Opinião
- 01 de agosto de 2016
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Ambição e desejo: o que o amor tem a ver com isso?
A leitura da Bíblia (e o seu ensino) depende da atenção que os leitores dão a pequenos e imperceptíveis detalhes. Talvez essa também seja a sua percepção. De fato, ao passar os últimos anos estudando o lugar do desejo na vida cristã, percebi que minha interpretação errada – o desejo é sempre egoísta e autocentrado, não podemos confiar no desejo – deu-se, em parte, devido a uma leitura descuidada das Escrituras.
Sempre presumi que os autores bíblicos, assim como eu, colocavam a culpa no desejo pela traição humana. Era fácil chegar a essa conclusão, principalmente porque a queda da humanidade é facilmente explicada pelo desejo expresso de forma errada: “Quando a mulher viu que a árvore parecia agradável ao paladar, era atraente aos olhos e, além disso, desejável para dela se obter discernimento, tomou do seu fruto, comeu-o...” (Gn 3.6, NVI). Além disso, os autores do Novo Testamento, como Tiago, pareciam confirmar minhas suspeitas sobre a natureza irremediável do desejo humano: “Cada um, porém, é tentado pela própria cobiça, sendo por esta arrastado e seduzido. Então a cobiça, tendo engravidado, dá à luz o pecado; e o pecado, após ter-se consumado, gera a morte”. (Tg 1.14,15). A Bíblia provava (ou assim eu entendia) que o desejo humano era a cobra que jamais seria domada.
O que percebi desde então é que os autores bíblicos não culpam tanto o desejo – na verdade eles o qualificam. Ou talvez mais precisamente, os tradutores bíblicos têm como desafio esta nuance: são eles que decidem quais palavras correspondem ao “desejo” de acordo com o contexto da passagem. Como um exemplo no Antigo Testamento, quando os israelitas são alertados sobre a “cobiça” nos Dez Mandamentos, a palavra traduzida como “cobiça” na verdade é um termo neutro para desejo. Pode ser traduzida, de acordo com Robert Alter, especialista em hebraico, como “anseio”, “desejo”, “luxúria” ou “vontade”. Porém, como a conotação em Êxodo 20.17 é claramente proibitiva, os tradutores decidiram por “cobiça” para sugerir um desejo corrompido. No Novo Testamento, a palavra mais comum para “desejo” em grego é epithymia; similarmente, essa palavra pode ser traduzida como desejo, anseio, vontade, luxúria, cobiça e paixão – novamente de acordo com o contexto.
A neutralidade linguística de “desejo” na Bíblia nos diz algo sobre a própria natureza da palavra: o desejo não é intrinsecamente mal. Nós podemos querer coisas boas (ou más), e podemos querê-las de formas certas (ou erradas). E isso nos direciona para uma importante pergunta: Se os tradutores da Bíblia precisavam discernir o desejo antes de culpá-lo, porque nós não fazemos o mesmo?
Como escreve James K. A . Smith em Disiring the Kingdom (Desejando o Reino) e, mais recentemente, em You Are What You Love (Você é o que você ama), os seres humanos são criaturas desejosas. Isso significa que o desejo tem mais peso em nossa vida do que nossas crenças. Provar e desistir de um desejo certamente é tão fácil quanto provar e desistir do ar. Nós respiramos, nós queremos. Isso é o que significa ser humano.
Não podemos desistir do desejo, nem devemos – porque o desejo não é apenas o combustível para o adultério e a ganância; ele também impulsiona a missão, a oração e a transformação pessoal. Crer que Deus ressuscitou Jesus dos mortos, mas não é capaz de transformar a natureza dos nossos desejos – do egoísmo para o autossacrifício; do ódio para a paz; da amargura para o perdão; da luxúria para o amor – é dizer que o evangelho tem apenas consequências cósmicas; que não atinge o pessoal. E isso certamente não é o que acreditamos como cristãos.
“Pois é Deus quem efetua em vocês tanto o querer quanto o realizar, de acordo com a boa vontade dele” (Fp 2.13), escreve o apóstolo Paulo. Uma evidência de maturidade espiritual é o quanto nossos desejos estão em conformidade com os desejos de Deus. Mas assim como um paciente transplantado, precisaremos de um novo coração. Graças a Deus, no entanto, existe um doador – Jesus Cristo! Através do batismo pela morte de Cristo, nós morremos (devagar e às vezes dolorosamente), para nossos desejos pecaminosos; por meio de sua ressurreição, nascemos para uma nova vida – o que inclui nossos desejos.
Ao lermos a Bíblia, prestemos atenção às pequenas palavras que dão sentido ao desejo: tanto suas armadilhas quanto suas promessas. E o mais importante, procuremos nos tornar pessoas que amam o que Deus ama – e que odeiam o que ele odeia. O tipo de pessoas cujo único desejo é que Sua vontade seja feita tanto na terra quanto no céu.
