Opinião
- 02 de março de 2022
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A validade permanente do culto presencial
Por Luiz Fernando dos Santos
“Os céus louvam as tuas maravilhas, Senhor, e a tua fidelidade na assembleia dos santos. Na assembleia dos santos Deus é temível, mais do que todos os que o rodeiam” (Sl 89.5, 7).
Em muitos ambientes cristãos o culto comunitário presencial parece sofrer algum tipo de descrédito em detrimento dos cultos remotos, tipo live ou os que usam plataformas que permitem algum tipo de interação. Nos dois casos, não obstante o caráter sempre suplementar e emergencial fundados na graça comum para o bem dos santos, a experiência cristã da adoração sofre muitos prejuízos, por ser tão limitada ou por estar perigosamente no controle daquele que ‘adora’.
A pandemia não fez Deus mudar de ideia no que diz respeito ao culto coletivo e presencial. Talvez ela tenha feito vir à tona um problema estrutural do coração de muitos crentes, mas também, uma deficiência da igreja na definição do que seja de fato, um culto evangélico e bíblico.
Esse descrédito pelo qual passa o culto tem a ver com uma compreensão equivocada do que significa adorar. O centro da adoração não é o homem, nem os seus desejos, suas necessidades e o seu gosto estético. O centro do culto é Deus e a sua autorrevelação. Assim, embora haja muita liberdade quanto a forma, não existe liberdade para definir o que o culto é. O culto não é uma ação humana em primeiro lugar. O culto é uma resposta de fé do homem a Deus, dentro do contexto da Aliança, onde Deus dá a conhecer o seu ser, pessoa e plano de redenção. Logo, uma teologia superficial inevitavelmente produzirá um culto inconsistente, um culto que talvez não faça mesmo muito falta na vida das pessoas.
Culto e Aliança
O culto presencial, comunitário, é parte integrante do ethos do povo de Deus. O Senhor criou um povo peculiar para que vivesse sob as suas bênçãos e que se relacionasse com Ele por meio da adoração. Esse culto ordenado possui três dimensões que se exigem reciprocamente: o culto pessoal, doméstico e comunitário. Não são opções que substituem ou que se excluem, mas atitudes responsivas à graça, ao amor e à Palavra de Deus e a sua misericórdia experimentados em nossa caminhada.
O culto presencial e coletivo está no centro da Aliança e é manifesta desde o dia em que Noé saiu da arca (Gn 8.20,21). Desde o culto ordenado e requerido no ajuntamento solene tornou-se uma das marcas distintivas do povo de Deus1.
No novo Testamento, depois do derramamento do Espírito Santo em Pentecostes, o povo criado naquela manhã foi vocacionado à adoração: “Vocês, porém, são geração eleita, sacerdócio real, nação santa, povo exclusivo de Deus, para anunciar as grandezas daquele que os chamou das trevas para a sua maravilhosa luz” (1Pe 2.9). Como um povo sacerdotal, fica evidente que parte desse anúncio tem a ver com o culto público e presencial que faz desfilar diante das nações a glória de Deus e convida os homens a entrarem na Aliança. Abrir mão da reunião solene, da assembleia dos santos, é renunciar a própria identidade como povo de Deus em missão no mundo.
O privilégio e o preceito do culto presencial
A pandemia impôs um duro golpe para as igrejas cristãs, a suspensão temporária das nossas reuniões públicas e presenciais. Fomos forçados, à luz da natureza e da prudência, a ‘abrir mão’ de um dos nossos mais prazerosos privilégios em Cristo: a celebração da graça na vida fraterna em comunidade de adoração, isto é, o culto. Também tivemos consoladores e encorajadores encontros virtuais, que ninguém duvide disso. Nos dias mais duros de isolamento social, foi um bálsamo poder ver o rosto e encontrar remotamente os irmãos que há tempo não víamos. Também pudemos orar juntos e uns pelos outros, mas, não há como negar que essa experiência nunca foi completa e nem era para ser.
A retomada plena dos nossos cultos presenciais vai depender não só de uma melhor e mais aprofundada concepção do que é o culto e o seu lugar na Aliança, mas também de ter em nossos corações sentimentos bíblicos, como esses: “Como é agradável o lugar da tua habitação, Senhor dos Exércitos! A minha alma anela, e até desfalece pelos átrios do Senhor; o meu coração e o meu corpo cantam de alegria ao Deus vivo” (Sl 84.1-3). Mais que um lugar para a adoração a igreja é um povo que adora, por isso, esse sentimento de desejar encontrar Deus em sua habitação: “Contudo tu és santo, entronizado sobre os louvores de Israel” (Sl 22.3), deve ser cultivado no coração adorante.
