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- 10 de abril de 2019
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As batidas do meu coração
Crônica | Por Marília de Camargo César
"Abençoados são vocês, que sofrem por terem perdido o que mais amavam. Só assim, poderão ser abraçados por aquele que é o amor supremo." (Mateus 5:4 - A Mensagem)
Era tão cedo que as luzes de mercúrio que iluminavam a alameda ainda estavam acesas.
Lá adiante, seguia uma senhora e seu viralatinha, os únicos que eu conseguia avistar, além do vigia, que cumpria seu turno na entrada do condomínio.
A manhã estava deliciosamente fresca, e chuviscava quando comecei a caminhar. Aquela avenida margeada por eucaliptos, de um lado, e por pequenos pés de manacás, do outro, se tornara para mim um lugar sagrado. Não por estar situada em algum roteiro místico, como o de Santiago de Compostela, ou por ter uma marca de peregrinações sacrificiais, dessas que os telejornais apresentam nos feriados religiosos. O caminho foi sendo santificado dia após dia. A voz que soprou em meu coração algumas vezes, enquanto eu andava – essa doce voz que nós cristãos acreditamos ser o sussurrar do Espírito Santo de Deus – transformou uma simples alameda num lugar especial.
Nessas jornadas matinais, pude entender que as perguntas que fazemos a Deus e o conteúdo de nossas preces revelam muito sobre quem somos.
Os rabinos costumam dizer que "Deus não está na resposta, mas na pergunta". As perguntas nos definem, pois é diferente aquele que diz: "Senhor, por que comigo?" do que afirma "Por que não comigo?".
"Por que comigo" evidencia um tipo de coração, um grau de maturidade espiritual. "Por que não comigo", outro, distinto.
Nossas indagações e preces revelam quem somos porque um é o que pede: "Vem, Senhor, mostra-nos tua glória!", do outro que, sem nem levantar a cabeça, diz: "Afasta-te de mim, Deus meu, pois não sou digno de tua presença".
O que ora – "Senhor, quero ser rico", do que diz: "Deus, quero sabedoria para liderar".
Pela alameda dos eucaliptos também descobri que há perguntas que ficam sem resposta. Entendi que há períodos em que Deus se cala, como um pai que recua ao observar o filho se desenvolvendo e ganhando autonomia. E que esse silêncio pode soar, por vezes, duro demais.
Percebi ainda que há respostas que, mesmo claras como o dia, não nos satisfazem. Mas que existem perguntas mal formuladas. E que em meio a todos esses questionamentos está um Deus que se alegra em participar de nossas dúvidas e anseios, pois é de diálogos assim que os mais sólidos relacionamentos são feito.
Essa coragem de questionar Deus muitas vezes nos leva a fazer pedidos inusitados.
E orações ousadas não raro recebem respostas transformadoras.
Uma dessas respostas me deixou desconcertada.
Há algum tempo, eu criara o hábito de fazer uma oração especial na véspera do Ano Novo. Eu sintetizava em uma frase um desejo especial para aquele novo ciclo que se iniciava.
Era uma estratégia de autoencorajamento espiritual, um pensamento para o qual eu poderia me voltar sempre que o vazio ou o tédio surgissem. Pois é sempre motivo de grande alegria relembrar que recebemos o que pedimos.
Assim, houve um ano em que orei: "Senhor, leva-me a lugares onde nunca estive". E em outro, disse: "Deus, coloca no meu coração um livro que esteja no teu coração". E houve muitos outros pedidos de uma só sentença. Orações que foram atendidas, sempre a seu tempo.
Houve um ano em que fiz um pedido diferente. Mais abstrato, e que, a meu ver, limitaria a resposta de Deus ao campo da metafísica ou da narrativa poética. Como se fosse possível, de alguma forma, limitar o escopo de sua atuação.
"Senhor", eu orei daquela vez, "quero deitar minha cabeça no teu peito".
Como o apóstolo João, eu desejava me sentir mais próxima de Jesus.
Na prática, eu não tinha a menor ideia do que significava aquela oração, que brotou espontaneamente da alma, numa das manhãs em que fazia minha caminhada rotineira.
