Opinião
- 06 de setembro de 2022
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Abuso sexual: na minha igreja, não!
Por Phelipe Reis
Reconhecer a vulnerabilidade, aprender a prevenir e lidar com abusos na igreja
Estupro de crianças, abuso sexual de mulheres e intimidação de vítimas. Essas foram algumas das acusações confirmadas numa investigação envolvendo a Convenção Batista do Sul, nos Estados Unidos (em inglês, Southern Baptist Convention, SBC). As acusações pesam contra centenas de pastores e líderes de igrejas ligadas à entidade e alguns membros do comitê executivo. A investigação também revelou que havia um esforço para encobrir os casos. As informações foram noticiadas por Christianity Today1, em maio de 2022.
Em 2019, a imprensa já noticiava denúncias envolvendo a SBC, mas a entidade se recusava a investigar. À época, dois jornais norte-americanos criaram um banco de dados com nomes de líderes e voluntários de igrejas que se declararam culpados ou foram condenados por crimes sexuais. Os casos rastreados pelos jornais afetaram mais de 700 vítimas ao longo de 20 anos e envolviam cerca de 220 líderes. Mesmo condenados, alguns voltaram ao púlpito.2
As acusações envolvendo a maior organização protestante dos Estados Unidos chocou pela gravidade dos fatos, pela omissão da entidade e pelo esforço em encobrir os crimes. A imprensa brasileira e sites evangélicos repercutiram o caso, que fez crescer o sinal de alerta para a ocorrência de abusos sexuais em espaços de igrejas e organizações de fé no país.
O tema é sensível, complexo e incômodo, mas precisa ser encarado. O Ministério da Saúde considera violência sexual os casos de assédio, estupro, pornografia infantil e exploração sexual. Agressores e vítimas, podem ser de ambos os sexos, mas pesquisas mostram que grande parte dos agressores é do sexo masculino e entre as vítimas a prevalência é de pessoas do sexo feminino – crianças, adolescentes ou adultas.
O abuso é um padrão de controle coercitivo baseado no sentimento de poder ou dominação de um abusador sobre outra pessoa. Um agressor ganha e mantém o controle por meio de várias táticas que podem ser físicas, emocionais, verbais, financeiras, sexuais ou espirituais. Na prática, o abuso se materializa na forma de maus-tratos, negligência ou violência em relação a outras pessoas, de modo a causar danos físicos, emocionais ou sexuais.
O problema não está apenas lá fora
No Brasil, em 2018, um estupro acontecia a cada 8 minutos.3 O Anuário de Segurança Pública 20224 mostrou que em 2021 foram registrados 66.020 estupros, um aumento de 4,2% em relação ao ano anterior. Do total de vítimas, 75,5% eram vulneráveis, crianças e adultos em alguma condição que as impeçam de oferecerem resistência ao abusador; 88,2% eram do sexo feminino e 11,8% do sexo masculino; em 79,6% dos casos o autor era conhecido da vítima.
Grande parte dos casos de abuso sexual acontecem em ambientes que, geralmente, transmitem segurança, como a casa da família, e são praticados por pessoas conhecidas das vítimas. Isso implica inferir que igrejas são ambientes propícios para ocorrência de abusos, já que muitas pessoas a enxergam como um espaço seguro e frequentado por pessoas de confiança, o que as levam a concluir que um abuso nunca poderia acontecer na igreja.5 A verdade triste e incômoda é que, provavelmente, metade dos membros de sua igreja sofreu algum tipo de abuso. O problema não está “lá fora” apenas.6
O psicólogo, Ageu Heringer Lisboa, comentando a ocorrência de abusos por parte de pastores e líderes, diz: “Quem tem conhecimento da história e da clínica sabe que todas as relações de ajuda têm risco de envolvimentos inadequados. Daí ser necessário a consciência dos vários jogos e dinâmicas emocionais, sexuais, narcísicas e perversas que podem atravessar relacionamentos”. Ou seja, é ingenuidade pressupor que a liderança da igreja não está vulnerável a práticas abusivas, especialmente em sistemas que colocam essas figuras como autoridade suprema, livres de serem contestadas e de procedimentos transparentes de prestação de contas.
José Ildo Swartele de Mello, bispo do Concílio Geral da Igreja Metodista Livre do Brasil, afirma que nenhuma denominação está imune a tais problemas, pois são próprios da natureza humana decaída. O bispo conta que, no âmbito de sua denominação, houve dois episódios públicos relacionados a abuso sexual, que foram devidamente denunciados e apurados. O primeiro resultou na fuga do casal leigo envolvido e o segundo revelou que denúncia contra um pastor era falsa.
O bispo destaca os mecanismos de proteção adotados por sua denominação:
“A busca de uma comunidade bíblica e saudável nos leva a ter um sistema denominacional em que há meios de prestação de contas uns aos outros e às autoridades superiores. Nossa Aliança de Membro e nosso processo para entrada e permanência no Ministério Pastoral exige integridade de vida, idoneidade e uma vida comunitária frutífera e de interação com membros e pastores mais experientes, o que dificulta uma vida dupla por quem quer que seja.”
