Opinião
- 05 de fevereiro de 2021
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A tecnologia no drama das Escrituras e os desafios de hoje
Por Bruno Maroni
"Sendo a tecnologia quase que onipresente hoje em dia, o que devemos fazer para entrar em uma relação de liberdade com ela?"
"Sendo a tecnologia quase que onipresente hoje em dia, o que devemos fazer para entrar em uma relação de liberdade com ela?"
— Martin Heidegger
TECNOLOGIA EM CONTEXTO
O fato de que nós perseguimos a tecnologia e de que ela nos persegue é cotidianamente constatado. A tecnologia toma parte na experiência humana tanto nos imparáveis laboratórios com os mais refinados recursos de pesquisa e desenvolvimento quanto na cozinha de casa, quando a cafeteira é acionada nas primeiras horas do dia. Outro fato é que à medida que as coisas (falando aqui das coisas de tecnologia) se tornam recorrentes em nossas rotinas e imprescindíveis para a sociedade, corremos o risco de perder a perspicácia e seriedade para refletirmos a respeito delas – analisá-las, criticá-las e propor alternativas.
Por isso precisamos pensar sobre tecnologia. Obviamente, diferentes escolas e pensadores se ocuparam dessa tarefa crucial para o desenvolvimento da sociedade, questionando o que compõe os recursos e práticas tecnológicos e em que medida a tecnologia influencia os arranjos sociais e a humanidade.
No entanto, estudiosos da filosofia da tecnologia reconhecem que esses esforços foram (e têm sido) na maioria polarizados, oscilando entre descrições da tecnologia desvinculados da realidade e críticas “apocalípticas” (para usar a expressão da Escola de Frankfurt) sobre o domínio tecnológico irreversível. Nessa assimetria de pessimistas e otimistas, alguns consideram que o avanço tecnológico esvazia o sentido da existência e servem à manipulação política, enquanto outros creem que o aprimoramento da tecnologia – na medicina e na comunicação, por exemplo – é capaz de ultrapassar os limites humanos, supostamente solucionando todos os problemas.
Claro, insights dos dois lados se encaixam ao “mundo real” da tecnologia, mas por ela ser ambígua como produção cultural, eles não são suficientes para interpretá-la e colaborar com um desenvolvimento que sirva à humanidade e natureza.
A TECNOLOGIA E OS POTENCIAIS DA CRIAÇÃO
A narrativa bíblica todo-abrangente da criação-queda-redenção tem notável potencial explicativo para a tecnologia, incluindo seus múltiplos processos de produção, e o exercício de pensar sobre esses processos (o objetivo da filosofia da tecnologia).
Apesar da distância em que a igreja tipicamente se coloca em relação à tecnologia – “o que a computação tem a ver com o discipulado?!” – a visão de mundo cristã não só é útil para entendermos o desenvolvimento tecnológico, como também traz contribuições singulares para a atividade técnica responsável. Em primeiro lugar, reconhecer que o mundo foi criado com intencionalidade, propósito e ordem faz toda a diferença para a tecnologia. Por que a tecnologia é possível? Porque vivemos em uma realidade criada. Por isso, inclusive, temos a capacidade de responder (positiva ou negativamente) e dar continuidade à criatividade divina.
A narrativa criacional mostra que a criação à imagem de Deus implica no mandato cultural (Gn 1.26; 2.15), a responsabilidade de cuidar, preservar, desenvolver e ampliar os potenciais da criação. A tecnologia é uma atividade cultural, por isso, carregada de significado.
O livro Filosofia da tecnologia: uma introdução (que conta com a participação de Marteen J. Verkerk, Jan Hoogland, Jan van der Stoep e Marc J. de Vrie) coloca que: “A tecnologia é inteiramente interessada com a forma na qual os seres humanos tentam ordenar e controlar a realidade com o propósito de terem uma existência mais satisfatória, mais segura” (2018, p. 47). Além de ser “desdobrada” deliberadamente pela criatividade humana, também recorremos à tecnologia como extensão das nossas habilidades e como meio para promovermos espaços habitáveis. Também precisamos entender que a tecnologia está inserida e interage na ampla rede de aspectos da criação.