Lembrei-me de Teresa de Ávila, a monja carmelita do século XVI que incomodou a igreja católica com seus pensamentos "heréticos". Teresa ousou retirar Deus das prateleiras empoeiradas da Teologia para situá-lo no lugar que lhe é devido, o centro da vida humana.
Como uma Teresa tupiniquim, eu também queria estar mais perto de Jesus, conhecê-lo melhor, ouvir os seus conselhos, senti-lo tão próximo a ponto de escutar as batidas do seu coração.
Lancei aos céus meu insólito pedido e segui em frente.
Alguns meses depois, comecei a pesquisar um tema que poderia se transformar num novo livro. Um drama familiar chamou minha atenção pelas redes sociais. Tratava-se da história de uma menina de seis anos que falecera havia pouco tempo, vítima de leucemia. Os pais, um jovem casal de cristãos conhecidos meus, estavam devastados. A dor se somava à revolta, pois eles receberam, até o fim da vida da filha, "profecias" de pastores garantindo que a garota seria curada.
A pesquisa me levou a entrar em contato com outros dramas em famílias de evangélicos – pais que perderam seus filhos jovens demais para o suicídio, o câncer ou a violência urbana. Maridos que perderam as esposas muito cedo, ou o inverso, sempre em situações inesperadas e que lhes deixaram um vazio na alma e um imenso ponto de interrogação espiritual. Sem aviso, Deus lhes voltara o rosto.
Ler sobre essas experiências trágicas me fez, a certa altura, recordar a oração que eu fizera:
".. quero deitar minha cabeça no teu peito."
Numa espécie de epifania, compreendi que aquelas histórias eram, na verdade, a resposta ao meu pedido.
Era como se Deus dissesse: "Quer ouvir meu coração? Escute esses meus filhos. Sinta sua dor. Sinta o que sinto."
Era uma percepção que em nada se parece com a imagem de um Deus inabalável e rígido. A revelação incluía um profundo pesar.
Um texto me veio à memória:
"A minha alma está profundamente triste, numa tristeza mortal. Fiquem aqui e vigiem comigo." (Mateus 26:38)
A resposta era como o pedido de Cristo a seus discípulos pouco antes de ir para o Calvário.
"Quero deitar a cabeça no teu peito" foi a oração de uma pessoa inexperiente, uma criança em busca de carinho, uma menina precisando de um pai.
Ocorre que este Pai estava disposto a tratar a filha como uma mulher adulta.
"Quer ouvir meu coração? Deitar no meu peito? Venha e sinta essa dor dilacerante, que poucos conhecem.”
“Este é o preço da intimidade comigo. Vai pagar o preço?”
Esses pensamentos me fizeram parar e ficar em silêncio por muito tempo após a caminhada.
É desconfortável dar de encontro com esta face de Deus.
Um Ser que padece junto a uma humanidade desolada. Um Deus soberano, cujo coração pode ser rasgado.
O apóstolo Paulo teve esse discernimento:
"...para que pudesse conhecer Cristo pessoalmente, experimentar o poder de sua ressurreição, ser companheiro de seu sofrimento e ir com ele até a morte". (Filipenses 3:10 e 11)
O monge Anselm Grun escreveu que encontrar Deus como Deus de verdade provoca em nós uma "alteração interna", que ele definiu como a "essência da humildade".1
Eu entrara pela primeira vez num quarto cheio de sombras e mistério, onde um facho de luz me cegou. Ali, pude escutar as batidas rápidas de um coração aflito.
Ao final da caminhada, no fone de ouvido, a canção dizia:
Entra mestre,
Descansa um pouco,
Estás cansado, estás sedento e rouco ...
... dormiu tão pesado, fazia dó
Como será, mestre, este sonho teu?
Sonhas como homem, sonhas como Deus?
Sonhas com a glória que tinhas com o pai na luz?
Ou sonhas com a cruz? 2
Notas:
1. "A humildade é a reação psicológica do ser humano à experiência de Deus". (Humildade e Experiência de Deus, pág. 41. Editora Vozes, 2014)
2. Alguém como eu – Stenio Marcius
• Marília de Camargo César é jornalista e escritora. Trabalha no Valor Econômico como editora-assistente.
