Opinião
- 14 de março de 2016
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Até os cachorrinhos
Há textos na Bíblia que nos desconcertam e levantam muitas perguntas, como o episódio do encontro de Jesus com a mulher siro-fenícia (Marcos 7.24-30). Por que Jesus se escondeu das pessoas nos arredores de Tiro e de Sidom? Por que Jesus aparentemente se recusou a atender o pedido da mulher e o faz em termos que soam duros? Por que Jesus usa essa comparação entre ‘filhos’ e ‘cachorrinhos’? Por que ele então acaba atendendo o pedido da mulher?
Sem a ambição de respondê-las de modo cabal em um breve artigo, damos boas vindas às perguntas que surgem em nosso encontro com a Palavra. Quando lemos algo que nos desafia, que talvez nos surpreenda, temos a oportunidade de rever se entendemos bem, de maneira simples, mas também profunda, algumas verdades essenciais do evangelho.
Puros e impuros
Aqui, como em muitas outras situações, o contexto nos ajuda bastante. No começo do capítulo sete vemos que os líderes dos fariseus questionavam a Jesus porque seus discípulos não seguiam certos rituais de pureza. Jesus de fato fazia muitas coisas que iam contra esses códigos: tocava leprosos e comia com os excluídos, ia até onde as pessoas estavam, tocava e se deixava tocar por qualquer um. O que seria pior, ao menos para os que o condenavam, ele curava e restaurava muitas dessas pessoas sem que elas tivessem que passar pelas estruturas e rituais formais do judaísmo. Com Jesus, os “puros” perdiam seu poder e controle sobre os “impuros”.
Anulando a Palavra de Deus
Quando questionado por esses professores da Lei, Jesus não contemporizou, nem aliviou, mas os confrontou, chamando-os de hipócritas (v. 6). Suas tradições, que eram interpretações que eles faziam dos mandamentos, com conteúdos e regras adicionados por eles mesmos, se convertiam em carga sobre as pessoas ou desculpas para fugir dos mandamentos da Palavra. Para Jesus, o que eles faziam era “anular a Palavra de Deus” (v. 13), o que não era aceitável e demandava esse confronto.
Ninguém entende...
Jesus então afirmou que o problema seria esperar que algo que vem de fora (a lei) pudesse mudar algo em nós internamente. Não é possível porque, segundo ele, já há algo danificado dentro de nós. A declaração de Jesus inverteu de ponta cabeça a lógica daqueles religiosos. O que nos torna impuros não é qualquer coisa que vem de fora, pois na verdade esse é um problema interno. Uma dificuldade: nem mesmo os discípulos entendiam o que Jesus queria dizer (v. 18). Eram os mesmos discípulos que pouco antes, com a mente embotada, também não entenderam um de seus milagres (6.52).
... Exceto uma mulher
Assim chegamos ao encontro de Jesus com a mulher siro-fenícia, um episódio que ilumina e esclarece, em meio à soberba e à falta de entendimento. A história é, ao contrário do que se poderia pensar, profundamente igualitária. Posição e status não valem nada aqui. Não adianta apresentar currículo. A fé não é questão de privilégio, nem de exclusividade. A fé é uma questão de nossa resposta à fidelidade de Deus.
Se, para Jesus, nosso problema é interno, então ninguém está livre do poder do pecado e é por isso que precisamos da salvação que ele oferece. Parece que a mulher grega (siro-fenícia) é a única pessoa nos Evangelhos quem dialoga com Jesus em seus próprios termos parabólicos. Jesus oferece uma parábola (uma comparação que parece vir em termos muito fortes). Ela responde a Jesus na mesma linha, também com uma parábola (v. 28). A mulher aceitou os termos humilhantes da parábola de Jesus e ofereceu a sua própria história/comparação/parábola: “Sim, Senhor, mas até os cachorrinhos, debaixo da mesa, comem das migalhas das crianças”. Imagino uma possível reação de Jesus: “Ei, finalmente, alguém entende minha língua! Até que enfim encontro alguém que consegue falar comigo do mesmo jeito que eu falo. Você me entende!”.
Essa história não tem nada a ver com preconceito e exclusão. Muito pelo contrário. Jesus havia questionado os que julgavam ter privilégios, os que aparentavam ser piedosos, mas na verdade não o eram, e se cansara até mesmo da falta de compreensão de seus discípulos. Ele, evitando estar com as multidões, possivelmente tenha mudado a estratégia para concentrar-se mais nesses mesmos discípulos que ainda precisavam entender. Então recebe a visita de uma mulher gentil e ‘impura’ (com uma filha endemoninhada). Sem deixar de ser coerente com sua história e missão, Jesus parece soar duro demais com a mulher. Ainda assim, o desenrolar dos fatos nos mostra que esse foi um encontro com alguém que conseguiu entender o evangelho da graça muito melhor que os fariseus religiosos ou que seus discípulos mais próximos já haviam conseguido captar.