Assim, como diz Derek Schuurman em Moldando um mundo digital: fé, cultura e tecnologia computacional, “O trabalho técnico possui mais do que implicações técnicas; ele também possui enormes implicações legais, éticas, políticas, sociais e outras de natureza não técnica” (2019, p. 62). Então, é útil (e necessário) para um engenheiro da computação, por exemplo, discernir o lugar de seu ofício técnico e artefato tecnológico em relação aos demais modos da realidade – tanto para o refinamento de seu trabalho quanto para a consequente contribuição que ele pode desempenhar às pessoas. Mas… a nossa experiência com a tecnologia não corresponde totalmente às possibilidades criacionais que ela dispõe?
A TECNOLOGIA E AS TENSÕES DA QUEDA
A narrativa bíblica interpreta e fornece atuação significativa na cultura porque reconhece que as muitas coisas do mundo criado – sejam ferramentas ou instituições – não estão no lugar devido. A queda dá sentido a isso. Por causa do pecado, o que era possibilidade para uma existência satisfatória incorre à fragmentação, um estilo de vida distorcido e desequilibrado. Essa também é uma constatação cotidiana. Passando os olhos por um feed de notícias ou refletindo sobre as nossas próprias práticas diárias, é fácil identificar os problemas que vêm na esteira da tecnologia.
A intervenção tecnológica para as indústrias alimentícias pode ampliar a produção e distribuição, mas o uso excessivo de agrotóxicos é nocivo para o meio ambiente e a saúde humana. A saúde, inclusive, é favorecida pelos sucessivos avanços na medicina – na manipulação química, por exemplo. Mas o uso irrestrito de medicamentos também não é isento de riscos.
Já na tecnologia da comunicação, a produção artística é potencializada, tendo a chance de ultrapassar os limites locais, ao mesmo tempo, a autenticidade criativa pode ser ofuscada pela mecanização do processo. Assim como o aprimoramento das tecnologias de informação, que as empresas e grupos políticos recorrem inapropriadamente para reunir dados do público. Outro exemplo, este bastante corriqueiro, são as mídias digitais, que viabilizam o contato extenso, mas ameaçam a intimidade necessária para a conexão social. Nesse cenário a utopia vira distopia.
Diferentes escolas e movimentos culturais questionaram a evolução científica e tecnológica e responderam (eficientemente ou não) às consequências desse avanço para a integridade humana, relacionamentos, instituições e para a natureza. Em Fé, esperança e tecnologia, Egbert Schuurman listou cinco desses “contramovimentos”: a visão existencialista, a neo-marxista, a contracultural, a pós-moderna, a new age e a naturalistas. Cada uma delas transita em uma postura crítica ao controle técnico-científico (endossado por perspectivas opostas, como a positivista, marxista e sistêmica). Egbert Schuurman explica a ênfase de cada dos contramovimentos citados resumindo o seguinte:
"Os existencialistas demonstraram que a liberdade do homem é ameaçada por uma sociedade tecnológica, na qual os próprios seres humanos são rebaixados a objetos manipuláveis. Os neomarxistas estão igualmente corretos ao chamar atenção à crescente influência das forças políticas e econômicas em nossa cultura no desenvolvimento da ciência e da tecnologia. Os teóricos da contracultura chamam com razão a atenção para a necessidade de tecnologias menos destrutivas e menos poluidoras da natureza e do meio ambiente. Os adeptos do New Age, opondo-se ao materialismo, buscam uma visão mais espiritual da vida, e os naturalistas, finalmente, enfatizam especialmente a importância da natureza." (2016, p. 172)
O que percebemos aqui são buscas implícitas ou explícitas de redenção para a tecnologia, que preserve a liberdade humana, mantenha a justiça e promova equilíbrio econômico, converse a natureza e cultive espiritualidade. Mas, o próprio Schuurman propõe que essas abordagens, mesmo com reivindicações legítimas e necessárias, seguem presas no problema da “autonomia”, alimentando uma tensão contínua entre a humanidade e seu ambiente. Para uma prática tecnológica redimida, muito mais que “expulsar” esse aspecto cultural do nosso contexto, precisamos olhar para a tecnologia reconhecendo como o evangelho a redireciona à plenitude de sua condição criacional.
