Opinião
- 05 de março de 2018
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Com amor, Vincent: um retrato que se move
Por Gladir Cabral
O poeta brasileiro Mário Quintana amava a arte de Van Gogh, por isso interrogou-se com graça: “Se não fosse o Van Gogh, o que seria do amarelo?” Discutindo sobre literatura e autobiografia em seu livro Porta Giratória (2014), a certa altura Quintana afirma: “Mas o que é que não é autobiográfico? Até uma tela... Entre nós, quantos pintores já não se pintaram, pensando que estavam pintando a ponte do riacho”.
Vincent van Gogh pintou muitas pontes e riachos ao longo da vida. Pintou também muitos autorretratos. Em cada um deles está indelevelmente pintado o desejo de vida, o amor pela arte, a insegurança em relação ao futuro e a angústia cotidiana. A quantidade de quadros que pintou é tão impressionante quanto o número de cartas que escreveu.
O filme Loving Vincent (Com Amor, Vincent), lançado em 2017, cujo título remete às cartas de Van Gogh, parece trazer certa ambiguidade proposital: por um lado, a expressão convencional com que o artista encerrava suas cartas; por outro, a indicação da capacidade de amar e da centralidade do amor na vida do pintor.
Vincent amava as pessoas e, longe de ser uma figura reclusa e isolada, era alguém que sempre tentou, seja pelos seus quadros, seja pela sua arte, seja pelo contato pessoal direto, alcançar as pessoas. Em uma de suas cartas, ele diz: “Quero tocar as pessoas com minha arte. Quero que elas digam: ‘Ele sente com profundidade, ele sente com ternura”.
O filme faz um belíssimo trabalho de tradução da obra de Van Gogh, das telas de pintura para as telas de cinema. A conexão entre as duas plataformas é fascinante. O exercício da tradução é desafiador. Os quadros de Van Gogh já são em si cheios de movimento, de cores vivas, de traços fortes, rápidos e carregados de emoção. Em seu quadro A Noite Estrelada, por exemplo, as estrelas, a lua e as nuvens parecem tremeluzir na tela. Os produtores do filme, sabiamente, amplificaram esse efeito.
O enredo do filme faz alusão a vários quadros famosos do pintor, que vão sendo costurados à história da busca, por parte de Armand Roulin, do mistério da vida de Van Gogh. Roulin é filho do carteiro e quer entregar a última carta escrita por Van Gogh ao seu irmão Theo. Assim, Armand vai visitando vários lugares por onde passou Van Gogh, a casa em que morou, a pensão em que se hospedou, os lugares em que transitou e retratou com sua arte. A metáfora da carta como anseio humano de comunicação aparece várias vezes na obra.
Participaram do filme certa de 100 artistas plásticos. O filme é todo pintado à mão e produzido quadro a quadro. Um trabalho artesanal, poético, como é a obra de Van Gogh, mas também um espetáculo de alta tecnologia de computação gráfica.
O enredo utiliza vários recursos dos contos policiais, a investigação do motivo para o suicídio ou assassinato de Van Gogh. Teria sido inveja de alguém? Teria sido depressão? Estaria ele ainda doente? Mas se estava doente, porque em sua carta Van Gogh afirma estar curado? Teria ele cometido suicídio ou foi assassinado? Teria se suicidado para deixar de ser um peso ao irmão? Esse tema polêmico já deu origem a muitos livros e teses entre os estudiosos do artista e contribui para provocar ainda mais a curiosidade da plateia. Até hoje, o mistério não foi solucionado.
O filme é excelente em sua proposta e técnica. No entanto, fico me perguntando até que ponto ele mostra o lado humano do artista ou corrobora para o mito do gênio incompreendido, um ser extraordinário, mas mentalmente perturbado. Considerando a vida turbulenta de Van Gogh, essa perspectiva é quase irresistível. Ao longo da vida, vendeu apenas um quadro. Após a morte, tornou-se figura fundante da arte moderna. Seus quadros hoje valem milhões.
Entretanto, os quadros e as cartas a Theo não falam de milhões em dinheiro, de riquezas e fortunas, mas do essencial, de amizade e do sentido da arte. Suas pinceladas são tão nervosas quanto é a vida na modernidade. Sua letra desenha uma pressa sinuosa no papel.
Em sua longa procura, Roulin vai tentando encontrar o verdadeiro Van Gogh, mas uma busca difícil, tensa. Van Gogh não está mais presente no quarto, na vila, na cidade, para explicar todas as questões não solucionadas. O que se pode saber do artista está agora nos quadros que pintou, nas cartas que escreveu.
Quintana estava certo, cada quadro de Van Gogh tem um pouco dele mesmo, de autobiografia. A casa amarela, o quarto, a tela, os campos de girassol, o céu estrelado, a igreja, o semeador, as aves têm em comum a mão que os pintou, os olhos que primeiramente os viram. Van Gogh estava certo: sua arte toca de fato na gente, a ponto de podermos dizer: “Ele sentiu a vida com profundidade. Ele sentiu a vida com ternura”.
>> Conheça o Museu Vincent Van Gogh
>> Veja os quadros de Van Gogh
>> Ouça a canção “Starry, Starry Night”, de Don McLean
Assista ao filme Loving Vincent!
