Opinião
- 23 de maio de 2018
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Cinema: Paulo, apóstolo de Cristo
Por Carlos Caldas
Shaul, Saul, Saulo, Paulo de Tarso, Paulo. Dois nomes para uma só pessoa, um judeu benjaminita da diáspora, cidadão romano, caso raro de fariseu que não era da terra de Israel (cf. Fp 3.5). Seu nome hebraico – Shaul – é homenagem a Saul (a forma aportuguesada deste nome), o primeiro rei de Israel, o membro mais famoso da tribo de Benjamim. Saulo é a forma grega do hebraico Saul, e Paulo, o nome latino que escolheu após seu encontro absolutamente inesperado com Jesus de Nazaré. Quando resolve ser um missionário, isto é, um enviado para transmitir a todos que puder o anúncio do Messias, ele entende que teria mais facilidades se usasse um nome romano que um judeu. Há muito tem sido sugerido que a escolha do nome Paulo – Paulus em latim – seria por conta de sua estatura diminuta, pois em latim a palavra significa “pequeno”.
Paulo tornou-se o maior e mais famoso pregador e pensador do cristianismo. Mas ao contrário do que se diz no nível do senso comum, ele não sistematizou os ensinos de Jesus. Em Paulo, há qualquer coisa, menos sistematização. Seu pensamento, bastante complexo e denso, é livre, quase selvagem. Há um consenso entre os biblistas, de todas as tendências, que Paulo traduz a mensagem de Jesus para leitores e ouvintes do mundo greco-romano. Há 71 anos C. S. Lewis criticou a ideia de que Paulo teria distorcido o ensino de Jesus[1]. Fato é que Paulo, pela mencionada amplitude e profundidade de seu pensamento, nos últimos anos tem sido objeto da atenção de filósofos contemporâneos como o francês Alan Badiou, o italiano Giorgio Agamben e o esloveno Slavoj Žižek, para citar apenas alguns[2].
Paulo tem chamado a atenção de filósofos, evidentemente também de biblistas e teólogos sistemáticos, mas agora também de cineastas. É o caso do recente Paulo, Apóstolo de Cristo (2018), do jovem diretor estadunidense Andrew Hyatt. O filme contou com orçamento de apenas cinco milhões de dólares, pouquíssimo para os padrões de Hollywood. Apesar do orçamento econômico, a produção é bem feita. Quem está familiarizado com a leitura do Novo Testamento identificará que muitas das falas do filme são extraídas de várias das epístolas paulinas.
Na narrativa de Hyatt encontramos Paulo (James Faulkner, muito bem no papel) preso em Roma no ano 64 da era cristã, período em que o Imperador Nero utilizou os cristãos como bode expiatório pelo incêndio de Roma, e desferiu perseguição violenta contra eles. Lucas vai procura-lo, e lhe pede que conte sua história, pois, pensa ele, este relato servirá de inspiração para os cristãos perseguidos. Em Roma, Lucas se encontra com Priscila e Áquila, pois o casal oferece guarida a cristãos perseguidos e a órfãos romanos, fato atestado por diferentes historiadores. A propósito, Lucas é vivido por Jim Caviezel, que fez Jesus em A Paixão de Cristo (2004), de Mel Gibson. Caviezel é ainda um dos produtores do filme.
O fato de Lucas acompanhar Paulo até o final está de acordo com 2 Tm 4.11. De igual maneira, já no fim do filme Paulo manda entregar uma mensagem a Timóteo – certamente a segunda epístola, apontada por muitos biblistas como a última escrita por Paulo. Hyatt ficcionaliza uma situação que envolve o relacionamento de Paulo e Lucas com Maurício (Olivier Martinez, francês que, com um acentuado e muito forte sotaque, já na primeira fala “entrega” sua nacionalidade), o oficial romano encarregado do Cárcere Mamertina, apontado pela tradição como tendo sido o local da prisão do apóstolo.
Maurício enfrenta um drama familiar, e terá longas conversas com Paulo, a quem trata com amabilidade e gentileza. Os diálogos são ricos e inteligentes, e talvez sejam o ponto alto do filme, tanto os de Paulo com o romano Maurício, como também os de Paulo com Lucas. Hyatt apresenta sua compreensão de que o famoso “espinho na carne” (2 Co 12.7) de Paulo foi sua consciência pesada por conta de seu passado como perseguidor implacável e violento dos primeiros seguidores do Caminho (a primeira palavra usadas em Atos para se referir aos seguidores de Jesus). Até hoje ninguém sabe ao certo o que foi isto que Paulo sofreu. A interpretação de Hyatt, uma dentre tantas, é plausível.
O filme ficcionaliza também uma situação de tensão entre vingança e perdão, tema ético sempre difícil, e mostra Paulo ensinando que só há um caminho: o do amor.
Não será exagero afirmar que Paulo: Apóstolo de Cristo é um dos melhores filmes bíblicos dos últimos anos, nem tanto por ser uma produção grandiosa, mas pela maneira sensível, cuidadosa e fiel aos relatos bíblicos que seu roteiro relata. O filme não apresenta uma biografia de Paulo, mas a essência do seu compromisso existencial: o viver é Cristo, e o morrer é lucro.
Notas
[1] C. S. Lewis, A ética dos textos bíblicos. In: Ética para viver melhor. São Paulo: Pórtico, 2017.
[2] Quem quiser se aprofundar no tema poderá consultar, entre outras, Paul in the Grip of Philosophers: The Apostle and Continental Philosophy. Minneapolis: Fortress Press, 2013, editada por Peter Frick, de quem tenho a honra e a alegria de ser amigo!
