Opinião
- 23 de julho de 2009
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Caras, bocas e a poeira da vida diária
Bráulia Ribeiro
Há um tempo atrás, um rapaz olhando minha página do orkut, que aliás, quase nunca visito por absoluta falta de tempo, decidiu que deveria me difamar em nome de Deus, num blog. Agora vai ser mais fácil ainda porque também estou no Twitter e no Facebook... Difamar as pessoas tudo bem, este é um dos pecados mais antigos do homem depois da queda. Difamar em nome de Deus, então, é um hábito, quase uma obrigação religiosa. Na obrigação de “zelar” pelo bom nome do evangelho, procuramos honestamente trabalhar pelo mau nome de alguns infelizes, como algozes de uma santa inquisição evangélica. Porém, difamar em blog é um privilégio de nossos cyber-tempos.
Ao ver o blog difamatório, fiquei pasma. Não achei que seria um assunto de interesse das pessoas as comunidades do orkut que escolhi para pertencer. E pior, que isto poderia afetar o que as pessoas pensam do meu caráter. Ledo engano pensar que a música que escuto no carro vai deixar de ser elemento de discussão religiosa. Na doença do “celebridadismo” que sofremos, tudo é relevante. Basta assistir ao programa de fofocas da rede TV, da Band, ou da Globo; basta ver na revista Caras que a marca de cueca que o Gianechini usa é D&G e que a Xuxa só se banha com leite importado de algum lugar caríssimo.
O mundo evangélico poderia ser diferente, mas não é. Estamos em busca de uma transcendência absoluta. O líder religioso não é humano -- é semidivino; deve ser persona, personalidade. Deve demonstrar uma superioridade absoluta. Não pode se cansar, não pode “estar num mau dia” ou dolorido, ou amargo, ou num daqueles dias em que Deus se esconde na nuvem. Ele (ou ela, principalmente ela) tem que estar límpido, leve, divinamente inspirado em todo tempo, apresentar uma humildade distante e lustrosa, ser bonito, e, se for mulher, magra (o homem não precisa, mas a mulher tem que ter formas de violão, mesmo que seu objetivo não seja atrair ninguém sexualmente. Aliás, engordei muito ultimamente -- orem por mim). Ele tem que orar de forma impressionante, de preferência com efeitos especiais, tem que falar manso, não pensar em dinheiro nunca num extremo, senão, será mercenário e obcecado por prosperidade, mesmo que seja explorado em todos os eventos dos quais participa (e esta infelizmente é quase a regra). Pior ainda, no meio evangélico suas falas serão gravadas e vendidas sem que você tenha direito a nem uma merreca (porque não fazem assim com os cantores?) e quando ganhar oferta, na maioria das vezes será apenas o suficiente para o táxi de volta pra casa. As celebridades de Caras (preferia a B....s, quando existia) ganham para viver esta vida escancarada. As nossas, pagam pra isto.
Esta é a regra do mercado; esta é a demanda do público, plebe ignara, ovelhas encurraladas numa cerca de preconceitos e dogmas, feridas demais, cansadas demais, emburrecidas demais, carentes demais para pensar por si sós... Alguns compraram o pacote completo: cabresto e viseira. Ah, irmãos, me desculpem, mas não posso aceitar isto. Não creio que as pessoas não saibam que todos nós, mesmo os líderes, somos gente como qualquer outra gente. Gente de carne e osso, mais carne que osso muitas vezes... Temos nossos erros e acertos, pecados e perdões.
Lia Morin e Capra (que descobri pelo blog que são bruxos) quando fiz meu orkut, assim como li Yancey e Nouwen ontem, ambos cristãos (um batista e outro católico), não pela sua religião, mas pela sua lucidez. Hoje voltei aos crentes Mangalwadi e Ramachandra, mas, como quase ninguém os conhece, nem os menciono. Vão concluir que me converti ao hinduísmo... Não basta ser cristão para ser honesto, ou sábio, ou inteligente. Tem muito cristão escrevendo por aí cujo ensino não vale a folha de papel em que está escrito. Morin e Capra são filósofos -- um da pedagogia outro da física e da biologia, ambos tateando realidades com suas almas sedentas de Deus e de verdade; sede esta que não é exclusividade dos cristãos. Quem sabe, se ao tatear também, posso deparar-me com alguma verdade. A verdade de Deus é patente e manifesta no mundo para todos os que o buscam...
Escutei na voz de Damien Rice (que já enjoei) um desespero e uma angústia que eu precisava sentir para me comunicar de maneira compreensível com este mundo desesperado e angustiado. E também por gosto musical -- mas será que pode? Pode gostar-se mais de Clapton do que de Kleber, de Elis do que de Aline? Temos que ter direito ao gosto, pelo amor de Deus! Temos que ter o direito à vida, à arte, ao sublime, e não ser obrigados apenas a chafurdar no comercialismo gospel em nome de uma santidade que nem bíblica é...
Picasso disse que a arte tira do espírito a poeira da vida diária. Morro de medo quando vejo pintores evangélicos. Será que quando a arte da pintura evangélica se disseminar a ponto de dominar o mercado gospel ainda poderei ver beleza nos pescoços compridos das mulheres de Modgliani, no cubismo de Picasso, ou terei que negar-lhes a sublimidade de sua arte só porque um era bêbado e o outro mulherengo? Ai que medo deste totalitarismo religioso... Ai que medo de uma fé tão frágil, de uma religião tão obtusa e obcecada consigo mesma. Ai que medo de um povo tão grande, tão nobre, e, ao mesmo tempo tão pequeno e tão medíocre.
