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Ao amigo José João

Conteúdo extra oferecido na seção “Nomes” da Ultimato 389.

No dia 11 de abril, José João, pastor titular da Primeira Igreja Presbiteriana de Manaus, AM, em um culto especial de gratidão a Deus, testemunhou o milagre de cura feito por Deus em sua vida. Ele passou 72 dias internado por complicações ocasionadas pela Covid-19. Ele é casado com Lucilia e tem três filhos e uma neta. Pessoas espalhadas pelo Brasil intercederam por sua vida durante sua internação. Paulo Júnior escreve sobre seu amigo e colega pastor.
 
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Ao amigo José João

Por Paulo Júnior

Jesus nos disse que o pastor conhece as suas ovelhas e chama a cada uma pelo seu próprio nome. Isso nos permitir pensar que há um nome, ou nomes, que nos ajudam a identificar o nosso propósito na vida, como filhos de Deus. Sendo assim, sempre procurei discernir esses possíveis nomes, não só em relação à minha própria vida, mas também em relação à vida das pessoas com quem compartilho a caminhada. Isso, com certeza, tem cooperado na compreensão das características e virtudes que todos carregamos, e que são próprias para correspondermos a esse chamamento.
 
Em meados dos anos 80, o Seminário Presbiteriano do Sul, em Campinas, mantinha um Curso Intensivo de Bacharelado em Teologia. Eram três períodos de aproximadamente sessenta dias, de dezembro a janeiro, de aulas intensivas, nos três períodos do dia, manhã, tarde e noite. Uma imersão nas matérias básicas do curso de teologia. Os alunos ficavam internados no seminário, numa carga intensa de conteúdo, e depois voltavam para casa, com a responsabilidade de entregar trabalhos escritos sobre as matérias estudadas. O propósito era atender o que eles chamaram de vocações tardias. A condição era que o aluno tivesse mais de 60 anos de idade, ou curso superior completo, caso fosse mais jovem.
 
Foi nesse contexto e cenário que o José João e eu nos encontramos. Dois jovens, com alguns poucos anos de diferença de idade, e contextos profissionais e ministeriais semelhantes. Deus queria, desde o início que a nossa relação se desse num ambiente que favorecesse a potencialização, a aceleração e a intensidade dos processos. Essas características sempre marcaram nossa amizade desde que nos conhecemos. Entre nós, nada nunca foi mais ou menos, nem superficial. Deus gerou uma relação que afetou profundamente nossas vidas, nossas famílias e, consequentemente, nossos ministérios.
 
Ambos tinham uma formação profissional e a exerciam. Ele na área da economia e administração e eu na área da engenharia. Compartilhávamos o privilégio de estarmos totalmente envolvidos na vida das igrejas às quais estávamos ligados, as presbiterianas de Manaus e Uberlândia. Ambas saudáveis e dinâmicas, com uma história de relevância em relação a região onde estavam. Também compartilhávamos o privilégio de estarmos trabalhando como cooperadores de homens que têm um legado na evangelização e discipulado nessa nação. Ele desfrutava o privilégio de ser pastoreado pelo Pr. Caio Fábio, na época já um ancião experiente e piedoso. E eu, tendo sido pastoreado pelo saudoso Pr. Walder Sttefen, um homem que tenho como referência de coerência e piedade, e que soube como conduzir a comunidade e os seus próprios filhos no evangelho, pela constância e simplicidade, naquele momento desfrutava do privilégio de estar compartilhando vida com o Pr. Eber Lenz, até hoje um amigo íntimo e um irmão chegado. Nossas referências ministeriais eram, portando, desafiadoras.
 
Compartilhávamos uma percepção e um trajetória ministeriais com muitas semelhanças. Vínhamos de uma experiência profissional promissora. Mas, com um profundo senso de chamado ministerial, um intenso amor pela igreja e um entendimento claro de que a igreja só cumpre seu ministério na medida em que assume a responsabilidade das vulnerabilidades e desafios sociais da comunidade onde está inserida. Tínhamos o afeto e o apoio de nossas famílias e das congregações que, não só reconheciam esse chamado, como nos estimulavam a avançar.
 