A pandemia foi para a igreja uma espécie de exílio espiritual. Sentir saudades do culto presencial deveria ser encarado por nós como um sinal de saúde espiritual, como uma maneira inclusive de medir a nossa maturidade como discípulos de Cristo que compreenderam a natureza e a dinâmica da igreja, sua vida e missão: um povo convocado para adorar.
Esse nosso privilégio será mais sentido quando pudermos cantar, de novo com o salmista, “Alegrei-me com os que me disseram: Vamos à casa do Senhor!” (Sl 122.1). O contexto deste salmo de romagem retrata bem o sentimento do peregrino ao concluir a sua jornada chegando em Jerusalém. O motivo dessa alegria, além do ‘encontro com Deus’ e os demais adoradores de tantos lugares distantes, está relacionada com o fato de que experimentaram os cuidados de Deus durante a dura jornada da peregrinação.
Enfrentaram as intempéries do tempo, os perigos do deserto como animais selvagens, salteadores e acidentes e agora, estão ali, para adorar, para agradecer ao Senhor por todas as suas providências. Uma bela ‘parábola’ para o nosso retorno.
Esse nosso privilégio do culto presencial vem acompanhado de um claro preceito bíblico para nos reunirmos: “Não deixemos de reunir-nos como igreja, segundo o costume de alguns, mas encorajemo-nos uns aos outros, ainda mais quando vocês veem que se aproxima o Dia” (Hb 10.25). Desigrejar-se não é exatamente uma coisa virtuosa ou justificável, embora se possa explicar esse fenômeno, mas um costume reprovável segundo as Escrituras. A virtude se encontra no preceito de reunir-nos como igreja e no contexto de Hebreus, em meio a muitas dificuldades, perseguições, inclusive. É nosso dever como irmãos encorajar, sem julgamentos e acusações, motivados pelo amor, os nossos irmãos para que retomem a participação nos cultos presenciais da igreja.
A necessidade de participação efetiva e afetiva no culto público, como preceito, está ligada à natureza da Aliança, realidade expressa no culto presencial. Pois, a Aliança com Deus e com os irmãos, é uma espécie de matrimônio. Não é possível conceber um casamento remoto, unicamente à distância.
A bênção do culto presencial
O culto presencial acarreta bênçãos espirituais que não podem ser mensuradas em sua totalidade, mas podemos inferir das Escrituras algumas delas. A começar as bênçãos da fraternidade e o asseguramento da vida eterna: “Como é bom e agradável quando os irmãos convivem em união! É como óleo precioso derramado sobre a cabeça, que desce pela barba, a barba de Arão, até a gola das suas vestes. É como o orvalho do Hermom quando desce sobre os montes de Sião. Ali o Senhor concede a bênção da vida para sempre” (Sl 133.1-3). A referência à Aarão é importante. Há aqui uma evidente alusão à natureza coorporativa do povo de Deus em adoração. O encontro com os irmãos na presença de Deus é um refrigério para a alma. Esse encontro, em tudo diferente em natureza, propósito e consequência dos demais encontros da semana, traz sanidade, equilíbrio e paz. Na companhia dos irmãos, no culto presencial, experimentamos uma ação terapêutica do Espírito Santo que reposiciona as nossas prioridades e as nossas necessidades. O culto presencial, essa mutualidade, nos convoca para uma vida ‘outrocentrada’ e nos faz romper com vício de nos fazer o centro de nossas atenções.
No ajuntamento solene o fato de adorarmos a Deus na beleza de sua santidade (Sl 96.9) cura os nossos olhos tantas vezes feridos pela fealdade do pecado e os abre para que contemplamos a beleza do amor de Deus espargido sobre a criação. No final, nos reunir para o culto nos dá segurança quanto a vida eterna.