A TECNOLOGIA E AS EXPECTATIVAS A REDENÇÃO
O apreço moderno e contemporâneo pela ciência e tecnologia tem muito a ver com o ímpeto para a perfeição. Mas vimos que por ser uma atividade cultural articulada por pessoas limitadas, é impossível que o progresso técnico cumpra todas as expectativas para o ser humano superar a si mesmo. A tecnologia não é neutra, por isso até mesmo os mais admiráveis avanços carregam riscos. A narrativa bíblica, porém, deixa claro que ela não escapa da obra restauradora de toda a criação realizada em Cristo (Cl 116-20).
A tecnologia experimenta a redenção quando a autonomia se inverte em serviço à dignidade humana. Repensar o “porquê” e o “para quê” da tecnologia é vital para um desenvolvimento responsável. Isso é o que os autores argumentam em Filosofia da Tecnologia:
“O fato de os engenheiros terem uma responsabilidade específica em relação ao desenvolvimento significa que não esperamos somente que sejam “hábeis” em sua profissão, ou saberem “como” as coisas são feitas, mas que terão um senso de responsabilidade para com a questão do “porquê” da tecnologia, ou do interesse público da funcionalidade do produto. […] Não somente mais uma solução eficaz de tecnologia deveria ser buscada, mas também um produto que contribua para a qualidade de vida no sentido mais abrangente da palavra.” (VERKERK, 2018, p. 344)
Os projetos e empreendimentos tecnológicos abrem os significados intrínsecos à criação e assim aprofundam a experiência humana ou reduzem a complexidade da realidade e empobrecem a diversidade da vida? E quando interagimos com a tecnologia, nossas relações desintegram e fechamos o cotidiano para a espiritualidade?
Como a tecnologia está entremeada no tecido da nossa experiência ordinária, precisamos cultivar responsabilidade. E a fé que direciona o trabalho tecnológico pode orientá-lo em fidelidade ao Deus que se revela na criação (princípios normativos) e com amor, cuidado e serviço à comunidade. Isso pode acontecer por meio de projetos que se adaptem sensivelmente às culturas, que se articulem comunicativamente (entre os profissionais envolvidos e o público beneficiado por determinado empreendimento), viabilizem a educação e bem-estar social (prezando por acessibilidade, por exemplo). Também pode acontecer a partir do desenvolvimento de artefatos e processos criados com beleza, justiça e compassivos (que despertem conexão e não alienação).
Porém, para a possibilidade de um “ecossistema tecnológico” renovado – em harmonia com as relações pessoais, os recursos naturais e a fauna – é necessário deslocar a expectativa pela redenção autônoma, empregada por nós mesmos, e redescobri-la na esperança que atravessa a narrativa bíblica. Pelo ministério do Espírito no mundo, uma reorientação é possível, e que no dia do Senhor a tecnologia como atividade cultural será totalmente redimida. Essa é a esperança que deve dar o traçado para a prática tecnológica responsável.
• Bruno Maroni, 23 anos. Teólogo formado pela FTBSP, trabalha como editor no Ministério Razão Para Viver e serve na equipe pastoral da Comviver, igreja batista em Jundiaí-SP. Autor do recém publicado Cristianismo & Cultura Pop, aluno do Invisible College e colaborador do Coletivo Tangente e IACA Brasil, onde escreve sobre cosmovisão cristã, cultura e música popular.
Artigo publicado originalmente no site do Invisible College. Reproduzido com permissão.
Artigo publicado originalmente no site do Invisible College. Reproduzido com permissão.
Referências bibliográficas
SCHUURMAN, Derek C. Moldando um mundo digital: fé, cultura e tecnologia computacional. Trad. Leonardo Bruno Galdino. Brasília: Monergismo, 2018.
SCHUURMAN, Egbert. Fé, esperança e tecnologia: ciência e fé cristã em uma cultura tecnológica. Trad. Thaís Semionato. Viçosa-MG: Ultimato, 2016.
VERKERK, Maarten J. et al. Filosofia da tecnologia: uma introdução. Trad. Rodolfo Amorim Carlos de Souza. Viçosa-MG: Ultimato, 2018.
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