Apologética Cristã.
• Alister McGrath é um dos mais influentes pensadores cristãos da atualidade. Bioquímico, com pós-doutorado em biofísica molecular e doutorado em teologia, é professor de ciência e religião na Universidade de Oxford. É autor de vários livros, entre eles: C. S. Lewis, Richard Dawkins e o Sentido da Vida, Deus e Darwin, A Ciência de Deus, Como Lidar com a Dúvida e Teologia Pura e Simples e O Ajuste Fino do Universo. É presidente do Centro Oxford para Apologética Cristã.
> Este é um trecho editado de “Through a Glass Darkly: Journeys through science, faith and doubt – a memoir” (Ed. Hodder & Stoughton, lançado em 3 de Setembro de 2020, ainda sem tradução em português) de Alister McGrath, Professor Andreas Idreos de Ciência e Religião na Universidade de Oxford.
> Reproduzido do site da Associação Brasileira Cristãos na Ciência. Publicado originalmente na Revista Church Times, em 28 de Agosto de 2020. Original aqui.
> Tradução: Tiago Garros
Leia mais
» Teologia natural: chegando ao Criador a partir da criação, por Alister McGrath
» C. S. Lewis e Richard Dawkins: o mais relutante dos convertidos e o ateu-celebridade
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