Leia mais
Girassóis
A Arte e a Bíblia
A Arte Não Precisa de Justificativa
O poeta brasileiro Mário Quintana amava a arte de Van Gogh, por isso interrogou-se com graça: “Se não fosse o Van Gogh, o que seria do amarelo?” Discutindo sobre literatura e autobiografia em seu livro Porta Giratória (2014), a certa altura Quintana afirma: “Mas o que é que não é autobiográfico? Até uma tela... Entre nós, quantos pintores já não se pintaram, pensando que estavam pintando a ponte do riacho”.
Vincent van Gogh pintou muitas pontes e riachos ao longo da vida. Pintou também muitos autorretratos. Em cada um deles está indelevelmente pintado o desejo de vida, o amor pela arte, a insegurança em relação ao futuro e a angústia cotidiana. A quantidade de quadros que pintou é tão impressionante quanto o número de cartas que escreveu.
O filme Loving Vincent (Com Amor, Vincent), lançado em 2017, cujo título remete às cartas de Van Gogh, parece trazer certa ambiguidade proposital: por um lado, a expressão convencional com que o artista encerrava suas cartas; por outro, a indicação da capacidade de amar e da centralidade do amor na vida do pintor.
Vincent amava as pessoas e, longe de ser uma figura reclusa e isolada, era alguém que sempre tentou, seja pelos seus quadros, seja pela sua arte, seja pelo contato pessoal direto, alcançar as pessoas. Em uma de suas cartas, ele diz: “Quero tocar as pessoas com minha arte. Quero que elas digam: ‘Ele sente com profundidade, ele sente com ternura”.
O filme faz um belíssimo trabalho de tradução da obra de Van Gogh, das telas de pintura para as telas de cinema. A conexão entre as duas plataformas é fascinante. O exercício da tradução é desafiador. Os quadros de Van Gogh já são em si cheios de movimento, de cores vivas, de traços fortes, rápidos e carregados de emoção. Em seu quadro A Noite Estrelada, por exemplo, as estrelas, a lua e as nuvens parecem tremeluzir na tela. Os produtores do filme, sabiamente, amplificaram esse efeito.
O enredo do filme faz alusão a vários quadros famosos do pintor, que vão sendo costurados à história da busca, por parte de Armand Roulin, do mistério da vida de Van Gogh. Roulin é filho do carteiro e quer entregar a última carta escrita por Van Gogh ao seu irmão Theo. Assim, Armand vai visitando vários lugares por onde passou Van Gogh, a casa em que morou, a pensão em que se hospedou, os lugares em que transitou e retratou com sua arte. A metáfora da carta como anseio humano de comunicação aparece várias vezes na obra.
Participaram do filme certa de 100 artistas plásticos. O filme é todo pintado à mão e produzido quadro a quadro. Um trabalho artesanal, poético, como é a obra de Van Gogh, mas também um espetáculo de alta tecnologia de computação gráfica.
O enredo utiliza vários recursos dos contos policiais, a investigação do motivo para o suicídio ou assassinato de Van Gogh. Teria sido inveja de alguém? Teria sido depressão? Estaria ele ainda doente? Mas se estava doente, porque em sua carta Van Gogh afirma estar curado? Teria ele cometido suicídio ou foi assassinado? Teria se suicidado para deixar de ser um peso ao irmão? Esse tema polêmico já deu origem a muitos livros e teses entre os estudiosos do artista e contribui para provocar ainda mais a curiosidade da plateia. Até hoje, o mistério não foi solucionado.
O filme é excelente em sua proposta e técnica. No entanto, fico me perguntando até que ponto ele mostra o lado humano do artista ou corrobora para o mito do gênio incompreendido, um ser extraordinário, mas mentalmente perturbado. Considerando a vida turbulenta de Van Gogh, essa perspectiva é quase irresistível. Ao longo da vida, vendeu apenas um quadro. Após a morte, tornou-se figura fundante da arte moderna. Seus quadros hoje valem milhões.
Entretanto, os quadros e as cartas a Theo não falam de milhões em dinheiro, de riquezas e fortunas, mas do essencial, de amizade e do sentido da arte. Suas pinceladas são tão nervosas quanto é a vida na modernidade. Sua letra desenha uma pressa sinuosa no papel.
Em sua longa procura, Roulin vai tentando encontrar o verdadeiro Van Gogh, mas uma busca difícil, tensa. Van Gogh não está mais presente no quarto, na vila, na cidade, para explicar todas as questões não solucionadas. O que se pode saber do artista está agora nos quadros que pintou, nas cartas que escreveu.
Quintana estava certo, cada quadro de Van Gogh tem um pouco dele mesmo, de autobiografia. A casa amarela, o quarto, a tela, os campos de girassol, o céu estrelado, a igreja, o semeador, as aves têm em comum a mão que os pintou, os olhos que primeiramente os viram. Van Gogh estava certo: sua arte toca de fato na gente, a ponto de podermos dizer: “Ele sentiu a vida com profundidade. Ele sentiu a vida com ternura”.
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A Arte Não Precisa de Justificativa
É pastor, músico e professor de letras na Universidade do Extremo Sul Catarinense (Unesc). É autor, em parceria com João Leonel, do e-book O Menino e o Reino: meditações diárias para o Natal. Acompanhe o seu blog pessoal.
- Textos publicados: 13 [ver]
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Site: http://ultimato.com.br/sites/gladircabral/
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