Prateleira
- 10 de julho de 2014
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A tentação política e a ética da renúncia
Prateleira antecipa para os leitores a seção Ética da edição atual da revista Ultimato, que entrou em circulação na primeira semana de julho. O nosso colunista é o sociólogo Paul Freston.
***
“Se me adorares, tudo será teu.” (Lc 4.7)
A segunda tentação de Cristo é uma espécie de visão. Talvez provocada pela vista do pico de uma montanha real.
Tente visualizar a cena: o deserto rochoso e montanhoso, Jesus subindo um morro, arrastando-se sobre as rochas, chegando ofegante em cima. A vista é espetacular; lá em baixo, várias cidadezinhas espalhadas. Jesus olha e, de repente, em sua imaginação, vê as grandes cidades do mundo, os palácios e os templos, os reis e os imperadores, o ouro e a prata, os campos, as oficinas, as minas. Agora, vê as ruas cheias de gente, oprimida, miserável, supersticiosa.
Então, em sua mente, vem a sugestão: “Jesus, está vendo aquelas cidades lá em baixo? De direito, você é quem teria autoridade sobre elas. E não só sobre elas. Pense também em Jerusalém, Damasco, Antioquia, Alexandria, Atenas, Roma... Você não seria um governante mais justo? Não teria ideias para dar paz e prosperidade a esses povos? O mundo clama por seu governo. Você é a resposta. (Sofremos muito na igreja por não entender como o Diabo é um bom crente.) Mas o caminho da cruz é muito lento. A maioria não vai nem entender direito. Não faz mais sentido pensar num caminho mais rápido e mais compreensível para a maioria? Veja, há um caminho. Não vou exigir que você me adore publicamente. Só que você deixe de lado essa ideia da cruz. E você sabe muito bem que eu tenho o poder de fazer com que você seja reconhecido como governante. Os povos precisam. A cruz é lenta”.
O Diabo vai falando ritmicamente, como se batendo num tambor. “Os povos precisam. A cruz é lenta. Os povos precisam. A necessidade é urgente. O desgoverno é um escândalo. Considere minha proposta. Pense bem. Curve-se. Só um pouquinho. Ninguém vai ver. Ninguém vai saber. Curve-se. Só um pouco. Curve-se...”. Jesus, atormentado, fecha os olhos e cerra os punhos. Finalmente, grita: “Não!”. O Diabo se cala. Em agonia, Jesus gagueja: “Ao Senhor teu Deus adorarás, e só a ele darás culto”.
Ultimamente, uma nova teologia vem ganhando espaço no meio evangélico, oriunda da direita cristã dos Estados Unidos. “Nosso destino é governar as nações”, diz ela. A Bíblia promete aos cristãos o domínio político sobre todas as nações. Sua ideia de uma sociedade cristã é uma mistura de teocracia e darwinismo social (a sobrevivência dos mais aptos). Segundo um defensor dessa linha, “as sociedades chamadas subdesenvolvidas o são porque são socialistas, demonistas e amaldiçoadas”. Criticando o dispensacionalismo (com sua doutrina do “arrebatamento”) como uma escatologia derrotista, afirmam que os cristãos serão cogovernantes com Cristo.1
O problema com esse enfoque, embora tenha a grande virtude de questionar a escatologia escapista do dispensacionalismo, é que confunde “alhos com bugalhos”. O modelo do cristão é o modelo de Cristo em sua primeira vinda, o modelo da cruz e do serviço humilde. E a glória reconhecível que Cristo terá em sua segunda vinda não dispensa esse modelo, apenas revela que o serviço é, de fato, a verdadeira glória, o verdadeiro governo. A questão essencial no tocante ao poder não é a sua posse ou não. Jesus sabia que, mais cedo ou mais tarde, teria o poder. Porém, a questão é quando e como, e com que mentalidade (triunfalista ou serviçal). Os cristãos que dizem que o poder nos pertence, de direito, aqui e agora, estão aceitando o atalho que o Diabo oferece a Jesus: governo sem cruz. Acham que o cuidado que Jesus precisou ter para não sucumbir a essa tentação não é necessário para eles. O caminho deles pode ser mais curto do que o de Jesus. Além do mais, “os povos precisam...”.