• Jen Pollock Michel é escritora, autora de O Que Você Quer? (Editora Ultimato) e colunista do Her.meneutics.com (Christiantity Today). Graduada em francês e mestre em literatura pela Universidade Northwestern, Estados Unidos, é casada, mãe de cinco filhos e vive no Canadá.
Texto publicado originalmente em American Bible Society News.
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Foto: Karolina/Freeimages.com
Sempre presumi que os autores bíblicos, assim como eu, colocavam a culpa no desejo pela traição humana. Era fácil chegar a essa conclusão, principalmente porque a queda da humanidade é facilmente explicada pelo desejo expresso de forma errada: “Quando a mulher viu que a árvore parecia agradável ao paladar, era atraente aos olhos e, além disso, desejável para dela se obter discernimento, tomou do seu fruto, comeu-o...” (Gn 3.6, NVI). Além disso, os autores do Novo Testamento, como Tiago, pareciam confirmar minhas suspeitas sobre a natureza irremediável do desejo humano: “Cada um, porém, é tentado pela própria cobiça, sendo por esta arrastado e seduzido. Então a cobiça, tendo engravidado, dá à luz o pecado; e o pecado, após ter-se consumado, gera a morte”. (Tg 1.14,15). A Bíblia provava (ou assim eu entendia) que o desejo humano era a cobra que jamais seria domada.
O que percebi desde então é que os autores bíblicos não culpam tanto o desejo – na verdade eles o qualificam. Ou talvez mais precisamente, os tradutores bíblicos têm como desafio esta nuance: são eles que decidem quais palavras correspondem ao “desejo” de acordo com o contexto da passagem. Como um exemplo no Antigo Testamento, quando os israelitas são alertados sobre a “cobiça” nos Dez Mandamentos, a palavra traduzida como “cobiça” na verdade é um termo neutro para desejo. Pode ser traduzida, de acordo com Robert Alter, especialista em hebraico, como “anseio”, “desejo”, “luxúria” ou “vontade”. Porém, como a conotação em Êxodo 20.17 é claramente proibitiva, os tradutores decidiram por “cobiça” para sugerir um desejo corrompido. No Novo Testamento, a palavra mais comum para “desejo” em grego é epithymia; similarmente, essa palavra pode ser traduzida como desejo, anseio, vontade, luxúria, cobiça e paixão – novamente de acordo com o contexto.
A neutralidade linguística de “desejo” na Bíblia nos diz algo sobre a própria natureza da palavra: o desejo não é intrinsecamente mal. Nós podemos querer coisas boas (ou más), e podemos querê-las de formas certas (ou erradas). E isso nos direciona para uma importante pergunta: Se os tradutores da Bíblia precisavam discernir o desejo antes de culpá-lo, porque nós não fazemos o mesmo?
Como escreve James K. A . Smith em Disiring the Kingdom (Desejando o Reino) e, mais recentemente, em You Are What You Love (Você é o que você ama), os seres humanos são criaturas desejosas. Isso significa que o desejo tem mais peso em nossa vida do que nossas crenças. Provar e desistir de um desejo certamente é tão fácil quanto provar e desistir do ar. Nós respiramos, nós queremos. Isso é o que significa ser humano.
Não podemos desistir do desejo, nem devemos – porque o desejo não é apenas o combustível para o adultério e a ganância; ele também impulsiona a missão, a oração e a transformação pessoal. Crer que Deus ressuscitou Jesus dos mortos, mas não é capaz de transformar a natureza dos nossos desejos – do egoísmo para o autossacrifício; do ódio para a paz; da amargura para o perdão; da luxúria para o amor – é dizer que o evangelho tem apenas consequências cósmicas; que não atinge o pessoal. E isso certamente não é o que acreditamos como cristãos.
“Pois é Deus quem efetua em vocês tanto o querer quanto o realizar, de acordo com a boa vontade dele” (Fp 2.13), escreve o apóstolo Paulo. Uma evidência de maturidade espiritual é o quanto nossos desejos estão em conformidade com os desejos de Deus. Mas assim como um paciente transplantado, precisaremos de um novo coração. Graças a Deus, no entanto, existe um doador – Jesus Cristo! Através do batismo pela morte de Cristo, nós morremos (devagar e às vezes dolorosamente), para nossos desejos pecaminosos; por meio de sua ressurreição, nascemos para uma nova vida – o que inclui nossos desejos.
Ao lermos a Bíblia, prestemos atenção às pequenas palavras que dão sentido ao desejo: tanto suas armadilhas quanto suas promessas. E o mais importante, procuremos nos tornar pessoas que amam o que Deus ama – e que odeiam o que ele odeia. O tipo de pessoas cujo único desejo é que Sua vontade seja feita tanto na terra quanto no céu.
• Jen Pollock Michel é escritora, autora de O Que Você Quer? (Editora Ultimato) e colunista do Her.meneutics.com (Christiantity Today). Graduada em francês e mestre em literatura pela Universidade Northwestern, Estados Unidos, é casada, mãe de cinco filhos e vive no Canadá.
Texto publicado originalmente em American Bible Society News.
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