Opinião
- 04 de setembro de 2024
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A Última Sessão de Freud — fé e descrença na tela
Por Carlos Caldas
O filme é baseado na peça teatral homônima do teatrólogo Mark St. Germain, que por sua vez se baseou no livro Deus em questão: C. S. Lewis e Freud debatem Deus, amor, sexo e o sentido da vida, do psiquiatra Armand Nicholi, publicado pela Editora Ultimato.
A peça de St. Germain foi apresentada cerca de 800 vezes nos Estados Unidos, e teve montagens na Suécia, Japão, Argentina, Austrália e Brasil. Em nosso país a peça foi apresentada em várias cidades, tanto capitais de estado como também cidades de médio porte, tendo como protagonistas Odilon Wagner (Freud) e Claudio Fontana (Lewis – a propósito, o Lewis de Fontana é barbado, mas o “Lewis histórico” sempre foi escanhoado, nunca deixou a barba crescer). No Brasil, algumas vezes depois do espetáculo houve uma espécie de mesa redonda, da qual participaram os atores e dois convidados da cidade, sendo sempre um religioso (pastor ou padre) e alguém da área psi (psicólogo, psicanalista ou psiquiatra).
Considerando o formato e o conteúdo do livro de Nicholi, é bem mais fácil adaptá-lo para o teatro que para o cinema. Por isso, o filme, objeto da atenção destes breves comentários, introduz alguns elementos, especialmente o relacionamento de Freud com sua filha Anna, ela também psicanalista, que se especializou em cuidar de crianças.
O filme parte de um fato histórico: Freud, fugindo da perseguição nazista, mudou-se, juntamente com sua filha, para Londres. Lewis na época residia em Oxford, e já era bastante renomado como escritor e apologeta da fé cristã. Há um registro de que Freud teria recebido a visita de um don1 de Oxford – a questão é que não há registro de quem teria sido esse don e a respeito do que conversaram. O filme então usa liberdade poética para brincar com a história, imaginando que C. S. Lewis teria sido o professor de Oxford que visitou Freud. Desta maneira, o filme fantasia um encontro entre duas das mentes mais brilhantes e influentes do século passado (neste sentido, o filme lembra o princípio exposto por Aristóteles em sua Poética, segundo o qual a literatura não apresenta o que aconteceu, mas o que poderia ter acontecido). Este encontro aconteceu mesmo? Teria Lewis percorrido os cerca de 100 quilômetros que separam Oxford de Londres para ter reuniões com Freud, nas quais os dois debateram sobre suas diferenças quanto a fé e descrença? Não sabemos, mas não importa. O fato é que Brown usou da imaginação para apresentar como poderiam ter sido estes diálogos entre um homem que fora ateu, mas retornou à fé – Lewis – e outro que dizia que a crença religiosa é uma ilusão – Freud.
O ator galês Anthony Hopkins dá uma aula de atuação ao interpretar Freud. Na verdade, dizer que Sir Hopkins2 dá um show de interpretação é tão pleonástico como dizer que a água molha e que no escuro não tem luz. Dois detalhes curiosos: é a segunda vez que Hopkins, um britânico, interpreta um germanófono: a primeira foi no maravilhoso Dois Papas, de Fernando Meireles, de 2019, no qual interpreta o alemão Joseph Ratzinger, o Papa Bento XVI, e agora, o austríaco Freud. A outra curiosidade é que em Terra das Sombras, de Richard Attenborough, de 1993, Hopkins fez o papel de Lewis.
Já Matthew Goode, apesar de não ser um ator inexperiente, tem uma atuação muito apagada. O Lewis de Goode é inexpressivo, insípido, inodoro e incolor, “sem sal e sem açúcar”. O que é uma pena, porque Lewis era acostumado a ter debates de ideias com intelectuais que, não raro, tinham perspectivas frontalmente contrárias às dele. Mas no filme, que em tese deveria apresentar diálogos, Freud fala sozinho quase que o tempo todo. Há sim falas de Lewis, e eu não contei quantas, mas com certeza são em menor número que as de Freud.