Oramos para que Deus facilite nosso caminho e nosso ministério. Mas às vezes o caminho fácil é uma tentação a ser resistida!
O Diabo diz que a glória dos reinos “me foi entregue e eu a dou a quem eu quiser”. Muitas vezes o Diabo é chamado “o príncipe deste mundo” (por exemplo, em João 12.31), mas em última análise essa reivindicação é falsa. O “mundo” (no sentido da sociedade humana organizada em oposição aos valores do reino de Deus) se entrega ao Diabo, mas o mundo (no sentido de mundo habitado) continua sendo objeto do amor e da ação de Deus.
Na frase “a glória me foi entregue”, o Diabo é obrigado a confessar o caráter derivado do seu poder. Mas que absurdo adorar a um poder derivado! O homem sempre “se prostra” diante de algo – ou diante da fonte do poder, ou diante de um poder derivado. O Diabo não explica “quem” lhe deu este poder; se explicasse, a tentação cairia no ridículo. No discurso do Diabo há sempre um ponto além do qual ele não quer que a lógica seja levada. A resposta do cristão é de ser mais lógico que o Diabo, penetrando as suas mistificações.
O Diabo oferece poder e glória, um cardápio atraente! Poder: a capacidade de desenvolver meus projetos, realizar minhas ambições. O cristão tem a promessa do reino de Deus, quando vier na sua plenitude, como esfera para o exercício de dons e responsabilidades; porém, a tentação aqui é a de antecipar-se. Glória: o reconhecimento que almejo, em parte para me gabar e em parte para justificar a minha existência perante Deus e as pessoas. O caminho da cruz inclui a crucificação do desejo de ser reconhecido e respeitado.
E o Diabo oferece tudo isso em troca de quê? Apenas de um gesto de adoração privada. Isso mostra a importância da adoração na agenda do Diabo e lança luz sobre a proibição taxativa na Bíblia de qualquer forma de espiritismo ou ocultismo. A adoração a Deus não pode ser combinada com outras adorações. Tem de ser singela. Afinal, o Diabo oferece tudo a Jesus – e mesmo assim, acha que vai fazer um bom negócio.
A tentação de Jesus é política. O Diabo oferece todos os reinos (o Império Romano?). Em termos concretos, como é que Jesus, o homem no deserto, imaginava que poderia se tornar rei de toda a terra? Qual o mecanismo sociologicamente observável que possibilitaria o cumprimento das palavras do Diabo? Obviamente, para o homem Jesus, tinha de haver uma plausibilidade na tentação, senão, não seria uma tentação real. As mesmas palavras do Diabo para mim não seriam tentação, mas motivo de riso. O fato é que Jesus poderia fazer uma carreira política e justificá-la com as melhores razões. Mas ele renuncia a essa possibilidade concreta, porque significaria o comprometimento com um poder derivado. As boas razões que o Diabo poderia sugerir a Jesus para que aceitasse a sua proposta (o desgoverno, a miséria etc.) não o cegaram para o fato de que há dois tipos de corrupção: a clássica, de usar o poder para se enriquecer ou conseguir outros benefícios; e a mais sutil, a de fazer do próprio poder um ídolo (com as melhores intenções, claro). Um conhecido exemplo é o de Robespierre na Revolução Francesa; era “incorruptível”, no sentido clássico acima, mas se julgava indispensável ao processo, justificando assim o uso de meios duvidosos para se manter. O “indispensável”, o “iluminado”, o “grande líder” (e também todas as “vanguardas”), também são corruptos. Mas Jesus é aquela ave mais rara de todas: um “indispensável” que é convidado a assumir o poder, mas que se indispõe com todos os mediadores e só aceita o poder da mão de Deus.
Nota
1. In: STOLL, David. Is Latin America turning protestant? Berkeley: University of California Press, 1990. p. 58-59, 65.
Texto publicado originalmente no livro Nem Monge, Nem Executivo (Editora Ultimato)
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“Se me adorares, tudo será teu.” (Lc 4.7)
A segunda tentação de Cristo é uma espécie de visão. Talvez provocada pela vista do pico de uma montanha real.