Ela não considerou ou argumentou que fosse justo ou injusto, apropriado ou inapropriado, que ela pudesse ser vista ou mencionada como uma excluída, nesse momento, da ação salvadora de Jesus. Ela reconheceu a autoridade de Jesus (única vez nesse evangelho que alguém se dirige a Jesus chamando-o de Senhor). Ela admitiu que não tinha o direito (atenção: como ninguém o tem) de exigir a misericórdia de Jesus. Ela entendeu a verdade fundamental sobre a relação entre todos os seres humanos e o Deus vivo, uma verdade que os doze discípulos ainda tinham que apreender. A história da mulher siro-fenícia nos revela, da maneira mais simples e clara, como cada pessoa deve vir diante de Deus: reconhecendo que não temos o direito de esperar coisa alguma do Senhor, que sempre é pela sua graça e misericórdia.
Da próxima vez que você imaginar que Deus deveria te tratar diferente dos demais, por qualquer razão (“sou uma pessoa boa”, “vou à igreja”, “leio a Bíblia todos os dias”, “não tenho esse ou aquele pecado”, etc.), busque ajuda no exemplo da mulher siro-fenícia. Ela, sim, entendeu algo que escapa a muitos de nós, os religiosos de hoje. Quem sabe assim deixemos de usar expressões como “por que Deus permitiu isso comigo?”, a não ser que seja uma saudável expressão de lamento e honestidade com Deus, e não uma demanda de algo que supostamente mereceríamos. Talvez também abandonemos essa outra, “Deus é fiel, por isso me deu essa vitória!”. Fiel a quem, se o que Ele faz é sempre pela sua graça e misericórdia? É preciso deixar essa ilusão, a de imaginar que fazemos por merecer a vida, as bênçãos e a salvação que vem de Deus.
Agradeço a uma mulher anônima, a quem antes já evitei tantas vezes por não entender bem sua história, por ensinar-me, uma e outra vez, uma verdade profunda e tantas vezes negligenciada. O evangelho de Jesus só se entende, e se recebe, através da perspectiva da graça e da misericórdia. Nenhum outro caminho é possível.
Leia também
Caminhos da graça
Por que (sempre) faço o que não quero
O drama do “pecado residente” na versão religiosa
Foto: J Boontje/Freeimages.com
Sem a ambição de respondê-las de modo cabal em um breve artigo, damos boas vindas às perguntas que surgem em nosso encontro com a Palavra. Quando lemos algo que nos desafia, que talvez nos surpreenda, temos a oportunidade de rever se entendemos bem, de maneira simples, mas também profunda, algumas verdades essenciais do evangelho.
Puros e impuros
Aqui, como em muitas outras situações, o contexto nos ajuda bastante. No começo do capítulo sete vemos que os líderes dos fariseus questionavam a Jesus porque seus discípulos não seguiam certos rituais de pureza. Jesus de fato fazia muitas coisas que iam contra esses códigos: tocava leprosos e comia com os excluídos, ia até onde as pessoas estavam, tocava e se deixava tocar por qualquer um. O que seria pior, ao menos para os que o condenavam, ele curava e restaurava muitas dessas pessoas sem que elas tivessem que passar pelas estruturas e rituais formais do judaísmo. Com Jesus, os “puros” perdiam seu poder e controle sobre os “impuros”.
Anulando a Palavra de Deus
Quando questionado por esses professores da Lei, Jesus não contemporizou, nem aliviou, mas os confrontou, chamando-os de hipócritas (v. 6). Suas tradições, que eram interpretações que eles faziam dos mandamentos, com conteúdos e regras adicionados por eles mesmos, se convertiam em carga sobre as pessoas ou desculpas para fugir dos mandamentos da Palavra. Para Jesus, o que eles faziam era “anular a Palavra de Deus” (v. 13), o que não era aceitável e demandava esse confronto.
Ninguém entende...
Jesus então afirmou que o problema seria esperar que algo que vem de fora (a lei) pudesse mudar algo em nós internamente. Não é possível porque, segundo ele, já há algo danificado dentro de nós. A declaração de Jesus inverteu de ponta cabeça a lógica daqueles religiosos. O que nos torna impuros não é qualquer coisa que vem de fora, pois na verdade esse é um problema interno. Uma dificuldade: nem mesmo os discípulos entendiam o que Jesus queria dizer (v. 18). Eram os mesmos discípulos que pouco antes, com a mente embotada, também não entenderam um de seus milagres (6.52).