• Bráulia Ribeiro, missionária em Porto Velho, RO, é autora de Chamado Radical (Editora Ultimato). braulia.ribeiro@uol.com.br
Há um tempo atrás, um rapaz olhando minha página do orkut, que aliás, quase nunca visito por absoluta falta de tempo, decidiu que deveria me difamar em nome de Deus, num blog. Agora vai ser mais fácil ainda porque também estou no Twitter e no Facebook... Difamar as pessoas tudo bem, este é um dos pecados mais antigos do homem depois da queda. Difamar em nome de Deus, então, é um hábito, quase uma obrigação religiosa. Na obrigação de “zelar” pelo bom nome do evangelho, procuramos honestamente trabalhar pelo mau nome de alguns infelizes, como algozes de uma santa inquisição evangélica. Porém, difamar em blog é um privilégio de nossos cyber-tempos.
Ao ver o blog difamatório, fiquei pasma. Não achei que seria um assunto de interesse das pessoas as comunidades do orkut que escolhi para pertencer. E pior, que isto poderia afetar o que as pessoas pensam do meu caráter. Ledo engano pensar que a música que escuto no carro vai deixar de ser elemento de discussão religiosa. Na doença do “celebridadismo” que sofremos, tudo é relevante. Basta assistir ao programa de fofocas da rede TV, da Band, ou da Globo; basta ver na revista Caras que a marca de cueca que o Gianechini usa é D&G e que a Xuxa só se banha com leite importado de algum lugar caríssimo.
O mundo evangélico poderia ser diferente, mas não é. Estamos em busca de uma transcendência absoluta. O líder religioso não é humano -- é semidivino; deve ser persona, personalidade. Deve demonstrar uma superioridade absoluta. Não pode se cansar, não pode “estar num mau dia” ou dolorido, ou amargo, ou num daqueles dias em que Deus se esconde na nuvem. Ele (ou ela, principalmente ela) tem que estar límpido, leve, divinamente inspirado em todo tempo, apresentar uma humildade distante e lustrosa, ser bonito, e, se for mulher, magra (o homem não precisa, mas a mulher tem que ter formas de violão, mesmo que seu objetivo não seja atrair ninguém sexualmente. Aliás, engordei muito ultimamente -- orem por mim). Ele tem que orar de forma impressionante, de preferência com efeitos especiais, tem que falar manso, não pensar em dinheiro nunca num extremo, senão, será mercenário e obcecado por prosperidade, mesmo que seja explorado em todos os eventos dos quais participa (e esta infelizmente é quase a regra). Pior ainda, no meio evangélico suas falas serão gravadas e vendidas sem que você tenha direito a nem uma merreca (porque não fazem assim com os cantores?) e quando ganhar oferta, na maioria das vezes será apenas o suficiente para o táxi de volta pra casa. As celebridades de Caras (preferia a B....s, quando existia) ganham para viver esta vida escancarada. As nossas, pagam pra isto.
Esta é a regra do mercado; esta é a demanda do público, plebe ignara, ovelhas encurraladas numa cerca de preconceitos e dogmas, feridas demais, cansadas demais, emburrecidas demais, carentes demais para pensar por si sós... Alguns compraram o pacote completo: cabresto e viseira. Ah, irmãos, me desculpem, mas não posso aceitar isto. Não creio que as pessoas não saibam que todos nós, mesmo os líderes, somos gente como qualquer outra gente. Gente de carne e osso, mais carne que osso muitas vezes... Temos nossos erros e acertos, pecados e perdões.
Lia Morin e Capra (que descobri pelo blog que são bruxos) quando fiz meu orkut, assim como li Yancey e Nouwen ontem, ambos cristãos (um batista e outro católico), não pela sua religião, mas pela sua lucidez. Hoje voltei aos crentes Mangalwadi e Ramachandra, mas, como quase ninguém os conhece, nem os menciono. Vão concluir que me converti ao hinduísmo... Não basta ser cristão para ser honesto, ou sábio, ou inteligente. Tem muito cristão escrevendo por aí cujo ensino não vale a folha de papel em que está escrito. Morin e Capra são filósofos -- um da pedagogia outro da física e da biologia, ambos tateando realidades com suas almas sedentas de Deus e de verdade; sede esta que não é exclusividade dos cristãos. Quem sabe, se ao tatear também, posso deparar-me com alguma verdade. A verdade de Deus é patente e manifesta no mundo para todos os que o buscam...
Escutei na voz de Damien Rice (que já enjoei) um desespero e uma angústia que eu precisava sentir para me comunicar de maneira compreensível com este mundo desesperado e angustiado. E também por gosto musical -- mas será que pode? Pode gostar-se mais de Clapton do que de Kleber, de Elis do que de Aline? Temos que ter direito ao gosto, pelo amor de Deus! Temos que ter o direito à vida, à arte, ao sublime, e não ser obrigados apenas a chafurdar no comercialismo gospel em nome de uma santidade que nem bíblica é...
Picasso disse que a arte tira do espírito a poeira da vida diária. Morro de medo quando vejo pintores evangélicos. Será que quando a arte da pintura evangélica se disseminar a ponto de dominar o mercado gospel ainda poderei ver beleza nos pescoços compridos das mulheres de Modgliani, no cubismo de Picasso, ou terei que negar-lhes a sublimidade de sua arte só porque um era bêbado e o outro mulherengo? Ai que medo deste totalitarismo religioso... Ai que medo de uma fé tão frágil, de uma religião tão obtusa e obcecada consigo mesma. Ai que medo de um povo tão grande, tão nobre, e, ao mesmo tempo tão pequeno e tão medíocre.
• Bráulia Ribeiro, missionária em Porto Velho, RO, é autora de Chamado Radical (Editora Ultimato). braulia.ribeiro@uol.com.br
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