O ambiente no seminário era incomum. As turmas eram formadas por jovens até 30 e senhores com mais de 60 anos. Jovens buscando alcançar suas visões, e os velhos empenhados em realizar seus sonhos. Todos profetas empenhados em responder ao chamado do pastor, correspondente ao nome que haviam recebido.
 
Tivemos o privilégio de, em pouco tempo, dada a intensidade dos processos, consolidar relacionamentos que, em outro contexto, seriam improváveis. Amizades para a vida, vínculos que não se romperiam. Tudo era muito intenso, não havia tempo para distrações. Todos com profunda convicção do que estávamos buscando ali e empenhados em remir o tempo.
 
A amizade com o José João sempre teve algo de sobrenatural, vocacional. Para dois presbiterianos de raiz, era pura predestinação. Nossas diferenças de característica de ação e percepção nunca representaram dificuldade para nossa relação, pelo contrário, sempre favoreceram nossa relação e potencializaram nossos ministérios. Com certeza, nossas vidas foram profundamente afetadas e transformadas desde que nos encontramos naquele Curso Intensivo de Teologia. Nossos ministérios se misturaram como as águas do Rio Negro e do Solimões, quando formam o Amazonas. Seguem juntas, bem distintas uma da outra em quase todos os aspectos, contudo, ao fim não interessa dizer o que é um ou o outro, são todos o mesmo Rio de Vida.
 
Voltando a questão dos nomes. Quero registrar nesse testemunho a respeito do amigo José João, aquele que entendi ser o nome, ou um dos nomes, que o identifica. Pelo menos, para a minha casa e para o ministério ao qual estamos ligados desde que nos encontramos.
 
Provocação – do latim provocatio, relacionado a provocare, “desafiar, chamar a si”, formado por pro, “à frente”, mais vocare, “chamar”. Creio que o José João é alguém que desafia ao chamado, que chama ao desafio. Sua vida e ministério são fortemente marcados pelo desafio de cumprir um chamado e de ser, constantemente, chamado a novos desafios. Alguém que chama a si a responsabilidade, que se coloca à frente como referência e inspiração. No sentido mais verdadeiro e positivo do termo, um “transgressor”, alguém que cruza a linha, que rompe os limites, que atravessa as fronteiras. Alguém que, por isso mesmo, vai sempre ser a causa favorável e positiva de algum “transtorno”.
 
E aqui, podemos nos permitir uma linguagem parabólica: um provoca-dor. Pois, sua trajetória de ministério sempre esteve associada a algum tipo de dor. Aquela dor própria das concepções, das gestações do novo, do avanço rumo ao novo de Deus. Um tipo de “catalizador”, alguém que, ao entrar nos processos, é agente de reações transformadoras dos elementos envolvidos na relação. De tal modo que, após sua participação tudo será afetado e encontrará sua expressão plena, alcançando seu propósito original.
 
Foram assim todas as experiências que partilhamos. Esse é o meu testemunho. Começou com a minha própria igreja. Nunca mais foi a mesma. Por conta da nossa amizade a partir do seminário, como parte do Conselho da igreja, sugeri que ele fosse o pastor convidado para substituir o Pr. Eber, que estava se mudando para outro presbitério. A sugestão foi aceita e fizemos o convite. Ele aceitou prontamente e já começou a preparar a mudança para Uberlândia. Contudo, antes mesmo que ele chegasse a Uberlândia, por conta de uma intervenção da Diretoria Executiva do Presbitério na época, o processo foi interrompido e o convite cancelado. Um tempo de muitas dores e transformação. Mas, o que parecia ser para perda, resultou em ganho tanto na vida da igreja como em nossos ministérios pessoais. Deus, a partir daí, revelou horizontes até então desconhecidos.
 
Passamos, então, a cooperar um com o outro desenvolvendo parcerias de cooperação entre as igrejas que, agora pastoreávamos. Ambas com forte ênfase em missões e transformação social. Estimulados um pelo outro, entramos em áreas até então não alcançadas nas proporções que poderiam ser.
 
O José João, na época desafiou a igreja de Manaus a entrar efetivamente na área da saúde, responsabilizando-se por, não apenas levar o ensino do evangelho, mas também o bálsamo do cuidado e da cura, para pessoas em condição de extrema vulnerabilidade.
 
