Opinião
- 06 de março de 2015
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Alegria, mesmo quando ela perdeu tudo
Sentamos numa sala espaçosa na periferia de uma cidade de interior no norte da Jordânia. Não tinha móveis, só quatro colchões doadas por uma igreja na Europa e um aquecedor doado por uma cooperação governamental. O aquecedor deveria tirar um pouco do frio de um inverno ardido, mas a primavera já estava chegando e, como é típico em casos de assistência urgente aos refugiados, foi entregue há poucos dias. Mesmo assim, ela colocou o aquecedor, o móvel mais novo e chique da casa, bem no meio da sala para que todos nós sentássemos ao redor dele.
Ao descobrir que eu já morei na Síria, ela perguntou se eu conhecia tal bairro ou tal ponto turístico. Eu contei da minha vida na capital, Damasco, e ela falou de Homs, sua cidade natal. Ela falou de como era linda, antes da guerra. Eu disse que uma vez passei na rodoviária de Homs, que infelizmente era a única parte da cidade dela que eu conhecia, mas que já passara um tempo nos vilarejos das montanhas ao redor da cidade e que achei linda a região.
Aí, ela jogou as mãos no ar, deu uma risadinha, e disse: “Rah!”. Ou seja, “Já foi!”. Eu sabia o que isso significava: o bairro dela foi bombardeado durante meses até quase tudo ser destruído. Sobrou pouco. Literalmente, ela nunca mais poderá voltar para sua casa, porque esta casa não existe mais.
Pensei em mudar de assunto, falar de algo mais leve, mas não existe assunto leve para uma mãe de seis meninas, todas elas tendo dificuldades de dormir à noite. A insônia é menos por causa do trauma que sofreram ou das coisas inimagináveis que viram; é resultado do tédio de refugiados numa casa alugada, vazia com a excessão dos quatro colchões, um aquecedor e mais alguns ítens básicos. Tudo que possuem, receberam por caridade. As meninas não estudam e ficam a noite inteira batendo papo ou vendo o que passa na televisão (toda casa alugada na Jordânia tem televisão). Só quando o sol está nascendo é que as meninas, enfim, conseguem adormecer. Elas perdem o dia, mas perdem pouco, pois o dia não traz aventura nem trabalho nem diversão.
A mãe delas, minha anfitriã, jogou mais uma vez as mãos para o ar. “O que podemos fazer? Não tem nada pra elas fazerem mesmo”. E pegou o bule de chá que a filha havia colocado no chão ao lado do aquecedor para nos servir um segundo copo. O chá também foi uma igreja que doou para elas.
Dizemos que já estávamos satisfeitas, que só um copo de chá era suficiente; ela riu e disse que não tem como se satisfazer de chá! Além disso, tínhamos que aceitar a hospitalidade dela, pois é uma “senhora árabe de honra”. Aí eu confessei o quanto sentia falta de chá sírio, e o sorriso dela ficou mais largo.
Tomei, então, mais um gole, olhando para ela, ruminando sobre como esse sorriso não desvanecia. Imaginei que ela pudesse estar ignorando a realidade ou se mostrando corajosa pelo bem das filhas. Mas o sorriso não parecia ser forçado, tinha um ar genuíno. Eu senti que estava na presença de uma mulher forte, de certa forma impérvia aos pesadelos que vivenciou, gastando toda sua poupança para tirar a família de sua casa, que agora era meio de uma zona de Guerra, e trazê-los para um país estranho com o desejo de começar uma vida nova.
Aí ela virou para mim e perguntou: “Quando você morou na Síria, jamais imaginou que pudesse acontecer isso?”
Respondi que não, nunca, de jeito nenhum.
Ao continuar a conversa descobri que ela só cursou o primário, mas mesmo assim gosta de ler textos jurídicos e religiosos. Ainda sonha em ter um filho homem, mesmo até depois de seis filhas. Ela é uma mulher com os sonhos e as esperanças de qualquer mulher.
Decidi que os sorrisos e as risadas eram uma benção, tanto para ela quanto para as filhas dela. Ao nos despedirmos, disse a ela que foi, mesmo, um prazer muito alegre poder conhecê-la.
• Kati Woronka morou mais de dez anos no Oriente Médio, entre eles, quatro na Síria, que considera como um país que a adotou. Ela já trabalhou nas áreas de ação humanitária, pesquisa e apoio a igrejas locais. Atualmente é professora na Universidade do Leste de Londres (University of East London), onde continua apoiando projetos sociais no Oriente Médio e escrevendo ficção. É autora de Sonhando na Medina, um livro que conta sobre a vida de diversas universitárias que vivem numa residência universitária em Bagdá, e que pertencem a grupos diferentes que vivem na Síria. É um livro de ficção muito próximo da realidade e escrito com amor e compreensão. A versão impressa ainda não está disponível em português, mas em audiolivro sim: aqui.
