Opinião
- 05 de fevereiro de 2010
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A voz de Deus, a voz da covardia?
Bráulia Ribeiro
Do meu lado um jovem líder que trabalhou alguns anos comigo discutia com outro:
-- O palestrante quer ir comigo jantar fora, por que eu não posso levá-lo?
-- Por quê? Ué, porque eu não quero e pronto. Não preciso te dar nenhuma razão, sou o líder desta conferência.
Eu era apenas uma expectadora fortuita da discussão, mas na hora em que ouvi “não quero e pronto, sou o líder” na boca daquele jovem, senti um vento frio soprar no mundo, como daqueles que sopram quando alguém comete um pecado capital contra o universo. Conversei depois com o rapaz, me desculpando, certamente eu devo ter falado assim com ele muitas vezes no passado. Foi como assistir a um filme de terror onde eu mesma era a protagonista.
Igreja lotada, domingo à noite, o louvor flui suave. O pregador no microfone diz:
-- Vamos ouvir agora uma mensagem vinda de Deus.
Ouvimos, se foi Deus não sei, mas não me disse muita coisa.
O louvor continua a nos embalar. O encarregado da oferta aproveita e convence:
-- Você não está dando para nós. Está dando para Deus. E ele vai retribuir sua generosidade, mas vai também saber punir se você pode dar e não quer.
Assim que ouço a frase categórica sou transportada para uma masmorra da Idade Média, à espera da sentença do inquisidor. Tudo é escuro, úmido e frio, minhas mãos e rosto se apertam na grade de ferro, o coração bate forte de medo e dor sabendo que meu destino está nas mãos de pessoas que se sentem capazes de serem a própria voz de Deus na terra.
Ajudei na revisão de um livro e enquanto lia o texto em voz alta repetidas vezes não pude deixar de notar o tom extremamente apologético da autora. Como a conheço pessoalmente, chamei-a para uma conversa “internética”.
-- Landa, suas declarações são muito tímidas, você se defende muito. Acho que talvez em inglês isto seja necessário, mas em português fica meio estranho. Parece que você duvida do que diz, se desculpa demais ao afirmar certas coisas.
-- Bráulia, tem que ser assim. Não se preocupe se parecer demais. Meu tom humilde foi intencional.
“Tratutore traittore”, claro continuei arrancando umas trezentas frases desculpadoras e permitindo, por causa da vontade da autora, umas tantas outras que gostaria de ter tirado.
Tem uma coisa que se chama espírito da época. Por espírito não quero dizer uma entidade mística sobrenatural, mas uma atmosfera cognitiva, uma nuvem de conhecimento que envolve toda a humanidade nos tornando sensíveis para algumas coisas, conscientes de algumas ideias e alheios a outras.
Os seres humanos hoje são profundamente conscientes de sua individualidade. São conscientes de sua habilidade de tomar decisões, de seu poder de fogo. O jovem se sente dono de seu destino, e é. É parte do espírito da época a autoajuda, autoconquista, a independência, o se reinventar, o recomeço. Deveria agora acrescentar uma série de acadêmicos famosos que concordam comigo, mas, me desculpem, não faço por absoluta falta de espaço. Melhor ainda seria dar exemplos musicais e de filmes, porque na arte vemos este espírito bem claramente. Tenho certeza de que se você pesquisar vai encontrá-los em profusão.
A igreja evangélica brasileira, no entanto, na contramão da história, continua usando uma retórica medieval. Não somos capazes de propor ideias com coerência e argumentação inteligente. Por isto, na maioria das vezes, optamos por impor ideias por meio de manipulação mística. As expressões “foi Deus”, “é de Deus”, “em nome de Deus”, corroboram afirmações desconexas, interesseiras, cruéis, ou simplesmente inúteis. Usamos clichês religiosos por falta de raciocínios pautados pela lógica. Nos ocultamos atrás da suposta vontade de Deus para não nos expor ao escrutínio de nossos liderados. Tratamos as pessoas como um rebanho de ovelhas burras e a nós mesmos como seres semidivinos, infalíveis, um verdadeiro ato de esquizofrenia religiosa.