A descrição da igreja dos primeiros dias traz uma relação de bênçãos decorrentes do encontro presencial: “Eles se dedicavam ao ensino dos apóstolos e à comunhão, ao partir do pão e às orações. Todos estavam cheios de temor, e muitas maravilhas e sinais eram feitos pelos apóstolos. Todos os que criam mantinham-se unidos e tinham tudo em comum. Vendendo suas propriedades e bens, distribuíam a cada um conforme a sua necessidade. Todos os dias, continuavam a reunir-se no pátio do templo. Partiam o pão em suas casas, e juntos participavam das refeições, com alegria e sinceridade de coração, louvando a Deus e tendo a simpatia de todo o povo. E o Senhor lhes acrescentava todos os dias os que iam sendo salvos” (Atos 2.42-47).
O culto presencial nos enche de entusiasmo e alegria que tornam capazes de cativar e atrair outros para Cristo. A missão começa e termina no culto da igreja.
Os benefícios do culto presencial
Existem benefícios espirituais e morais que são insubstituíveis no culto presencial. Um desses benefícios é a celebração dos sacramentos ou ordenanças. Eles não são eventos separados da adoração. Na verdade, os sacramentos, Ceia e Batismo, são elementos do culto como oração, louvor, ofertas e pregação.
Tão tangível quanto os elementos deve ser a proximidade, a interação, a caminhada com os irmãos. Trata-se de se fazer a experiência do ‘companheirismo’ cristão. Isto é, aqueles que comem o pão juntos, como na experiência de Emaús. Esse companheirismo nos recorda que carregamos os fardos uns dos outros, que nos suportamos uns aos outros por amor a Cristo e que nos amamos uns aos outros por determinação e vontade de Cristo.
Culto: a antessala da eternidade
O culto não pode ser pensado e reduzido a uma experiência de consumo, para a satisfação de uma necessidade ou anseio. ‘Uberizar’ o culto de maneira absoluta não é uma coisa muito sábia a se fazer, porque o culto nada mais é do que um tempo de preparação em benefício de nossa eternidade no céu. Os únicos beneficiários do culto somos nós. Ele não é mais feliz, mais glorioso, mais santo do que é porque o adoramos e nem sofre prejuízo algum se nenhuma de suas criaturas o adorasse. Deus basta-se a si mesmo. Ele ordenou o culto em seus elementos para que a nossa existência neste mundo caído fosse tanto possível como suportável, realidade que ameniza as influências do mal sobre as nossas pobres vidas, e requereu de nós o culto a fim de nos preparar para vida na eternidade.
De culto em culto, na companhia dos santos, diante dos anjos e na presença de Deus, somos treinados e a nossa natureza vai sendo ambientada para as condições de ‘temperatura e pressão’ da vida eterna, quando estaremos face a face com o Cordeiro de Deus. Agora, nossos olhos não podem suportar o brilho da glória do Eterno.
A adoração comunitária é, sem dúvida, uma antessala da eternidade. Em Apocalipse vemos que toda a comunidade cristã interpreta a história em termos de redenção dentro de um contexto perene de adoração. O Apocalipse é, entre outras coisas, um livro canônico de liturgia. A igreja na terra adora e na adoração, luta as batalhas do Cordeiro. A Igreja do céu, vive uma liturgia incessante (Ap 4-5), apontando para a nossa mais sublime vocação: o culto divino.
Conclusão
Não posso deixar de dizer que não obstante os muitos prejuízos espirituais sofridos pelas restrições sanitárias impostas pela pandemia da Covid-19, em muitos contextos não havia outra coisa a se fazer. Cerramos as portas e cessamos as nossas atividades presenciais. Pela bondade de Deus em sua graça comum, pudemos lançar mão das tecnologias vigentes, Com criatividade e muito aprendizado inicial, pudemos oferecer e participar do culto, de reuniões de oração, formação de maneira remota e até alcançamos um número maior de pessoas, ao redor do mundo, inclusive.
Entretanto, essa realidade online, remota, veio para ficar, não duvido disso. Ela se tornou uma ferramenta maravilhosa para muitos fins, mas não veio para ficar no lugar do culto presencial. Permanece sendo um bom suporte à vida da igreja. É um suporte e não a vida da igreja.
O ideal é que a igreja volte à normalidade da vida e que adore em espírito e em verdade, no ajuntamento solene físico e local e compareça diante do seu Senhor para cantar as glórias daquele que é, que era e quem vem, pelos séculos dos séculos. Amém!
Artigo originalmente publicado na edição 394 (março/abril de 2022) de Ultimato.