Quem tem familiaridade com textos de Lewis vai reconhecer alguns deles em algumas das falas no filme. Uma delas, quando Freud pergunta a Lewis a respeito da razão do sofrimento, este responde com uma frase que se tornou famosa, muitas vezes repetidas por lewisianos: os prazeres são sussurros de Deus ao mundo, mas o sofrimento é o megafone que Deus usa para falar conosco. O sofrimento pode nos tornar melhores, pode nos aperfeiçoar. O tema do sofrimento tem lugar especial na narrativa de Brown, ao mostrar a revolta de Freud diante de seu próprio sofrimento, ao enfrentar um câncer muito agressivo na garganta. Para ele, o sofrimento sem causa era uma confirmação da (aparente) falta de sentido no universo. Em um momento da narrativa, quando estão discutindo a questão do sofrimento, Lewis afirma que não tem resposta para a pergunta. O roteiro poderia ter explorado mais os dois livros de Lewis nos quais ele trata do tema, sem dúvida, espinhoso e delicado, a saber, O problema da dor e A anatomia de um luto3.
O filme é interessante por ter o potencial de despertar a curiosidade de quem o assiste em saber mais detalhes sobre estes dois pensadores, que tinham perspectivas totalmente diferentes um do outro sobre aquela que talvez seja a pergunta mais importante que o ser humano é capaz de fazer: qual é o sentido da vida. Mas a narrativa falha ao não apresentar equilíbrio: o roteiro, conscientemente ou não, é tendencioso ao favorecer Freud, dando a impressão que ele “ganha” o debate. Tal como apontado no parágrafo anterior, o filme é quase que um grande monólogo de Freud. Não obstante, vale a pena ser assistido.
A última sessão de Freud é o típico “filme cabeça”, que não tem pretensão de ser blockbuster. Provavelmente será mais sucesso de crítica que de público, pois não é filme para simples passatempo. O que, em si, é positivo, pois o filme é bem sucedido em fazer pensar.
1. A palavra inglesa don, derivada do latim dominus (“senhor”) é usada para se referir a professores das universidades de Cambridge e de Oxford.
2. Hopkins foi nomeado Cavaleiro do Império Britânico pela Rainha Elizabeth II em 1993.
3. Ambos publicados em 2021 pela Thomas Nelson Brasil.
Conheça também:
» Freud versus Deus
» Cartas entre Freud e Pfister
» C S Lewis e Freud na Folha de S. Paulo
» A última sessão de Freud, C. S. Lewis e Anthony Hopkins...
O filme é baseado na peça teatral homônima do teatrólogo Mark St. Germain, que por sua vez se baseou no livro Deus em questão: C. S. Lewis e Freud debatem Deus, amor, sexo e o sentido da vida, do psiquiatra Armand Nicholi, publicado pela Editora Ultimato.
A peça de St. Germain foi apresentada cerca de 800 vezes nos Estados Unidos, e teve montagens na Suécia, Japão, Argentina, Austrália e Brasil. Em nosso país a peça foi apresentada em várias cidades, tanto capitais de estado como também cidades de médio porte, tendo como protagonistas Odilon Wagner (Freud) e Claudio Fontana (Lewis – a propósito, o Lewis de Fontana é barbado, mas o “Lewis histórico” sempre foi escanhoado, nunca deixou a barba crescer). No Brasil, algumas vezes depois do espetáculo houve uma espécie de mesa redonda, da qual participaram os atores e dois convidados da cidade, sendo sempre um religioso (pastor ou padre) e alguém da área psi (psicólogo, psicanalista ou psiquiatra).
Considerando o formato e o conteúdo do livro de Nicholi, é bem mais fácil adaptá-lo para o teatro que para o cinema. Por isso, o filme, objeto da atenção destes breves comentários, introduz alguns elementos, especialmente o relacionamento de Freud com sua filha Anna, ela também psicanalista, que se especializou em cuidar de crianças.
O filme parte de um fato histórico: Freud, fugindo da perseguição nazista, mudou-se, juntamente com sua filha, para Londres. Lewis na época residia em Oxford, e já era bastante renomado como escritor e apologeta da fé cristã. Há um registro de que Freud teria recebido a visita de um don1 de Oxford – a questão é que não há registro de quem teria sido esse don e a respeito do que conversaram. O filme então usa liberdade poética para brincar com a história, imaginando que C. S. Lewis teria sido o professor de Oxford que visitou Freud. Desta maneira, o filme fantasia um encontro entre duas das mentes mais brilhantes e influentes do século passado (neste sentido, o filme lembra o princípio exposto por Aristóteles em sua Poética, segundo o qual a literatura não apresenta o que aconteceu, mas o que poderia ter acontecido). Este encontro aconteceu mesmo? Teria Lewis percorrido os cerca de 100 quilômetros que separam Oxford de Londres para ter reuniões com Freud, nas quais os dois debateram sobre suas diferenças quanto a fé e descrença? Não sabemos, mas não importa. O fato é que Brown usou da imaginação para apresentar como poderiam ter sido estes diálogos entre um homem que fora ateu, mas retornou à fé – Lewis – e outro que dizia que a crença religiosa é uma ilusão – Freud.