Como prevenir e lidar com abusos
Igreja e organizações cristãs devem seguir diretrizes para evitar abusos. Neste sentido, é fundamental a criação de uma Política de Proteção – um documento escrito com orientações e diretrizes sobre como prevenir e como lidar em situações de abusos ou suspeitas de abusos. Após ser criada, a política de proteção deve ser comunicada a toda a igreja, de forma clara e regular, mostrando o compromisso da igreja no combate ao abuso. Falar abertamente sobre o assunto adverte os abusadores de que eles não encontrarão um lugar fácil para praticar abusos.
Entre dicas práticas preventivas, pode-se destacar o preparo necessário de voluntários que lidam com crianças em igrejas e organizações cristãs. Essas pessoas precisam passar por treinamento de prevenção ao abuso infantil e serem submetidas a um período de espera para serem colocadas em posição de liderança.
Nunca um adulto deve ficar sozinho com uma criança, em atividades e espaços da igreja ou organização cristã. É indicado que haja sempre dois adultos, podendo ser dois homens, duas mulheres ou um casal. Em atividades da igreja com pernoite, uma criança ou um jovem não podem ficar na barraca ou no quarto de um líder adulto, a menos que esse adulto seja seu pai, sua mãe ou seu responsável legal.
Quando alguma suspeita ou algum caso de abuso for relatado no contexto de igrejas e organizações de fé, é importante ouvir a vítima. A igreja tem a responsabilidade de ajudar os que sofreram abuso e proteger as pessoas vulneráveis de futuros abusos. Não é indicado manter a apuração do abuso apenas no âmbito da igreja, já que o abuso é um crime e, portanto, deve ser tratado pela polícia.
Pastores e líderes precisam romper o silêncio, mesmo que o abusador seja um colega de ministério, familiar, amigo ou alguém em posição superior. Membros de igrejas também precisam dar voz às vítimas e denunciar nos canais oficiais, como o Disque 100, quando a vítima for criança, adolescente, pessoa idosa ou com deficiência.
Também é importante respeitar a autonomia das vítimas adultas de violência por parceiro íntimo e permitir que elas tomem a decisão sobre denunciar o abuso; remover os abusadores publicamente da igreja; e formar uma equipe de cuidado pastoral especialmente treinada para auxiliar as vítimas no processo de recuperação, o que não substitui o acompanhamento por profissionais.
Responsabilidade, reputação e justiça
O pastor Matt Henslee é enfático ao dizer que se algum caso de abuso acontecer numa igreja, a reputação da entidade deve ser a menor das preocupações da liderança. Igrejas e organizações cristãs, especialmente suas lideranças, precisam cultivar profundo respeito pela vida e dignidade humana, ensinando e vivendo princípios que valorizam crianças, adolescentes, jovens, adultos e idosos. Isso envolve a sexualidade, considerada um dom de Deus para o contexto de amor e confiança mútua.
A igreja deve reconhecer sua vulnerabilidade, por causa da pecaminosidade humana, estar preparada para evitar abusos e lidar com eles, denunciando às autoridades e promovendo caminhos de cura para as vítimas.
Numa perspectiva teológica, Ageu Lisboa escreve: “A partir do anúncio de que o descendente de Eva esmagaria a cabeça da serpente, temos base para crer e agir a fim de evitar e eliminar processos de destruição e morte em pessoas, famílias e comunidades. Jesus nos deu a fórmula para sarar a nossa terra, trazendo-nos vida e justiça: amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a nós mesmos.”7
Elsie Gilbert, jornalista e coordenadora da Rede Mãos Dadas, que trabalha com crianças e adolescentes, acredita que a discussão sobre abuso sexual precisa partir da verdade de que “todos pecamos e carecemos da graça de Deus” e, portanto, “precisamos criar regras para nos proteger e não ferirmos uns aos outros”. Para ela, “a grande questão, muitas das vezes, não é se o abuso ocorreu ou não, mas sim por que permitimos que isso acontecesse dentro de nossas igrejas. Uma vez que o abuso aconteceu, de que lado você vai ficar: do lado do poder ou do amor pela justiça?”
Versão ampliada da reportagem “Abuso sexual: na minha igreja, não!”, publicada na edição 397 de Ultimato.
Notas
1- https://www.christianitytoday.com/news/2022/may/southern-baptist-abuse-investigation-sbc-ec-legal-survivors.html
2- https://www.chron.com/news/investigations/article/Investigation-reveals-700-victims-of-Southern-13591612.php
3- https://www.ufrgs.br/humanista/2020/12/17/cultura-do-estupro-85-das-vitimas-no-brasil-sao-mulheres-e-70-dos-casos-envolvem-criancas-ou-vulneraveis/
4- https://forumseguranca.org.br/anuario-brasileiro-seguranca-publica/
5- https://faithfulmoms.org/preventing-child-abuse-at-church/
6- https://www.cbeinternational.org/resource/article/mutuality-blog-magazine/9-anti-abuse-practices-your-church-needs-adopt
7- https://cppc.org.br/noticias/violencia-a-invencao-cotidiana-do-mal-por-ageu-heringer-lisboa.html
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É natural do Amazonas, casado com Luíze e pai da Elis e do Joaquim. Graduado em Comunicação Social/Jornalismo pela Universidade Federal do Amazonas (UFAM) e mestre em Missiologia no Centro Evangélico de Missões (CEM). É missionário e colaborador do Portal Ultimato.
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