Nota
1. Números 7.1; 8.5-26; Levítico 1-10; 1 Coríntios 11.17-34; Atos 2.42-47
“Os céus louvam as tuas maravilhas, Senhor, e a tua fidelidade na assembleia dos santos. Na assembleia dos santos Deus é temível, mais do que todos os que o rodeiam” (Sl 89.5, 7).
Em muitos ambientes cristãos o culto comunitário presencial parece sofrer algum tipo de descrédito em detrimento dos cultos remotos, tipo live ou os que usam plataformas que permitem algum tipo de interação. Nos dois casos, não obstante o caráter sempre suplementar e emergencial fundados na graça comum para o bem dos santos, a experiência cristã da adoração sofre muitos prejuízos, por ser tão limitada ou por estar perigosamente no controle daquele que ‘adora’.
A pandemia não fez Deus mudar de ideia no que diz respeito ao culto coletivo e presencial. Talvez ela tenha feito vir à tona um problema estrutural do coração de muitos crentes, mas também, uma deficiência da igreja na definição do que seja de fato, um culto evangélico e bíblico.
Esse descrédito pelo qual passa o culto tem a ver com uma compreensão equivocada do que significa adorar. O centro da adoração não é o homem, nem os seus desejos, suas necessidades e o seu gosto estético. O centro do culto é Deus e a sua autorrevelação. Assim, embora haja muita liberdade quanto a forma, não existe liberdade para definir o que o culto é. O culto não é uma ação humana em primeiro lugar. O culto é uma resposta de fé do homem a Deus, dentro do contexto da Aliança, onde Deus dá a conhecer o seu ser, pessoa e plano de redenção. Logo, uma teologia superficial inevitavelmente produzirá um culto inconsistente, um culto que talvez não faça mesmo muito falta na vida das pessoas.
Culto e Aliança
O culto presencial, comunitário, é parte integrante do ethos do povo de Deus. O Senhor criou um povo peculiar para que vivesse sob as suas bênçãos e que se relacionasse com Ele por meio da adoração. Esse culto ordenado possui três dimensões que se exigem reciprocamente: o culto pessoal, doméstico e comunitário. Não são opções que substituem ou que se excluem, mas atitudes responsivas à graça, ao amor e à Palavra de Deus e a sua misericórdia experimentados em nossa caminhada.
O culto presencial e coletivo está no centro da Aliança e é manifesta desde o dia em que Noé saiu da arca (Gn 8.20,21). Desde o culto ordenado e requerido no ajuntamento solene tornou-se uma das marcas distintivas do povo de Deus1.
No novo Testamento, depois do derramamento do Espírito Santo em Pentecostes, o povo criado naquela manhã foi vocacionado à adoração: “Vocês, porém, são geração eleita, sacerdócio real, nação santa, povo exclusivo de Deus, para anunciar as grandezas daquele que os chamou das trevas para a sua maravilhosa luz” (1Pe 2.9). Como um povo sacerdotal, fica evidente que parte desse anúncio tem a ver com o culto público e presencial que faz desfilar diante das nações a glória de Deus e convida os homens a entrarem na Aliança. Abrir mão da reunião solene, da assembleia dos santos, é renunciar a própria identidade como povo de Deus em missão no mundo.
O privilégio e o preceito do culto presencial
A pandemia impôs um duro golpe para as igrejas cristãs, a suspensão temporária das nossas reuniões públicas e presenciais. Fomos forçados, à luz da natureza e da prudência, a ‘abrir mão’ de um dos nossos mais prazerosos privilégios em Cristo: a celebração da graça na vida fraterna em comunidade de adoração, isto é, o culto. Também tivemos consoladores e encorajadores encontros virtuais, que ninguém duvide disso. Nos dias mais duros de isolamento social, foi um bálsamo poder ver o rosto e encontrar remotamente os irmãos que há tempo não víamos. Também pudemos orar juntos e uns pelos outros, mas, não há como negar que essa experiência nunca foi completa e nem era para ser.
A retomada plena dos nossos cultos presenciais vai depender não só de uma melhor e mais aprofundada concepção do que é o culto e o seu lugar na Aliança, mas também de ter em nossos corações sentimentos bíblicos, como esses: “Como é agradável o lugar da tua habitação, Senhor dos Exércitos! A minha alma anela, e até desfalece pelos átrios do Senhor; o meu coração e o meu corpo cantam de alegria ao Deus vivo” (Sl 84.1-3). Mais que um lugar para a adoração a igreja é um povo que adora, por isso, esse sentimento de desejar encontrar Deus em sua habitação: “Contudo tu és santo, entronizado sobre os louvores de Israel” (Sl 22.3), deve ser cultivado no coração adorante.