Leia também
Terrorismo no Oriente Médio e a resposta da Igreja
Projeto de fotografia dá voz a refugiados
Crônicas missionárias
Legenda da foto: Destruição na cidade de Aleppo, Síria. Foto: UNESCO
Ao descobrir que eu já morei na Síria, ela perguntou se eu conhecia tal bairro ou tal ponto turístico. Eu contei da minha vida na capital, Damasco, e ela falou de Homs, sua cidade natal. Ela falou de como era linda, antes da guerra. Eu disse que uma vez passei na rodoviária de Homs, que infelizmente era a única parte da cidade dela que eu conhecia, mas que já passara um tempo nos vilarejos das montanhas ao redor da cidade e que achei linda a região.
Aí, ela jogou as mãos no ar, deu uma risadinha, e disse: “Rah!”. Ou seja, “Já foi!”. Eu sabia o que isso significava: o bairro dela foi bombardeado durante meses até quase tudo ser destruído. Sobrou pouco. Literalmente, ela nunca mais poderá voltar para sua casa, porque esta casa não existe mais.
Pensei em mudar de assunto, falar de algo mais leve, mas não existe assunto leve para uma mãe de seis meninas, todas elas tendo dificuldades de dormir à noite. A insônia é menos por causa do trauma que sofreram ou das coisas inimagináveis que viram; é resultado do tédio de refugiados numa casa alugada, vazia com a excessão dos quatro colchões, um aquecedor e mais alguns ítens básicos. Tudo que possuem, receberam por caridade. As meninas não estudam e ficam a noite inteira batendo papo ou vendo o que passa na televisão (toda casa alugada na Jordânia tem televisão). Só quando o sol está nascendo é que as meninas, enfim, conseguem adormecer. Elas perdem o dia, mas perdem pouco, pois o dia não traz aventura nem trabalho nem diversão.
A mãe delas, minha anfitriã, jogou mais uma vez as mãos para o ar. “O que podemos fazer? Não tem nada pra elas fazerem mesmo”. E pegou o bule de chá que a filha havia colocado no chão ao lado do aquecedor para nos servir um segundo copo. O chá também foi uma igreja que doou para elas.
Dizemos que já estávamos satisfeitas, que só um copo de chá era suficiente; ela riu e disse que não tem como se satisfazer de chá! Além disso, tínhamos que aceitar a hospitalidade dela, pois é uma “senhora árabe de honra”. Aí eu confessei o quanto sentia falta de chá sírio, e o sorriso dela ficou mais largo.
Tomei, então, mais um gole, olhando para ela, ruminando sobre como esse sorriso não desvanecia. Imaginei que ela pudesse estar ignorando a realidade ou se mostrando corajosa pelo bem das filhas. Mas o sorriso não parecia ser forçado, tinha um ar genuíno. Eu senti que estava na presença de uma mulher forte, de certa forma impérvia aos pesadelos que vivenciou, gastando toda sua poupança para tirar a família de sua casa, que agora era meio de uma zona de Guerra, e trazê-los para um país estranho com o desejo de começar uma vida nova.
Aí ela virou para mim e perguntou: “Quando você morou na Síria, jamais imaginou que pudesse acontecer isso?”
Respondi que não, nunca, de jeito nenhum.
Ao continuar a conversa descobri que ela só cursou o primário, mas mesmo assim gosta de ler textos jurídicos e religiosos. Ainda sonha em ter um filho homem, mesmo até depois de seis filhas. Ela é uma mulher com os sonhos e as esperanças de qualquer mulher.
Decidi que os sorrisos e as risadas eram uma benção, tanto para ela quanto para as filhas dela. Ao nos despedirmos, disse a ela que foi, mesmo, um prazer muito alegre poder conhecê-la.
• Kati Woronka morou mais de dez anos no Oriente Médio, entre eles, quatro na Síria, que considera como um país que a adotou. Ela já trabalhou nas áreas de ação humanitária, pesquisa e apoio a igrejas locais. Atualmente é professora na Universidade do Leste de Londres (University of East London), onde continua apoiando projetos sociais no Oriente Médio e escrevendo ficção. É autora de Sonhando na Medina, um livro que conta sobre a vida de diversas universitárias que vivem numa residência universitária em Bagdá, e que pertencem a grupos diferentes que vivem na Síria. É um livro de ficção muito próximo da realidade e escrito com amor e compreensão. A versão impressa ainda não está disponível em português, mas em audiolivro sim: aqui.
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