Tente visualizar a cena: o deserto rochoso e montanhoso, Jesus subindo um morro, arrastando-se sobre as rochas, chegando ofegante em cima. A vista é espetacular; lá em baixo, várias cidadezinhas espalhadas. Jesus olha e, de repente, em sua imaginação, vê as grandes cidades do mundo, os palácios e os templos, os reis e os imperadores, o ouro e a prata, os campos, as oficinas, as minas. Agora, vê as ruas cheias de gente, oprimida, miserável, supersticiosa.
Então, em sua mente, vem a sugestão: “Jesus, está vendo aquelas cidades lá em baixo? De direito, você é quem teria autoridade sobre elas. E não só sobre elas. Pense também em Jerusalém, Damasco, Antioquia, Alexandria, Atenas, Roma... Você não seria um governante mais justo? Não teria ideias para dar paz e prosperidade a esses povos? O mundo clama por seu governo. Você é a resposta. (Sofremos muito na igreja por não entender como o Diabo é um bom crente.) Mas o caminho da cruz é muito lento. A maioria não vai nem entender direito. Não faz mais sentido pensar num caminho mais rápido e mais compreensível para a maioria? Veja, há um caminho. Não vou exigir que você me adore publicamente. Só que você deixe de lado essa ideia da cruz. E você sabe muito bem que eu tenho o poder de fazer com que você seja reconhecido como governante. Os povos precisam. A cruz é lenta”.
O Diabo vai falando ritmicamente, como se batendo num tambor. “Os povos precisam. A cruz é lenta. Os povos precisam. A necessidade é urgente. O desgoverno é um escândalo. Considere minha proposta. Pense bem. Curve-se. Só um pouquinho. Ninguém vai ver. Ninguém vai saber. Curve-se. Só um pouco. Curve-se...”. Jesus, atormentado, fecha os olhos e cerra os punhos. Finalmente, grita: “Não!”. O Diabo se cala. Em agonia, Jesus gagueja: “Ao Senhor teu Deus adorarás, e só a ele darás culto”.
Ultimamente, uma nova teologia vem ganhando espaço no meio evangélico, oriunda da direita cristã dos Estados Unidos. “Nosso destino é governar as nações”, diz ela. A Bíblia promete aos cristãos o domínio político sobre todas as nações. Sua ideia de uma sociedade cristã é uma mistura de teocracia e darwinismo social (a sobrevivência dos mais aptos). Segundo um defensor dessa linha, “as sociedades chamadas subdesenvolvidas o são porque são socialistas, demonistas e amaldiçoadas”. Criticando o dispensacionalismo (com sua doutrina do “arrebatamento”) como uma escatologia derrotista, afirmam que os cristãos serão cogovernantes com Cristo.1
O problema com esse enfoque, embora tenha a grande virtude de questionar a escatologia escapista do dispensacionalismo, é que confunde “alhos com bugalhos”. O modelo do cristão é o modelo de Cristo em sua primeira vinda, o modelo da cruz e do serviço humilde. E a glória reconhecível que Cristo terá em sua segunda vinda não dispensa esse modelo, apenas revela que o serviço é, de fato, a verdadeira glória, o verdadeiro governo. A questão essencial no tocante ao poder não é a sua posse ou não. Jesus sabia que, mais cedo ou mais tarde, teria o poder. Porém, a questão é quando e como, e com que mentalidade (triunfalista ou serviçal). Os cristãos que dizem que o poder nos pertence, de direito, aqui e agora, estão aceitando o atalho que o Diabo oferece a Jesus: governo sem cruz. Acham que o cuidado que Jesus precisou ter para não sucumbir a essa tentação não é necessário para eles. O caminho deles pode ser mais curto do que o de Jesus. Além do mais, “os povos precisam...”.
Oramos para que Deus facilite nosso caminho e nosso ministério. Mas às vezes o caminho fácil é uma tentação a ser resistida!
O Diabo diz que a glória dos reinos “me foi entregue e eu a dou a quem eu quiser”. Muitas vezes o Diabo é chamado “o príncipe deste mundo” (por exemplo, em João 12.31), mas em última análise essa reivindicação é falsa. O “mundo” (no sentido da sociedade humana organizada em oposição aos valores do reino de Deus) se entrega ao Diabo, mas o mundo (no sentido de mundo habitado) continua sendo objeto do amor e da ação de Deus.