A pandemia foi para a igreja uma espécie de exílio espiritual. Sentir saudades do culto presencial deveria ser encarado por nós como um sinal de saúde espiritual, como uma maneira inclusive de medir a nossa maturidade como discípulos de Cristo que compreenderam a natureza e a dinâmica da igreja, sua vida e missão: um povo convocado para adorar.
Esse nosso privilégio será mais sentido quando pudermos cantar, de novo com o salmista, “Alegrei-me com os que me disseram: Vamos à casa do Senhor!” (Sl 122.1). O contexto deste salmo de romagem retrata bem o sentimento do peregrino ao concluir a sua jornada chegando em Jerusalém. O motivo dessa alegria, além do ‘encontro com Deus’ e os demais adoradores de tantos lugares distantes, está relacionada com o fato de que experimentaram os cuidados de Deus durante a dura jornada da peregrinação.
Enfrentaram as intempéries do tempo, os perigos do deserto como animais selvagens, salteadores e acidentes e agora, estão ali, para adorar, para agradecer ao Senhor por todas as suas providências. Uma bela ‘parábola’ para o nosso retorno.
Esse nosso privilégio do culto presencial vem acompanhado de um claro preceito bíblico para nos reunirmos: “Não deixemos de reunir-nos como igreja, segundo o costume de alguns, mas encorajemo-nos uns aos outros, ainda mais quando vocês veem que se aproxima o Dia” (Hb 10.25). Desigrejar-se não é exatamente uma coisa virtuosa ou justificável, embora se possa explicar esse fenômeno, mas um costume reprovável segundo as Escrituras. A virtude se encontra no preceito de reunir-nos como igreja e no contexto de Hebreus, em meio a muitas dificuldades, perseguições, inclusive. É nosso dever como irmãos encorajar, sem julgamentos e acusações, motivados pelo amor, os nossos irmãos para que retomem a participação nos cultos presenciais da igreja.
A necessidade de participação efetiva e afetiva no culto público, como preceito, está ligada à natureza da Aliança, realidade expressa no culto presencial. Pois, a Aliança com Deus e com os irmãos, é uma espécie de matrimônio. Não é possível conceber um casamento remoto, unicamente à distância.
A bênção do culto presencial
O culto presencial acarreta bênçãos espirituais que não podem ser mensuradas em sua totalidade, mas podemos inferir das Escrituras algumas delas. A começar as bênçãos da fraternidade e o asseguramento da vida eterna: “Como é bom e agradável quando os irmãos convivem em união! É como óleo precioso derramado sobre a cabeça, que desce pela barba, a barba de Arão, até a gola das suas vestes. É como o orvalho do Hermom quando desce sobre os montes de Sião. Ali o Senhor concede a bênção da vida para sempre” (Sl 133.1-3). A referência à Aarão é importante. Há aqui uma evidente alusão à natureza coorporativa do povo de Deus em adoração. O encontro com os irmãos na presença de Deus é um refrigério para a alma. Esse encontro, em tudo diferente em natureza, propósito e consequência dos demais encontros da semana, traz sanidade, equilíbrio e paz. Na companhia dos irmãos, no culto presencial, experimentamos uma ação terapêutica do Espírito Santo que reposiciona as nossas prioridades e as nossas necessidades. O culto presencial, essa mutualidade, nos convoca para uma vida ‘outrocentrada’ e nos faz romper com vício de nos fazer o centro de nossas atenções.
No ajuntamento solene o fato de adorarmos a Deus na beleza de sua santidade (Sl 96.9) cura os nossos olhos tantas vezes feridos pela fealdade do pecado e os abre para que contemplamos a beleza do amor de Deus espargido sobre a criação. No final, nos reunir para o culto nos dá segurança quanto a vida eterna.