... Exceto uma mulher
Assim chegamos ao encontro de Jesus com a mulher siro-fenícia, um episódio que ilumina e esclarece, em meio à soberba e à falta de entendimento. A história é, ao contrário do que se poderia pensar, profundamente igualitária. Posição e status não valem nada aqui. Não adianta apresentar currículo. A fé não é questão de privilégio, nem de exclusividade. A fé é uma questão de nossa resposta à fidelidade de Deus.
Se, para Jesus, nosso problema é interno, então ninguém está livre do poder do pecado e é por isso que precisamos da salvação que ele oferece. Parece que a mulher grega (siro-fenícia) é a única pessoa nos Evangelhos quem dialoga com Jesus em seus próprios termos parabólicos. Jesus oferece uma parábola (uma comparação que parece vir em termos muito fortes). Ela responde a Jesus na mesma linha, também com uma parábola (v. 28). A mulher aceitou os termos humilhantes da parábola de Jesus e ofereceu a sua própria história/comparação/parábola: “Sim, Senhor, mas até os cachorrinhos, debaixo da mesa, comem das migalhas das crianças”. Imagino uma possível reação de Jesus: “Ei, finalmente, alguém entende minha língua! Até que enfim encontro alguém que consegue falar comigo do mesmo jeito que eu falo. Você me entende!”.
Essa história não tem nada a ver com preconceito e exclusão. Muito pelo contrário. Jesus havia questionado os que julgavam ter privilégios, os que aparentavam ser piedosos, mas na verdade não o eram, e se cansara até mesmo da falta de compreensão de seus discípulos. Ele, evitando estar com as multidões, possivelmente tenha mudado a estratégia para concentrar-se mais nesses mesmos discípulos que ainda precisavam entender. Então recebe a visita de uma mulher gentil e ‘impura’ (com uma filha endemoninhada). Sem deixar de ser coerente com sua história e missão, Jesus parece soar duro demais com a mulher. Ainda assim, o desenrolar dos fatos nos mostra que esse foi um encontro com alguém que conseguiu entender o evangelho da graça muito melhor que os fariseus religiosos ou que seus discípulos mais próximos já haviam conseguido captar.
Ela não considerou ou argumentou que fosse justo ou injusto, apropriado ou inapropriado, que ela pudesse ser vista ou mencionada como uma excluída, nesse momento, da ação salvadora de Jesus. Ela reconheceu a autoridade de Jesus (única vez nesse evangelho que alguém se dirige a Jesus chamando-o de Senhor). Ela admitiu que não tinha o direito (atenção: como ninguém o tem) de exigir a misericórdia de Jesus. Ela entendeu a verdade fundamental sobre a relação entre todos os seres humanos e o Deus vivo, uma verdade que os doze discípulos ainda tinham que apreender. A história da mulher siro-fenícia nos revela, da maneira mais simples e clara, como cada pessoa deve vir diante de Deus: reconhecendo que não temos o direito de esperar coisa alguma do Senhor, que sempre é pela sua graça e misericórdia.
Da próxima vez que você imaginar que Deus deveria te tratar diferente dos demais, por qualquer razão (“sou uma pessoa boa”, “vou à igreja”, “leio a Bíblia todos os dias”, “não tenho esse ou aquele pecado”, etc.), busque ajuda no exemplo da mulher siro-fenícia. Ela, sim, entendeu algo que escapa a muitos de nós, os religiosos de hoje. Quem sabe assim deixemos de usar expressões como “por que Deus permitiu isso comigo?”, a não ser que seja uma saudável expressão de lamento e honestidade com Deus, e não uma demanda de algo que supostamente mereceríamos. Talvez também abandonemos essa outra, “Deus é fiel, por isso me deu essa vitória!”. Fiel a quem, se o que Ele faz é sempre pela sua graça e misericórdia? É preciso deixar essa ilusão, a de imaginar que fazemos por merecer a vida, as bênçãos e a salvação que vem de Deus.
Agradeço a uma mulher anônima, a quem antes já evitei tantas vezes por não entender bem sua história, por ensinar-me, uma e outra vez, uma verdade profunda e tantas vezes negligenciada. O evangelho de Jesus só se entende, e se recebe, através da perspectiva da graça e da misericórdia. Nenhum outro caminho é possível.
Leia também
Caminhos da graça
Por que (sempre) faço o que não quero
O drama do “pecado residente” na versão religiosa
Foto: J Boontje/Freeimages.com
É casado com Ruth e pai de Ana Júlia e Carolina. Integra o corpo pastoral da Igreja Metodista Livre da Saúde, em São Paulo (SP), serve globalmente como secretário adjunto para o engajamento com as Escrituras na IFES (International Fellowship of Evangelical Students) e também apoia a equipe da IFES América Latina.
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