Na frase “a glória me foi entregue”, o Diabo é obrigado a confessar o caráter derivado do seu poder. Mas que absurdo adorar a um poder derivado! O homem sempre “se prostra” diante de algo – ou diante da fonte do poder, ou diante de um poder derivado. O Diabo não explica “quem” lhe deu este poder; se explicasse, a tentação cairia no ridículo. No discurso do Diabo há sempre um ponto além do qual ele não quer que a lógica seja levada. A resposta do cristão é de ser mais lógico que o Diabo, penetrando as suas mistificações.
O Diabo oferece poder e glória, um cardápio atraente! Poder: a capacidade de desenvolver meus projetos, realizar minhas ambições. O cristão tem a promessa do reino de Deus, quando vier na sua plenitude, como esfera para o exercício de dons e responsabilidades; porém, a tentação aqui é a de antecipar-se. Glória: o reconhecimento que almejo, em parte para me gabar e em parte para justificar a minha existência perante Deus e as pessoas. O caminho da cruz inclui a crucificação do desejo de ser reconhecido e respeitado.
E o Diabo oferece tudo isso em troca de quê? Apenas de um gesto de adoração privada. Isso mostra a importância da adoração na agenda do Diabo e lança luz sobre a proibição taxativa na Bíblia de qualquer forma de espiritismo ou ocultismo. A adoração a Deus não pode ser combinada com outras adorações. Tem de ser singela. Afinal, o Diabo oferece tudo a Jesus – e mesmo assim, acha que vai fazer um bom negócio.
A tentação de Jesus é política. O Diabo oferece todos os reinos (o Império Romano?). Em termos concretos, como é que Jesus, o homem no deserto, imaginava que poderia se tornar rei de toda a terra? Qual o mecanismo sociologicamente observável que possibilitaria o cumprimento das palavras do Diabo? Obviamente, para o homem Jesus, tinha de haver uma plausibilidade na tentação, senão, não seria uma tentação real. As mesmas palavras do Diabo para mim não seriam tentação, mas motivo de riso. O fato é que Jesus poderia fazer uma carreira política e justificá-la com as melhores razões. Mas ele renuncia a essa possibilidade concreta, porque significaria o comprometimento com um poder derivado. As boas razões que o Diabo poderia sugerir a Jesus para que aceitasse a sua proposta (o desgoverno, a miséria etc.) não o cegaram para o fato de que há dois tipos de corrupção: a clássica, de usar o poder para se enriquecer ou conseguir outros benefícios; e a mais sutil, a de fazer do próprio poder um ídolo (com as melhores intenções, claro). Um conhecido exemplo é o de Robespierre na Revolução Francesa; era “incorruptível”, no sentido clássico acima, mas se julgava indispensável ao processo, justificando assim o uso de meios duvidosos para se manter. O “indispensável”, o “iluminado”, o “grande líder” (e também todas as “vanguardas”), também são corruptos. Mas Jesus é aquela ave mais rara de todas: um “indispensável” que é convidado a assumir o poder, mas que se indispõe com todos os mediadores e só aceita o poder da mão de Deus.
Nota
1. In: STOLL, David. Is Latin America turning protestant? Berkeley: University of California Press, 1990. p. 58-59, 65.
Texto publicado originalmente no livro Nem Monge, Nem Executivo (Editora Ultimato)
Autor de "Religião e Política, sim; Igreja e Estado, não" e "Nem Monge, Nem Executivo - Jesus: um modelo de espiritualidade invertida", ambos pela Editora Ultimato; e "Neemias, Um Profissional a Serviço do Reino" e "Quem Perde, Ganha", pela ABU Editora, Paul Freston, inglês naturalizado brasileiro, é doutor em sociologia pela UNICAMP. É professor do programa de pós-graduação em ciências sociais na Universidade Federal de São Carlos e, desde 2003, professor catedrático de sociologia no Calvin College, nos Estados Unidos. É colunista da revista Ultimato.
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