Esquecemos que as metáforas que Cristo usava para si hoje se aplicam a nós, seu corpo. Não somos simplesmente ovelhas. Somos pastores, somos o pão, a porta, o caminho, a verdade e a vida. Esta “verdade”, devidamente traduzida para o espírito da época, não deve se impor. Ela chega como uma proposta lógica, coerente respaldada pela própria realidade humana que nos cerca. Ela não chega como a única opção de maneira alguma. No mundo de “fast-everything”, multiuso, multifacetas, tudo é possível. As propostas são inúmeras; as opções religiosas, costumizadas; a verdade (qualquer que seja ela) está ao alcance de todos. Deu-se a largada. Todos correm em busca de fregueses. Os prepotentes encontrarão súditos. Os mais humildes encontrarão os verdadeiros servos. (Fp 2.5-8)
Uma teologia coerente com o século 21 admite seus erros, revisa sua história, reconhece seus dogmas, tem medo de si ensimesmar, de se afogar em seu próprio vômito. É uma teologia dialógica. Ela necessita do diálogo com o outro como ar para respirar; checa sua autenticidade nas ruas e não nas catedrais.
Hoje, se pudesse, revisaria de novo o livro da Landa e lhe devolveria as frases que cortei. Hoje, se eu pudesse, não seria a líder, seria a serva. Hoje, se eu pudesse, não seria Deus, seria o outro. Assim penso que cumpriria a lei de Cristo. Só hoje.
Artigo publicado originalmente na revista Eclésia.
• Bráulia Ribeiro trabalhou na Amazônia durante 30 anos. Hoje mora em Kailua-Kona com sua família e está envolvida em projetos internacionais de desenvolvimento na Ásia. É autora de Chamado Radical (Editora Ultimato). braulia.ribeiro@uol.com.br
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Do meu lado um jovem líder que trabalhou alguns anos comigo discutia com outro:
-- O palestrante quer ir comigo jantar fora, por que eu não posso levá-lo?
-- Por quê? Ué, porque eu não quero e pronto. Não preciso te dar nenhuma razão, sou o líder desta conferência.
Eu era apenas uma expectadora fortuita da discussão, mas na hora em que ouvi “não quero e pronto, sou o líder” na boca daquele jovem, senti um vento frio soprar no mundo, como daqueles que sopram quando alguém comete um pecado capital contra o universo. Conversei depois com o rapaz, me desculpando, certamente eu devo ter falado assim com ele muitas vezes no passado. Foi como assistir a um filme de terror onde eu mesma era a protagonista.
Igreja lotada, domingo à noite, o louvor flui suave. O pregador no microfone diz:
-- Vamos ouvir agora uma mensagem vinda de Deus.
Ouvimos, se foi Deus não sei, mas não me disse muita coisa.
O louvor continua a nos embalar. O encarregado da oferta aproveita e convence:
-- Você não está dando para nós. Está dando para Deus. E ele vai retribuir sua generosidade, mas vai também saber punir se você pode dar e não quer.
Assim que ouço a frase categórica sou transportada para uma masmorra da Idade Média, à espera da sentença do inquisidor. Tudo é escuro, úmido e frio, minhas mãos e rosto se apertam na grade de ferro, o coração bate forte de medo e dor sabendo que meu destino está nas mãos de pessoas que se sentem capazes de serem a própria voz de Deus na terra.
Ajudei na revisão de um livro e enquanto lia o texto em voz alta repetidas vezes não pude deixar de notar o tom extremamente apologético da autora. Como a conheço pessoalmente, chamei-a para uma conversa “internética”.