"Abençoados são vocês, que sofrem por terem perdido o que mais amavam. Só assim, poderão ser abraçados por aquele que é o amor supremo." (Mateus 5:4 - A Mensagem)
Era tão cedo que as luzes de mercúrio que iluminavam a alameda ainda estavam acesas.
Lá adiante, seguia uma senhora e seu viralatinha, os únicos que eu conseguia avistar, além do vigia, que cumpria seu turno na entrada do condomínio.
A manhã estava deliciosamente fresca, e chuviscava quando comecei a caminhar. Aquela avenida margeada por eucaliptos, de um lado, e por pequenos pés de manacás, do outro, se tornara para mim um lugar sagrado. Não por estar situada em algum roteiro místico, como o de Santiago de Compostela, ou por ter uma marca de peregrinações sacrificiais, dessas que os telejornais apresentam nos feriados religiosos. O caminho foi sendo santificado dia após dia. A voz que soprou em meu coração algumas vezes, enquanto eu andava – essa doce voz que nós cristãos acreditamos ser o sussurrar do Espírito Santo de Deus – transformou uma simples alameda num lugar especial.
Nessas jornadas matinais, pude entender que as perguntas que fazemos a Deus e o conteúdo de nossas preces revelam muito sobre quem somos.
Os rabinos costumam dizer que "Deus não está na resposta, mas na pergunta". As perguntas nos definem, pois é diferente aquele que diz: "Senhor, por que comigo?" do que afirma "Por que não comigo?".
"Por que comigo" evidencia um tipo de coração, um grau de maturidade espiritual. "Por que não comigo", outro, distinto.
Nossas indagações e preces revelam quem somos porque um é o que pede: "Vem, Senhor, mostra-nos tua glória!", do outro que, sem nem levantar a cabeça, diz: "Afasta-te de mim, Deus meu, pois não sou digno de tua presença".
O que ora – "Senhor, quero ser rico", do que diz: "Deus, quero sabedoria para liderar".
Pela alameda dos eucaliptos também descobri que há perguntas que ficam sem resposta. Entendi que há períodos em que Deus se cala, como um pai que recua ao observar o filho se desenvolvendo e ganhando autonomia. E que esse silêncio pode soar, por vezes, duro demais.
Percebi ainda que há respostas que, mesmo claras como o dia, não nos satisfazem. Mas que existem perguntas mal formuladas. E que em meio a todos esses questionamentos está um Deus que se alegra em participar de nossas dúvidas e anseios, pois é de diálogos assim que os mais sólidos relacionamentos são feito.
Essa coragem de questionar Deus muitas vezes nos leva a fazer pedidos inusitados.
E orações ousadas não raro recebem respostas transformadoras.
Uma dessas respostas me deixou desconcertada.
Há algum tempo, eu criara o hábito de fazer uma oração especial na véspera do Ano Novo. Eu sintetizava em uma frase um desejo especial para aquele novo ciclo que se iniciava.
Era uma estratégia de autoencorajamento espiritual, um pensamento para o qual eu poderia me voltar sempre que o vazio ou o tédio surgissem. Pois é sempre motivo de grande alegria relembrar que recebemos o que pedimos.
Assim, houve um ano em que orei: "Senhor, leva-me a lugares onde nunca estive". E em outro, disse: "Deus, coloca no meu coração um livro que esteja no teu coração". E houve muitos outros pedidos de uma só sentença. Orações que foram atendidas, sempre a seu tempo.
Houve um ano em que fiz um pedido diferente. Mais abstrato, e que, a meu ver, limitaria a resposta de Deus ao campo da metafísica ou da narrativa poética. Como se fosse possível, de alguma forma, limitar o escopo de sua atuação.
"Senhor", eu orei daquela vez, "quero deitar minha cabeça no teu peito".
Como o apóstolo João, eu desejava me sentir mais próxima de Jesus.
Na prática, eu não tinha a menor ideia do que significava aquela oração, que brotou espontaneamente da alma, numa das manhãs em que fazia minha caminhada rotineira.
