Opinião
- 27 de março de 2012
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Batendo à porta
As pretensões humanas à auto-suficiência e a sua constante tentativa de transpor limites naturais e legais tem ocupado a minha cabeça nas últimas semanas, e por isso volto a falar de Nárnia. O assunto parece óbvio, mas ele se impregna de tal forma no nosso dia a dia que só um C.S. Lewis e suas “Crônicas” para nos fazer enxergá-lo.
Podemos reconhecer esse esforço em várias histórias bíblicas – nas quais Lewis certamente se inspirou direta ou indiretamente – desde o Antigo Testamento: Jonas ultrapassou seu limite, quando se achou mais capaz de julgar Nínive do que Deus. Sansão achava que podia confiar em Dalila e revelar seu segredo. Ele passou do limite da boa-fé. O povo judeu se achava capaz de alcançar o Céu e construiu uma Torre, ultrapassando o limite do humano e sua linguagem. Caim se achava no direito de usurpar o favor divino, matando o seu irmão, que lhe parecia ser o predileto de Deus. Quase a mesma coisa acontece com os irmãos de José. Eles ultrapassaram o limite do ciúme e da inveja. Se voltarmos ao máximo na história, Adão e Eva achavam possível se tornar iguais a Deus por conta própria, o que é considerado o pecado original, e infringiram o limite dado por Deus quanto ao conhecimento do bem e do mal.
Os exemplos das “Crônicas” são numerosos: Em “O Leão, a Feiticeira e o Guarda-Roupa”, primeiro livro da série, Edmundo se acha no direito desrespeitar os irmãos, faz pouco caso de Lúcia e não aceita a correção do irmão mais velho. Ele ultrapassa o limite em direção à ambição quando concorda em entregar os irmãos em troca de prazeres e poder. Em “O Sobrinho do Mago”, Digory ultrapassa os limites da curiosidade e da experimentação. O livro todo trata de abusos que o homem comete no campo da ciência e do conhecimento. Em “O Cavalo de Seu Menino”, Aravis ultrapassa o limite do direito ao drogar a sua serva e forjar um bilhete. Em “O Peregrino”, Eustáquio ultrapassa vários limites, mas o principal é o da visão de mundo, que no seu caso é fundamentalmente egocêntrica e ensimesmada.
Não é para menos que os caminhos e as portas (do guarda-roupa, do estábulo, etc.) são imagens tão poderosas nas crônicas, pois têm esse potencial de delimitar terrenos e fronteiras, ao mesmo tempo em que podem abrir (e fechar) novas perspectivas e horizontes. Esses exemplos não servem apenas para nos entreter e divertir, mas também para, por um processo de analogia e identificação, nos conscientizarmos dos nossos próprios egocentrismos e esforços por independência.
Não precisamos ir tão longe à caça de exemplos. No cenário atual, a primavera árabe serviu (e ainda está servindo) para derrubar ditadores que se achavam iguais a Deus. Todas as guerras da humanidade giram em torno do poder, seja político, econômico ou social. Mais recentemente temos visto a guerra silenciosa dos que estão se armando secretamente com a bomba atômica. Temos ainda os esforços humanos por criar-se à sua própria imagem e semelhança, através da tecnologia robótica e genética.
De acordo com Dorothy L. Sayers, autora popular de livros filosófico-teológicos e amiga de C.S. Lewis, muito do desnorteamento moral entre os homens se dá pelo conflito entre dois sentidos de “lei”: a lei natural, que Deus colocou na natureza desde o início, e a lei arbitrária humana. Pensa-se muitas vezes que a lei divina é igual à lei dos homens a fim de relativizá-las.
Se a Bíblia diz “não matarás”, essa não é uma mera questão de opinião arbitrária, mas uma lei natural, cuja quebra trará consequências tão certas e sérias quanto a lei que diz que as coisas caem para baixo. Muitas pessoas não se dão conta de que a “lei moral” funciona quase da mesma forma que a natural.
Mas as pessoas insistem em dizer que a moral cristã repousae sobre “opiniões” e não sobre fatos. Lewis chamou essa lei de “Tao” e a explorou tanto em “Cristianismo Puro e Simples” quanto em “A Abolição do Homem”.
Longe de ser uma lei imposta, ela não tem nada a ver com legalismo, pois faz parte integrante do que chamamos de liberdade. Ou seja, quanto mais aderimos a essa lei, mais nos tornamos verdadeiramente livres.
A Bíblia diz que “quem quiser ganhar a sua vida, perdê-la-á; quem perder a sua vida ganhá-la-á”. A história da humanidade é uma história de busca atrás do que Lewis chamava de “alegria”, mas que, em última instância, é uma felicidade que só pode ser alcançada em Cristo. E todo cristianismo é uma história de abdicações e de entrega total como caminho para a verdadeira alegria, um dos mistérios mais difíceis de entender racional e emocionalmente. Na verdade, ela é um artigo de fé.
Feita essa entrega e tomada essa decisão, a porta estreita da felicidade, paradoxalmente, volta a se abrir. Como comenta George MacDonald, um dos autores que mais influenciaram Lewis em “O Grande Abismo”:
Só há duas espécies de pessoas no final: os que dizem a Deus, ‘Seja feita a Tua vontade’, e aqueles a quem Deus diz: A tua vontade seja feita. Todos os que estão no inferno foi porque o escolheram. Sem essa auto-escolha não haveria inferno. Alma alguma que desejar sincera e constantemente a alegria irá perdê-la. Os que buscam encontram. Para aqueles que batem a porta é aberta.”
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É mestre e doutora em educação (USP) e doutora em estudos da tradução (UFSC). É autora de O Senhor dos Anéis: da fantasia à ética e tradutora de Um Ano com C.S. Lewis e Deus em Questão. Costuma se identificar como missionária no mundo acadêmico. É criadora e editora do site www.cslewis.com.br
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