Opinião
- 03 de julho de 2018
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Abortar não é legal
Por William Lane
O tema da descriminalização do aborto voltou ao debate público, especialmente depois que a relatora da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 442 do STF, ministra Rosa Weber, convocou audiência pública para discutir o assunto. Além disso, a alteração recente na lei do aborto na vizinha Argentina, e a aprovação em referendo à emenda constitucional na Irlanda, fazem a sociedade brasileira voltar a discutir e ensaiar uma aprovação do aborto aqui. No segundo semestre, durante a corrida eleitoral, provavelmente haverá também uma polarização da discussão com fins eleitoreiros.
Sempre que o assunto é discutido publicamente e o governo e a sociedade civil se manifestam, há tipicamente quatro argumentos em defesa do aborto: o aborto é um problema de saúde pública; a legalização é necessária porque o aborto já é praticado clandestinamente, colocando em risco a vida da mulher; a mulher tem o direito de livre escolha de ter ou não um bebê; o estado é laico e decisões como essa não podem ter interferência religiosa. Contudo, os argumentos são falaciosos.
Primeiro, quando o governo alega que o aborto é uma questão de saúde pública, dá-se a impressão de que as decisões do governo são estritamente técnicas e não levam em conta questões religiosas, ideológicas, éticas e morais. No entanto, se o governo tomasse decisões na área da saúde priorizando, de fato, o bem estar do povo e a qualidade do serviço público de saúde, teria de adotar diversas medidas impopulares. Carnaval é um problema de saúde pública. É sabido que doenças sexualmente transmissíveis, gravidez indesejada, e consequente abortos, estupros e outros crimes são consequências diretas do Carnaval. É verdade que o Ministério da Saúde alerta para os riscos das DSTs e distribui, pelo menos em alguns lugares, preservativos. Contudo isso não é capaz de eliminar o problema. O tabaco e o álcool também são problemas de saúde pública, responsáveis por grande parte de doenças da população e, naturalmente, demandam estrutura do serviço público de saúde. Ainda que o governo sobretaxe esses produtos, iniba a propaganda e alerte a população, essas ações têm sido pouco eficazes em solucionar o problema de saúde pública. Ainda outro problema crescente de saúde pública é o açúcar que tem sido responsável por diversas doenças que também comprometem o sistema de saúde. Se o governo realmente agisse puramente pelos critérios da saúde pública, proibiria o Carnaval, o consumo de álcool, tabaco e açúcar. Esse argumento não é suficiente para a liberação do aborto.
Segundo, argumenta-se que a proibição do aborto coloca em risco a vida da mulher, pois o aborto é praticado por clínicas clandestinas. Realmente, a falta de condições e procedimentos adequados compromete a saúde da mulher. Contudo, o que coloca em risco a vida da mulher não são as clínicas clandestinas, como se a eficácia do procedimento médico dependesse da legislação, e uma vez aprovado o aborto, essas clínicas estariam instantaneamente seguras. Imagino que haja muitas clínicas de alto padrão que praticam aborto sem risco à mulher, assim como o serviço público nos casos previstos na lei brasileira. O aborto que coloca em risco a saúde da mulher provavelmente é feito por não profissionais, por profissionais incompetentes ou, mesmo, por autoabortos. O problema não é as clínicas clandestinas, mas ao que chamo de gravidez clandestina. Essas clínicas continuarão existindo. A adolescente que engravidou e não quer que os pais saibam, a estudante que não deseja ter uma criança antes de terminar o seu curso, e a mulher que engravidou com um caso fora do casamento vão continuar procurando os procedimentos clandestinos. Além do mais, se o governo aprovar o aborto e adotar um protocolo semelhante ao que adota hoje para os abortos legais ou ao que adota quando um casal não deseja mais ter filhos e opta por uma cirurgia de esterilização da mulher ou do homem, o serviço público provavelmente só realizará o aborto depois de a mulher passar por psicólogo, assistente social e orientação médica. Não acredito que uma mulher poderá simplesmente entrar num posto de saúde ou hospital público e solicitar o aborto. Se for adolescente, terá de ser acompanhada por adulto responsável. Por isso, os procedimentos clandestinos continuarão existindo.