-- Landa, suas declarações são muito tímidas, você se defende muito. Acho que talvez em inglês isto seja necessário, mas em português fica meio estranho. Parece que você duvida do que diz, se desculpa demais ao afirmar certas coisas.
-- Bráulia, tem que ser assim. Não se preocupe se parecer demais. Meu tom humilde foi intencional.
“Tratutore traittore”, claro continuei arrancando umas trezentas frases desculpadoras e permitindo, por causa da vontade da autora, umas tantas outras que gostaria de ter tirado.
Tem uma coisa que se chama espírito da época. Por espírito não quero dizer uma entidade mística sobrenatural, mas uma atmosfera cognitiva, uma nuvem de conhecimento que envolve toda a humanidade nos tornando sensíveis para algumas coisas, conscientes de algumas ideias e alheios a outras.
Os seres humanos hoje são profundamente conscientes de sua individualidade. São conscientes de sua habilidade de tomar decisões, de seu poder de fogo. O jovem se sente dono de seu destino, e é. É parte do espírito da época a autoajuda, autoconquista, a independência, o se reinventar, o recomeço. Deveria agora acrescentar uma série de acadêmicos famosos que concordam comigo, mas, me desculpem, não faço por absoluta falta de espaço. Melhor ainda seria dar exemplos musicais e de filmes, porque na arte vemos este espírito bem claramente. Tenho certeza de que se você pesquisar vai encontrá-los em profusão.
A igreja evangélica brasileira, no entanto, na contramão da história, continua usando uma retórica medieval. Não somos capazes de propor ideias com coerência e argumentação inteligente. Por isto, na maioria das vezes, optamos por impor ideias por meio de manipulação mística. As expressões “foi Deus”, “é de Deus”, “em nome de Deus”, corroboram afirmações desconexas, interesseiras, cruéis, ou simplesmente inúteis. Usamos clichês religiosos por falta de raciocínios pautados pela lógica. Nos ocultamos atrás da suposta vontade de Deus para não nos expor ao escrutínio de nossos liderados. Tratamos as pessoas como um rebanho de ovelhas burras e a nós mesmos como seres semidivinos, infalíveis, um verdadeiro ato de esquizofrenia religiosa.
Esquecemos que as metáforas que Cristo usava para si hoje se aplicam a nós, seu corpo. Não somos simplesmente ovelhas. Somos pastores, somos o pão, a porta, o caminho, a verdade e a vida. Esta “verdade”, devidamente traduzida para o espírito da época, não deve se impor. Ela chega como uma proposta lógica, coerente respaldada pela própria realidade humana que nos cerca. Ela não chega como a única opção de maneira alguma. No mundo de “fast-everything”, multiuso, multifacetas, tudo é possível. As propostas são inúmeras; as opções religiosas, costumizadas; a verdade (qualquer que seja ela) está ao alcance de todos. Deu-se a largada. Todos correm em busca de fregueses. Os prepotentes encontrarão súditos. Os mais humildes encontrarão os verdadeiros servos. (Fp 2.5-8)
Uma teologia coerente com o século 21 admite seus erros, revisa sua história, reconhece seus dogmas, tem medo de si ensimesmar, de se afogar em seu próprio vômito. É uma teologia dialógica. Ela necessita do diálogo com o outro como ar para respirar; checa sua autenticidade nas ruas e não nas catedrais.
Hoje, se pudesse, revisaria de novo o livro da Landa e lhe devolveria as frases que cortei. Hoje, se eu pudesse, não seria a líder, seria a serva. Hoje, se eu pudesse, não seria Deus, seria o outro. Assim penso que cumpriria a lei de Cristo. Só hoje.
Artigo publicado originalmente na revista Eclésia.
• Bráulia Ribeiro trabalhou na Amazônia durante 30 anos. Hoje mora em Kailua-Kona com sua família e está envolvida em projetos internacionais de desenvolvimento na Ásia. É autora de Chamado Radical (Editora Ultimato). braulia.ribeiro@uol.com.br
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