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Opinião

A tentação de não amar quem discorda das minhas opiniões políticas

Por Paul Freston

*Artigo originalmente publicado na edição 378 da revista Ultimato.
 
A opinião política pertence à esfera do relativo e não do absoluto, e nunca deve ser colocada no mesmo patamar das crenças fundamentais da fé 

Há dois textos do Novo Testamento que sempre me incomodaram.
O primeiro é João 13.34-35, em que Jesus fala de um “novo mandamento”, que seus discípulos se amem e que esse amor é importante porque é assim que alguém de fora vai reconhecer que são seguidores dele. O curioso é que Jesus chama isso de um “novo mandamento”, apesar de ter citado anteriormente o mandamento já antigo de “amar ao próximo”.

O segundo texto é Gálatas 6.10, em que Paulo nos exorta a fazer o bem a todos. Não há nada de excepcional nisso. Porém, em seguida, ele acrescenta: “mas especialmente aos irmãos na fé”.

Esses textos de João e de Gálatas sempre me incomodaram pelo seu particularismo; priorizam o amar e o fazer o bem aos outros cristãos. Mas uma das características do cristianismo é o universalismo ético, tão bem retratado na parábola do Bom Samaritano. A parábola é resposta à pergunta: “Quem é o meu próximo?”, feita com o intuito de limitar o conceito de próximo, de justificar o amar e fazer o bem somente aos meus próximos e não aos outros. Jesus, em resposta, universaliza o conceito de próximo; todos são os nossos próximos, ainda mais no mundo interconectado da internet. Por isso, João 13 e Gálatas 6, ao reintroduzirem o particularismo ético, me pareciam em contradição com o resto do ensino de Jesus.

É fácil amar quem não conhecemos

No entanto, os últimos anos politicamente conturbados me ajudaram a entender o porquê desses dois textos. Quando uma pessoa é distante de nós em atitudes fundamentais diante da vida, não esperamos a concordância em questões políticas. Mas quando se trata de uma pessoa que compartilha conosco da mesma fé e prática religiosa, e com quem sentimos um vínculo fraterno sincero, descobrir que ela discorda radicalmente de nós numa área da vida que consideramos tão importante é difícil entender e aceitar.

É por isso que Jesus em João 13 e Paulo em Gálatas 6 insistem nessa particularização. Pois a tentação de não amar e de não fazer o bem a alguém é tanto maior quanto mais próxima de nós é a pessoa. A discordância dela nos atinge mais, nos deixa desconcertados, podendo até criar em nós a indignação e a raiva. Por isso, as advertências de Jesus e Paulo, longe de diminuírem o universalismo ético, o estão protegendo. Estão dizendo que o universalismo ético (amar e fazer o bem a todos) vale até para as pessoas próximas de nós que nos decepcionam.

O cristão e as diferenças políticas

Com isso, chegamos à questão do tratamento cristão das diferenças políticas. Por que isso é tão importante? Porque a comunidade cristã nunca estará plenamente de acordo sobre essas questões. A diversidade política é normal e positiva na comunidade cristã! É positiva porque o total acordo político só existiria se fosse imposta de cima por uma liderança política autoritária; na ausência disso, haverá sempre uma diversidade de opiniões políticas cristãs. E, além de positiva, essa diversidade é normal porque a unidade política cristã é impossível. E é impossível por três razões.

Em primeiro lugar, pela ausência de uma receita política bíblica. A Bíblia não existe para substituir a pesquisa sobre a vida social, política e econômica, nem para substituir a criatividade no desenvolvimento de instituições cada vez melhores para estas áreas. Neste sentido, o cristianismo difere dos outros grandes monoteísmos num ponto importante. O judaísmo tem a lei de Moisés e o islã tem a lei sharia, mas o cristianismo não tem uma lei neste sentido. A ausência de lei é significativa para a tarefa cristã na vida social; é uma tentação querer fugir da angústia e preencher o vazio criando leis pretensamente cristãs. Mas no cristianismo não existe uma receita política pronta aplicável em qualquer lugar e qualquer momento histórico. Em vez desse curto-circuito intelectual, temos de passar sempre pelo trabalho árduo de buscar relacionar, com fidelidade e humildade, a revelação bíblica às realidades sociopolíticas do nosso próprio contexto.

Em segundo lugar, a unidade política cristã é impossível pela enorme distância entre os mundos bíblicos e o nosso mundo (uso o plural “mundos bíblicos” porque a revelação bíblica atravessa séculos e uma variedade de tipos de sociedade). A grande extensão da “ponte” entre esses mundos impossibilita tirar uma receita política definida.

E, em terceiro lugar, a unidade política cristã é impossível por causa da natureza da tarefa política. Como reza a famosa (pseudo)definição, a política é “a arte do possível”. Sendo assim, mesmo que você e eu tiremos da revelação bíblica as mesmíssimas conclusões, ainda assim podemos divergir radicalmente naquilo que cada um considera possível e aconselhável fazer hoje no Brasil. Consequentemente, a maneira de votar e de se comportar politicamente será diferente.

O “recato” cristão versus a politização da fé

O resultado destas três razões é que existe um certo “recato” cristão diante da política, uma certa hesitação, um certo não dogmatismo. Novamente, podemos contrastar o cristianismo com outras religiões que parecem ter uma vontade maior de elaborar receitas políticas aplicáveis em qualquer lugar e tempo. O cristianismo tende a ficar sempre com um pé atrás nos seus pronunciamentos políticos. Com base neste recato político cristão, a politização da fé é desastrosa porque quer cobrar um pedágio político de quem deseja trilhar o caminho da fé. A politização da fé é também idólatra, pois confunde o absoluto e o relativo. Mesmo afirmando a importância da política e do dever dos cristãos de participarem nela, e com paixão, os cristãos devem sempre lembrar que as suas opiniões políticas pertencem à esfera do relativo e não do absoluto, e nunca devem ser colocadas no mesmo patamar das crenças fundamentais da fé.


RELIGIÃO E POLÍTICA, SIM; IGREJA E ESTADO, NÃO
A visão cristã do Estado é que o Estado não deve ser “cristão”. O papel do Estado não é defender ou promover uma determinada igreja ou religião. Entretanto, dizer que a religião nada tem a ver com a ação política é lógica e historicamente falso. Religião e política podem, sim, ser misturadas.  
Em um momento como o que vivemos hoje é muito fácil perder a esperança, cair no desânimo ou aderir ao cinismo. No entanto, as verdades bíblicas e o propósito ético dos novos céus e da nova terra, “onde habita a justiça”, nos inspiram naquilo que devemos fazer hoje.
 
Autor de "Religião e Política, sim; Igreja e Estado, não" e "Nem Monge, Nem Executivo - Jesus: um modelo de espiritualidade invertida", ambos pela Editora Ultimato; e "Neemias, Um Profissional a Serviço do Reino" e "Quem Perde, Ganha", pela ABU Editora, Paul Freston, inglês naturalizado brasileiro, é doutor em sociologia pela UNICAMP. É professor do programa de pós-graduação em ciências sociais na Universidade Federal de São Carlos e, desde 2003, professor catedrático de sociologia no Calvin College, nos Estados Unidos. É colunista da revista Ultimato.
  • Textos publicados: 17 [ver]

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