Terceiro, o aborto pretende garantir o direito de escolha da mulher. Se de um lado isso pode parecer um benefício à mulher, por outro, coloca sobre ela toda a responsabilidade da gravidez e da decisão de abortar. É curioso que a lei criminaliza a gestante e o profissional que praticar o aborto. Isso porque entendemos que a responsabilidade da gravidez é da mulher e eximimos o homem que a engravidou de toda responsabilidade. Ele também é responsável. Contudo, as escolhas precisam ser feitas antes dos atos e suas consequências. Do contrário, é semelhante ao indivíduo que provoca um acidente fatal de trânsito e alega não ter tido a intenção de matar ninguém.
Em quarto lugar, frequentemente se diz que o estado é laico e que uma decisão dessa não pode ter interferência da religião. Todavia, um estado laico significa que o mesmo não tem uma religião oficial, e isso não significa que indivíduos não possam ter suas convicções religiosas e as manifestarem publicamente. Também não significa que o estado não sustente valores éticos e morais, inclusive inspirados por valores e convicções religiosas. Por outro lado, significa que se a religião não deve interferir no estado, também o estado não deve interferir nas crenças das pessoas. O estado não pode determinar o que esse ou aquele grupo religioso deve crer. As entidades religiosas, enquanto organização civil, e os seus adeptos, enquanto cidadãos, respondem sim por seus atos perante o poder público, porém, este não legisla em matéria de fé e crença. As pessoas podem sim, motivadas por suas convicções religiosas, manifestar sua contrariedade às decisões do estado.
É verdade que não devemos fechar os olhos para os dados alarmantes das consequências de abortos ilegais praticados no Brasil. Mas também não podemos ser induzidos por falácias repetidas constante e massivamente.
Finalmente, se de um lado esses argumentos expõem o problema, por outro, deixam de mostrar outra realidade, as consequências físicas, emocionais e psicológicas para a mulher que passa pelo aborto. Não mostra também os interesses do mercado de órgãos e tecidos humanos que dependem dos abortos. O aborto é mais uma forma de violência à mulher camuflada de direito de escolha, não porque ela poderá interromper a gravidez indesejada, mas porque toda a responsabilidade da gravidez e do cuidado da criança é colocada sobre ela.
Leia mais
» Eu aborto, tu abortas, nós abortamos: Deístas e direito da mulher
» Aborto – Existe algum ponto que marque a transformação do não humano para o humano?
» A Criança, a Igreja e a Missão [Dan Brewster]
O tema da descriminalização do aborto voltou ao debate público, especialmente depois que a relatora da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 442 do STF, ministra Rosa Weber, convocou audiência pública para discutir o assunto. Além disso, a alteração recente na lei do aborto na vizinha Argentina, e a aprovação em referendo à emenda constitucional na Irlanda, fazem a sociedade brasileira voltar a discutir e ensaiar uma aprovação do aborto aqui. No segundo semestre, durante a corrida eleitoral, provavelmente haverá também uma polarização da discussão com fins eleitoreiros.
Sempre que o assunto é discutido publicamente e o governo e a sociedade civil se manifestam, há tipicamente quatro argumentos em defesa do aborto: o aborto é um problema de saúde pública; a legalização é necessária porque o aborto já é praticado clandestinamente, colocando em risco a vida da mulher; a mulher tem o direito de livre escolha de ter ou não um bebê; o estado é laico e decisões como essa não podem ter interferência religiosa. Contudo, os argumentos são falaciosos.
Primeiro, quando o governo alega que o aborto é uma questão de saúde pública, dá-se a impressão de que as decisões do governo são estritamente técnicas e não levam em conta questões religiosas, ideológicas, éticas e morais. No entanto, se o governo tomasse decisões na área da saúde priorizando, de fato, o bem estar do povo e a qualidade do serviço público de saúde, teria de adotar diversas medidas impopulares. Carnaval é um problema de saúde pública. É sabido que doenças sexualmente transmissíveis, gravidez indesejada, e consequente abortos, estupros e outros crimes são consequências diretas do Carnaval. É verdade que o Ministério da Saúde alerta para os riscos das DSTs e distribui, pelo menos em alguns lugares, preservativos. Contudo isso não é capaz de eliminar o problema. O tabaco e o álcool também são problemas de saúde pública, responsáveis por grande parte de doenças da população e, naturalmente, demandam estrutura do serviço público de saúde. Ainda que o governo sobretaxe esses produtos, iniba a propaganda e alerte a população, essas ações têm sido pouco eficazes em solucionar o problema de saúde pública. Ainda outro problema crescente de saúde pública é o açúcar que tem sido responsável por diversas doenças que também comprometem o sistema de saúde. Se o governo realmente agisse puramente pelos critérios da saúde pública, proibiria o Carnaval, o consumo de álcool, tabaco e açúcar. Esse argumento não é suficiente para a liberação do aborto.