Leia mais
» Lendo Romanos com John Stott
» Maria Madalena: O filme e o mito da prostituta
» Cinema e Fé Cristã – Vendo filmes com sabedoria e discernimento
Shaul, Saul, Saulo, Paulo de Tarso, Paulo. Dois nomes para uma só pessoa, um judeu benjaminita da diáspora, cidadão romano, caso raro de fariseu que não era da terra de Israel (cf. Fp 3.5). Seu nome hebraico – Shaul – é homenagem a Saul (a forma aportuguesada deste nome), o primeiro rei de Israel, o membro mais famoso da tribo de Benjamim. Saulo é a forma grega do hebraico Saul, e Paulo, o nome latino que escolheu após seu encontro absolutamente inesperado com Jesus de Nazaré. Quando resolve ser um missionário, isto é, um enviado para transmitir a todos que puder o anúncio do Messias, ele entende que teria mais facilidades se usasse um nome romano que um judeu. Há muito tem sido sugerido que a escolha do nome Paulo – Paulus em latim – seria por conta de sua estatura diminuta, pois em latim a palavra significa “pequeno”.
Paulo tornou-se o maior e mais famoso pregador e pensador do cristianismo. Mas ao contrário do que se diz no nível do senso comum, ele não sistematizou os ensinos de Jesus. Em Paulo, há qualquer coisa, menos sistematização. Seu pensamento, bastante complexo e denso, é livre, quase selvagem. Há um consenso entre os biblistas, de todas as tendências, que Paulo traduz a mensagem de Jesus para leitores e ouvintes do mundo greco-romano. Há 71 anos C. S. Lewis criticou a ideia de que Paulo teria distorcido o ensino de Jesus[1]. Fato é que Paulo, pela mencionada amplitude e profundidade de seu pensamento, nos últimos anos tem sido objeto da atenção de filósofos contemporâneos como o francês Alan Badiou, o italiano Giorgio Agamben e o esloveno Slavoj Žižek, para citar apenas alguns[2].
Paulo tem chamado a atenção de filósofos, evidentemente também de biblistas e teólogos sistemáticos, mas agora também de cineastas. É o caso do recente Paulo, Apóstolo de Cristo (2018), do jovem diretor estadunidense Andrew Hyatt. O filme contou com orçamento de apenas cinco milhões de dólares, pouquíssimo para os padrões de Hollywood. Apesar do orçamento econômico, a produção é bem feita. Quem está familiarizado com a leitura do Novo Testamento identificará que muitas das falas do filme são extraídas de várias das epístolas paulinas.
Na narrativa de Hyatt encontramos Paulo (James Faulkner, muito bem no papel) preso em Roma no ano 64 da era cristã, período em que o Imperador Nero utilizou os cristãos como bode expiatório pelo incêndio de Roma, e desferiu perseguição violenta contra eles. Lucas vai procura-lo, e lhe pede que conte sua história, pois, pensa ele, este relato servirá de inspiração para os cristãos perseguidos. Em Roma, Lucas se encontra com Priscila e Áquila, pois o casal oferece guarida a cristãos perseguidos e a órfãos romanos, fato atestado por diferentes historiadores. A propósito, Lucas é vivido por Jim Caviezel, que fez Jesus em A Paixão de Cristo (2004), de Mel Gibson. Caviezel é ainda um dos produtores do filme.
O fato de Lucas acompanhar Paulo até o final está de acordo com 2 Tm 4.11. De igual maneira, já no fim do filme Paulo manda entregar uma mensagem a Timóteo – certamente a segunda epístola, apontada por muitos biblistas como a última escrita por Paulo. Hyatt ficcionaliza uma situação que envolve o relacionamento de Paulo e Lucas com Maurício (Olivier Martinez, francês que, com um acentuado e muito forte sotaque, já na primeira fala “entrega” sua nacionalidade), o oficial romano encarregado do Cárcere Mamertina, apontado pela tradição como tendo sido o local da prisão do apóstolo.
Maurício enfrenta um drama familiar, e terá longas conversas com Paulo, a quem trata com amabilidade e gentileza. Os diálogos são ricos e inteligentes, e talvez sejam o ponto alto do filme, tanto os de Paulo com o romano Maurício, como também os de Paulo com Lucas. Hyatt apresenta sua compreensão de que o famoso “espinho na carne” (2 Co 12.7) de Paulo foi sua consciência pesada por conta de seu passado como perseguidor implacável e violento dos primeiros seguidores do Caminho (a primeira palavra usadas em Atos para se referir aos seguidores de Jesus). Até hoje ninguém sabe ao certo o que foi isto que Paulo sofreu. A interpretação de Hyatt, uma dentre tantas, é plausível.
O filme ficcionaliza também uma situação de tensão entre vingança e perdão, tema ético sempre difícil, e mostra Paulo ensinando que só há um caminho: o do amor.
Não será exagero afirmar que Paulo: Apóstolo de Cristo é um dos melhores filmes bíblicos dos últimos anos, nem tanto por ser uma produção grandiosa, mas pela maneira sensível, cuidadosa e fiel aos relatos bíblicos que seu roteiro relata. O filme não apresenta uma biografia de Paulo, mas a essência do seu compromisso existencial: o viver é Cristo, e o morrer é lucro.
Notas
[1] C. S. Lewis, A ética dos textos bíblicos. In: Ética para viver melhor. São Paulo: Pórtico, 2017.
[2] Quem quiser se aprofundar no tema poderá consultar, entre outras, Paul in the Grip of Philosophers: The Apostle and Continental Philosophy. Minneapolis: Fortress Press, 2013, editada por Peter Frick, de quem tenho a honra e a alegria de ser amigo!
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É professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da PUC Minas, onde coordena o GPRA – Grupo de Pesquisa Religião e Arte.
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