Lembrei-me de Teresa de Ávila, a monja carmelita do século XVI que incomodou a igreja católica com seus pensamentos "heréticos". Teresa ousou retirar Deus das prateleiras empoeiradas da Teologia para situá-lo no lugar que lhe é devido, o centro da vida humana.
Como uma Teresa tupiniquim, eu também queria estar mais perto de Jesus, conhecê-lo melhor, ouvir os seus conselhos, senti-lo tão próximo a ponto de escutar as batidas do seu coração.
Lancei aos céus meu insólito pedido e segui em frente.
Alguns meses depois, comecei a pesquisar um tema que poderia se transformar num novo livro. Um drama familiar chamou minha atenção pelas redes sociais. Tratava-se da história de uma menina de seis anos que falecera havia pouco tempo, vítima de leucemia. Os pais, um jovem casal de cristãos conhecidos meus, estavam devastados. A dor se somava à revolta, pois eles receberam, até o fim da vida da filha, "profecias" de pastores garantindo que a garota seria curada.
A pesquisa me levou a entrar em contato com outros dramas em famílias de evangélicos – pais que perderam seus filhos jovens demais para o suicídio, o câncer ou a violência urbana. Maridos que perderam as esposas muito cedo, ou o inverso, sempre em situações inesperadas e que lhes deixaram um vazio na alma e um imenso ponto de interrogação espiritual. Sem aviso, Deus lhes voltara o rosto.
Ler sobre essas experiências trágicas me fez, a certa altura, recordar a oração que eu fizera:
".. quero deitar minha cabeça no teu peito."
Numa espécie de epifania, compreendi que aquelas histórias eram, na verdade, a resposta ao meu pedido.
Era como se Deus dissesse: "Quer ouvir meu coração? Escute esses meus filhos. Sinta sua dor. Sinta o que sinto."
Era uma percepção que em nada se parece com a imagem de um Deus inabalável e rígido. A revelação incluía um profundo pesar.
Um texto me veio à memória:
"A minha alma está profundamente triste, numa tristeza mortal. Fiquem aqui e vigiem comigo." (Mateus 26:38)
A resposta era como o pedido de Cristo a seus discípulos pouco antes de ir para o Calvário.
"Quero deitar a cabeça no teu peito" foi a oração de uma pessoa inexperiente, uma criança em busca de carinho, uma menina precisando de um pai.
Ocorre que este Pai estava disposto a tratar a filha como uma mulher adulta.
"Quer ouvir meu coração? Deitar no meu peito? Venha e sinta essa dor dilacerante, que poucos conhecem.”
“Este é o preço da intimidade comigo. Vai pagar o preço?”
Esses pensamentos me fizeram parar e ficar em silêncio por muito tempo após a caminhada.
É desconfortável dar de encontro com esta face de Deus.
Um Ser que padece junto a uma humanidade desolada. Um Deus soberano, cujo coração pode ser rasgado.
O apóstolo Paulo teve esse discernimento:
"...para que pudesse conhecer Cristo pessoalmente, experimentar o poder de sua ressurreição, ser companheiro de seu sofrimento e ir com ele até a morte". (Filipenses 3:10 e 11)
O monge Anselm Grun escreveu que encontrar Deus como Deus de verdade provoca em nós uma "alteração interna", que ele definiu como a "essência da humildade".1
Eu entrara pela primeira vez num quarto cheio de sombras e mistério, onde um facho de luz me cegou. Ali, pude escutar as batidas rápidas de um coração aflito.
Ao final da caminhada, no fone de ouvido, a canção dizia:
Entra mestre,
Descansa um pouco,
Estás cansado, estás sedento e rouco ...
... dormiu tão pesado, fazia dó
Como será, mestre, este sonho teu?
Sonhas como homem, sonhas como Deus?
Sonhas com a glória que tinhas com o pai na luz?
Ou sonhas com a cruz? 2
Notas:
1. "A humildade é a reação psicológica do ser humano à experiência de Deus". (Humildade e Experiência de Deus, pág. 41. Editora Vozes, 2014)
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