Segundo, argumenta-se que a proibição do aborto coloca em risco a vida da mulher, pois o aborto é praticado por clínicas clandestinas. Realmente, a falta de condições e procedimentos adequados compromete a saúde da mulher. Contudo, o que coloca em risco a vida da mulher não são as clínicas clandestinas, como se a eficácia do procedimento médico dependesse da legislação, e uma vez aprovado o aborto, essas clínicas estariam instantaneamente seguras. Imagino que haja muitas clínicas de alto padrão que praticam aborto sem risco à mulher, assim como o serviço público nos casos previstos na lei brasileira. O aborto que coloca em risco a saúde da mulher provavelmente é feito por não profissionais, por profissionais incompetentes ou, mesmo, por autoabortos. O problema não é as clínicas clandestinas, mas ao que chamo de gravidez clandestina. Essas clínicas continuarão existindo. A adolescente que engravidou e não quer que os pais saibam, a estudante que não deseja ter uma criança antes de terminar o seu curso, e a mulher que engravidou com um caso fora do casamento vão continuar procurando os procedimentos clandestinos. Além do mais, se o governo aprovar o aborto e adotar um protocolo semelhante ao que adota hoje para os abortos legais ou ao que adota quando um casal não deseja mais ter filhos e opta por uma cirurgia de esterilização da mulher ou do homem, o serviço público provavelmente só realizará o aborto depois de a mulher passar por psicólogo, assistente social e orientação médica. Não acredito que uma mulher poderá simplesmente entrar num posto de saúde ou hospital público e solicitar o aborto. Se for adolescente, terá de ser acompanhada por adulto responsável. Por isso, os procedimentos clandestinos continuarão existindo.
Terceiro, o aborto pretende garantir o direito de escolha da mulher. Se de um lado isso pode parecer um benefício à mulher, por outro, coloca sobre ela toda a responsabilidade da gravidez e da decisão de abortar. É curioso que a lei criminaliza a gestante e o profissional que praticar o aborto. Isso porque entendemos que a responsabilidade da gravidez é da mulher e eximimos o homem que a engravidou de toda responsabilidade. Ele também é responsável. Contudo, as escolhas precisam ser feitas antes dos atos e suas consequências. Do contrário, é semelhante ao indivíduo que provoca um acidente fatal de trânsito e alega não ter tido a intenção de matar ninguém.
Em quarto lugar, frequentemente se diz que o estado é laico e que uma decisão dessa não pode ter interferência da religião. Todavia, um estado laico significa que o mesmo não tem uma religião oficial, e isso não significa que indivíduos não possam ter suas convicções religiosas e as manifestarem publicamente. Também não significa que o estado não sustente valores éticos e morais, inclusive inspirados por valores e convicções religiosas. Por outro lado, significa que se a religião não deve interferir no estado, também o estado não deve interferir nas crenças das pessoas. O estado não pode determinar o que esse ou aquele grupo religioso deve crer. As entidades religiosas, enquanto organização civil, e os seus adeptos, enquanto cidadãos, respondem sim por seus atos perante o poder público, porém, este não legisla em matéria de fé e crença. As pessoas podem sim, motivadas por suas convicções religiosas, manifestar sua contrariedade às decisões do estado.
É verdade que não devemos fechar os olhos para os dados alarmantes das consequências de abortos ilegais praticados no Brasil. Mas também não podemos ser induzidos por falácias repetidas constante e massivamente.
Finalmente, se de um lado esses argumentos expõem o problema, por outro, deixam de mostrar outra realidade, as consequências físicas, emocionais e psicológicas para a mulher que passa pelo aborto. Não mostra também os interesses do mercado de órgãos e tecidos humanos que dependem dos abortos. O aborto é mais uma forma de violência à mulher camuflada de direito de escolha, não porque ela poderá interromper a gravidez indesejada, mas porque toda a responsabilidade da gravidez e do cuidado da criança é colocada sobre ela.
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» Aborto – Existe algum ponto que marque a transformação do não humano para o humano?
» A Criança, a Igreja e a Missão [Dan Brewster]
Pastor presbiteriano e doutor em Antigo Testamento, é professor e capelão no Seminário Presbiteriano do Sul, e tradutor de obras teológicas. É autor do livro O propósito bíblico da missão.
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