A descrição da igreja dos primeiros dias traz uma relação de bênçãos decorrentes do encontro presencial: “Eles se dedicavam ao ensino dos apóstolos e à comunhão, ao partir do pão e às orações. Todos estavam cheios de temor, e muitas maravilhas e sinais eram feitos pelos apóstolos. Todos os que criam mantinham-se unidos e tinham tudo em comum. Vendendo suas propriedades e bens, distribuíam a cada um conforme a sua necessidade. Todos os dias, continuavam a reunir-se no pátio do templo. Partiam o pão em suas casas, e juntos participavam das refeições, com alegria e sinceridade de coração, louvando a Deus e tendo a simpatia de todo o povo. E o Senhor lhes acrescentava todos os dias os que iam sendo salvos” (Atos 2.42-47).
O culto presencial nos enche de entusiasmo e alegria que tornam capazes de cativar e atrair outros para Cristo. A missão começa e termina no culto da igreja.
Os benefícios do culto presencial
Existem benefícios espirituais e morais que são insubstituíveis no culto presencial. Um desses benefícios é a celebração dos sacramentos ou ordenanças. Eles não são eventos separados da adoração. Na verdade, os sacramentos, Ceia e Batismo, são elementos do culto como oração, louvor, ofertas e pregação.
Tão tangível quanto os elementos deve ser a proximidade, a interação, a caminhada com os irmãos. Trata-se de se fazer a experiência do ‘companheirismo’ cristão. Isto é, aqueles que comem o pão juntos, como na experiência de Emaús. Esse companheirismo nos recorda que carregamos os fardos uns dos outros, que nos suportamos uns aos outros por amor a Cristo e que nos amamos uns aos outros por determinação e vontade de Cristo.
Culto: a antessala da eternidade
O culto não pode ser pensado e reduzido a uma experiência de consumo, para a satisfação de uma necessidade ou anseio. ‘Uberizar’ o culto de maneira absoluta não é uma coisa muito sábia a se fazer, porque o culto nada mais é do que um tempo de preparação em benefício de nossa eternidade no céu. Os únicos beneficiários do culto somos nós. Ele não é mais feliz, mais glorioso, mais santo do que é porque o adoramos e nem sofre prejuízo algum se nenhuma de suas criaturas o adorasse. Deus basta-se a si mesmo. Ele ordenou o culto em seus elementos para que a nossa existência neste mundo caído fosse tanto possível como suportável, realidade que ameniza as influências do mal sobre as nossas pobres vidas, e requereu de nós o culto a fim de nos preparar para vida na eternidade.
De culto em culto, na companhia dos santos, diante dos anjos e na presença de Deus, somos treinados e a nossa natureza vai sendo ambientada para as condições de ‘temperatura e pressão’ da vida eterna, quando estaremos face a face com o Cordeiro de Deus. Agora, nossos olhos não podem suportar o brilho da glória do Eterno.
A adoração comunitária é, sem dúvida, uma antessala da eternidade. Em Apocalipse vemos que toda a comunidade cristã interpreta a história em termos de redenção dentro de um contexto perene de adoração. O Apocalipse é, entre outras coisas, um livro canônico de liturgia. A igreja na terra adora e na adoração, luta as batalhas do Cordeiro. A Igreja do céu, vive uma liturgia incessante (Ap 4-5), apontando para a nossa mais sublime vocação: o culto divino.
Conclusão
Não posso deixar de dizer que não obstante os muitos prejuízos espirituais sofridos pelas restrições sanitárias impostas pela pandemia da Covid-19, em muitos contextos não havia outra coisa a se fazer. Cerramos as portas e cessamos as nossas atividades presenciais. Pela bondade de Deus em sua graça comum, pudemos lançar mão das tecnologias vigentes, Com criatividade e muito aprendizado inicial, pudemos oferecer e participar do culto, de reuniões de oração, formação de maneira remota e até alcançamos um número maior de pessoas, ao redor do mundo, inclusive.
Entretanto, essa realidade online, remota, veio para ficar, não duvido disso. Ela se tornou uma ferramenta maravilhosa para muitos fins, mas não veio para ficar no lugar do culto presencial. Permanece sendo um bom suporte à vida da igreja. É um suporte e não a vida da igreja.
O ideal é que a igreja volte à normalidade da vida e que adore em espírito e em verdade, no ajuntamento solene físico e local e compareça diante do seu Senhor para cantar as glórias daquele que é, que era e quem vem, pelos séculos dos séculos. Amém!
Artigo originalmente publicado na edição 394 (março/abril de 2022) de Ultimato.
Nota
1. Números 7.1; 8.5-26; Levítico 1-10; 1 Coríntios 11.17-34; Atos 2.42-47
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