Como diz o caipira: “pensa um transtorno”, “pensa uma dor”. Buscando consolar a dor dos outros, tivemos que enfrentar as nossas próprias. Um passo de fé e ousadia. O José João se meteu num barquinho chamado Betel e onde cabiam dez enfiou vinte. Todos trabalhando no limite. Dormindo em redes, comendo pão mofado e cheirando a óleo diesel. Porém, tomados de profunda alegria e disposição. Dias inesquecíveis e que fortaleceram nossa fé e cooperaram para aceleração da nossa maturidade. E, sendo justo, no meio de tudo isso, sempre que possível, compartilhávamos um tambaqui assado, predileção do amigo José João. Nesse ponto, nunca divergimos.
 
Passadas essas primeiras dores e transtornos, veio o barco Zani Silva. Agora, algo com cara de “gente grande”. Tudo deixava de parecer uma “aventura missioneira” e começava a revelar a sua real dimensão. Hoje, uma grande estrutura eficiente de assistência e cuidado para o corpo, alma e espírito de um número incontável de pessoas.
 
Na vida desse amigo nunca faltou bom ânimo, disposição e força. Uma vida marcada por honra, fidelidade e coerência. Uma resiliência em suportar tensões, esforços, pressões, e nunca ser deformado em sua originalidade.
 
A igreja crescia e precisava encontrar formas mais eficazes de cuidar do povo tão sofrido e ferido. O José João foi em busca de uma forma de cuidado, e se dedicou a formação de pequenos grupos para esse propósito. Uma nova transformação, uma nova provocação. Não faltavam opiniões e pareceres favoráveis e desfavoráveis.
 
Entretanto, sem se deixar envolver por aspectos dogmáticos e supostamente doutrinários e teológicos, o José João e a Lucília, lideraram a igreja num processo radical de transformação, gerando uma referência e uma inspiração, para igrejas da própria denominação e para muitas outras. Hoje são milhares de pessoas sendo propriamente assistidas e cuidadas de forma íntima e pessoal. Um trabalho ordenado e disciplinado de cuidado e edificação.
 
Na sequência de tudo isso, veio do desafio de encontrar um local que fosse mais adequado para as dimensões que a igreja vinha assumindo no cumprimento da sua vocação. E, lá foi de novo, o provoca-dor José João, desafiar a igreja a ir adiante. Para muitos, uma imprudência, uma insanidade. Contudo, sem perder o rumo, com muito cuidado e paciência, as barreiras foram sendo derrubadas, as resistências sendo vencidas e, hoje, a igreja está “vestida” de modo próprio para servir as pessoas.
 
Os olhos de quem quer descobrir, conhecer, e o sorriso de uma criança que acabou de encontrar o que estava procurando, são marcas características desse amigo. Quando ele compartilha alguma visão ou desafio novo com a gente, tem os olhos de quem sabe exatamente o que quer, e o sorriso de quem não vai aceitar o não como resposta. A gente nem se dá conta das dores que vamos sofrer, pois há uma sensação de que, ao fim, será bom.
 
Foi assim, de novo, que todos entramos com ele naquela UTI. Havia dor como sempre, transtorno como sempre, perguntas sem resposta como sempre, mas, mesmo assim, entramos todos. Uma multidão de pessoas aliançadas num mesmo propósito. Todos tendo suas vidas afetadas e marcadas de alguma forma. De novo, e como sempre, um catalizador, um provocador de processos.
 
Ao sair dessa “caverna de transformação”, muita coisa está diferente, muita coisa certamente mudou. O cabelo, a pele, o ritmo, mas outras continuam sendo as mesmas: o olhar de quem ainda está à procura, o sorriso convincente da criança e a mente de quem não quer se conformar.
 
Que bom poder desfrutar de mais tempo com você, meu amigo. Continue firme e inabalável em cumprir seu “chamado”, sendo entre nós um instrumento de provocação, usado por nosso Deus e Pai, para nos desafiar e transtornar, mesmo que isso represente, por breve tempo, alguma dor.
 
Sabemos que: “Nossa leve e momentânea tribulação produz para nós um eterno peso de glória, acima de toda comparação, na medida em que não olhamos para as coisas que se veem, mas para as que não se veem. Porque as coisas que se veem são passageiras, mas as que não se veem são eternas” (II Coríntios 4).

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