O ator galês Anthony Hopkins dá uma aula de atuação ao interpretar Freud. Na verdade, dizer que Sir Hopkins2 dá um show de interpretação é tão pleonástico como dizer que a água molha e que no escuro não tem luz. Dois detalhes curiosos: é a segunda vez que Hopkins, um britânico, interpreta um germanófono: a primeira foi no maravilhoso Dois Papas, de Fernando Meireles, de 2019, no qual interpreta o alemão Joseph Ratzinger, o Papa Bento XVI, e agora, o austríaco Freud. A outra curiosidade é que em Terra das Sombras, de Richard Attenborough, de 1993, Hopkins fez o papel de Lewis.
Já Matthew Goode, apesar de não ser um ator inexperiente, tem uma atuação muito apagada. O Lewis de Goode é inexpressivo, insípido, inodoro e incolor, “sem sal e sem açúcar”. O que é uma pena, porque Lewis era acostumado a ter debates de ideias com intelectuais que, não raro, tinham perspectivas frontalmente contrárias às dele. Mas no filme, que em tese deveria apresentar diálogos, Freud fala sozinho quase que o tempo todo. Há sim falas de Lewis, e eu não contei quantas, mas com certeza são em menor número que as de Freud.
Quem tem familiaridade com textos de Lewis vai reconhecer alguns deles em algumas das falas no filme. Uma delas, quando Freud pergunta a Lewis a respeito da razão do sofrimento, este responde com uma frase que se tornou famosa, muitas vezes repetidas por lewisianos: os prazeres são sussurros de Deus ao mundo, mas o sofrimento é o megafone que Deus usa para falar conosco. O sofrimento pode nos tornar melhores, pode nos aperfeiçoar. O tema do sofrimento tem lugar especial na narrativa de Brown, ao mostrar a revolta de Freud diante de seu próprio sofrimento, ao enfrentar um câncer muito agressivo na garganta. Para ele, o sofrimento sem causa era uma confirmação da (aparente) falta de sentido no universo. Em um momento da narrativa, quando estão discutindo a questão do sofrimento, Lewis afirma que não tem resposta para a pergunta. O roteiro poderia ter explorado mais os dois livros de Lewis nos quais ele trata do tema, sem dúvida, espinhoso e delicado, a saber, O problema da dor e A anatomia de um luto3.
O filme é interessante por ter o potencial de despertar a curiosidade de quem o assiste em saber mais detalhes sobre estes dois pensadores, que tinham perspectivas totalmente diferentes um do outro sobre aquela que talvez seja a pergunta mais importante que o ser humano é capaz de fazer: qual é o sentido da vida. Mas a narrativa falha ao não apresentar equilíbrio: o roteiro, conscientemente ou não, é tendencioso ao favorecer Freud, dando a impressão que ele “ganha” o debate. Tal como apontado no parágrafo anterior, o filme é quase que um grande monólogo de Freud. Não obstante, vale a pena ser assistido.
A última sessão de Freud é o típico “filme cabeça”, que não tem pretensão de ser blockbuster. Provavelmente será mais sucesso de crítica que de público, pois não é filme para simples passatempo. O que, em si, é positivo, pois o filme é bem sucedido em fazer pensar.
1. A palavra inglesa don, derivada do latim dominus (“senhor”) é usada para se referir a professores das universidades de Cambridge e de Oxford.
2. Hopkins foi nomeado Cavaleiro do Império Britânico pela Rainha Elizabeth II em 1993.
3. Ambos publicados em 2021 pela Thomas Nelson Brasil.
Conheça também:
» Freud versus Deus
» Cartas entre Freud e Pfister
» C S Lewis e Freud na Folha de S. Paulo
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É professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da PUC Minas, onde coordena o GPRA – Grupo de Pesquisa Religião e Arte.
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