Opinião
- 28 de junho de 2017
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A síndrome de Down e o valor humano
Por Bráulia Ribeiro
Não nascem mais bebês com síndrome de Down na Islândia. A síndrome está erradicada do país. O anúncio é dado ao mundo pelos islandeses com orgulho. Mas falar em erradicação de uma síndrome cromossômica não é o mesmo que falar em erradicação da zika. Problemas genéticos sempre existirão entre nós. Só acabaremos com eles se fizermos peneiramento genético nos fetos. Ou seja, temos de matar antes do nascimento os que não se adequarem aos padrões genéticos normais. Erradicação aí é sinônimo de aniquilação sistemática. O que a Islândia está dizendo ao mundo é: “Aqui exterminamos sistematicamente todos os fetos que apresentem os sinais da síndrome de Down”. Colocado nestes termos, o fato já não é motivo para celebração, nem é uma realização científica. É uma daquelas notícias que causam um frio na espinha e nos lembram que a mentalidade que levou a Alemanha a exterminar judeus, ciganos, homossexuais e aleijados nas câmaras de gás ainda está bem viva no mundo hoje.
Para se chegar a um processo de aniquilação sistemática de seres humanos considerados “não normais” tem de se criar um consenso sobre o que é normal, o que é a vida humana digna. Normal e viável são duas coisas diferentes. Uma mãe de um feto de 12 semanas pode receber a notícia de que seu bebê não tem cérebro ou que tem uma má-formação no coração ou pulmão que vai impedi-lo de viver se chegar a nascer. Esse bebê não é viável, está condenado à morte por seus próprios problemas. O conceito de normal, no entanto, é algo muito mais complexo; depende de determinações culturais, de valores morais.
A ciência não pode ser a principal definidora de normalidade, porque somos sujeitos a problemas e variedades genéticas. Definir o “normal” é escolher um acima de todos os outros. O regime nacional-socialista de Hitler definiu o que era o ser humano “normal” por critérios que na época julgava ser científicos. O normal era o ariano, alto, de olhos azuis, de intelecto e forma física “superiores”.
De acordo com o que se sabe hoje, a síndrome de Down não é uma doença. É uma mutação genética que produz um novo tipo de ser humano. É um tipo mais fraco física e intelectualmente. Mas quem conviveu com alguma pessoa com Down sabe que elas são infinitamente mais doces, meigas, alegres e responsivas ao amor e ao carinho do que nós, os “normais”.
Uma repórter da BBC, mãe de uma criança com Down, produziu um documentário1 em que investiga as causas dos abortos de fetos com Down, na Inglaterra, praticados em números quase tão absolutos quanto na Islândia. O diagnóstico em si já é 99% preciso e não causa danos ao feto, e o plano do governo da Inglaterra é administrá-lo obrigatoriamente a todas as mulheres grávidas. Até agora 90% das mães inglesas que recebem o diagnóstico escolhem abortar. O que leva todas essas mães a se recusarem a serem mães de bebês Down? A investigação levou a documentarista a checar como o diagnóstico positivo chega às mães. Tanto num país quanto no outro a “informação” é quase coerciva. As mães recebem uma lista enorme das possíveis doenças que o bebê Down vai contrair, das suas dificuldades no aprendizado, do seu custo para a família. O quadro de terror não é amenizado por testemunhos positivos, nem pela informação factual de que hoje uma grande parte das pessoas com Down vivem vidas produtivas e felizes.
Essa discussão é maior do que a ciência e atinge a nossa noção de humanidade. Quem é o ser humano? Já me envolvi nesse debate antes, quando trabalhei pelo término do infanticídio indígena. Como definir o que é “pessoa”? O escrutínio, em muitas tribos, é tão severo quanto na Islândia. As sociedades indígenas não têm acesso à revelação cristã da imago Dei, de que todos os seres humanos têm igual valor, criados por Deus para a sua glória.
A noção de pessoa lhes é definida pelo custo social, não pelo valor humano. Parece-me que nos reinos prósperos da medicina socializada do norte da Europa, tendo o secularismo derrotado a Igreja em sua missão de definir moralmente quem é o ser humano, hoje quem define é o Estado. E, claro, ele o faz contando os custos. Na ausência dos valores cristãos, guiados pela mão da ciência, não existe outro caminho a não ser um retorno inevitável à barbárie.
Texto publicado originalmente na edição 365 da revista Ultimato.
Nota
1. A world without Down’s syndrome?
• Bráulia Ribeiro trabalhou como missionária na Amazônia durante trinta anos e no Pacífico por seis anos. Hoje é aluna de teologia na Universidade de Yale, Estados Unidos, e candidata ao doutorado pela Universidade de Aberdeen, Escócia. Mora em New Haven, CT, com sua família e é autora dos livros Chamado Radical e Tem Alguém Aí Em Cima?, publicados pela Editora Ultimato. www.braulia.com.br.
Leia mais
Como as pessoas com deficiência são tratadas em sua igreja?
Foto ilustrativa: Nathan Anderson/Unsplash.com.
Não nascem mais bebês com síndrome de Down na Islândia. A síndrome está erradicada do país. O anúncio é dado ao mundo pelos islandeses com orgulho. Mas falar em erradicação de uma síndrome cromossômica não é o mesmo que falar em erradicação da zika. Problemas genéticos sempre existirão entre nós. Só acabaremos com eles se fizermos peneiramento genético nos fetos. Ou seja, temos de matar antes do nascimento os que não se adequarem aos padrões genéticos normais. Erradicação aí é sinônimo de aniquilação sistemática. O que a Islândia está dizendo ao mundo é: “Aqui exterminamos sistematicamente todos os fetos que apresentem os sinais da síndrome de Down”. Colocado nestes termos, o fato já não é motivo para celebração, nem é uma realização científica. É uma daquelas notícias que causam um frio na espinha e nos lembram que a mentalidade que levou a Alemanha a exterminar judeus, ciganos, homossexuais e aleijados nas câmaras de gás ainda está bem viva no mundo hoje.
Para se chegar a um processo de aniquilação sistemática de seres humanos considerados “não normais” tem de se criar um consenso sobre o que é normal, o que é a vida humana digna. Normal e viável são duas coisas diferentes. Uma mãe de um feto de 12 semanas pode receber a notícia de que seu bebê não tem cérebro ou que tem uma má-formação no coração ou pulmão que vai impedi-lo de viver se chegar a nascer. Esse bebê não é viável, está condenado à morte por seus próprios problemas. O conceito de normal, no entanto, é algo muito mais complexo; depende de determinações culturais, de valores morais.
A ciência não pode ser a principal definidora de normalidade, porque somos sujeitos a problemas e variedades genéticas. Definir o “normal” é escolher um acima de todos os outros. O regime nacional-socialista de Hitler definiu o que era o ser humano “normal” por critérios que na época julgava ser científicos. O normal era o ariano, alto, de olhos azuis, de intelecto e forma física “superiores”.
De acordo com o que se sabe hoje, a síndrome de Down não é uma doença. É uma mutação genética que produz um novo tipo de ser humano. É um tipo mais fraco física e intelectualmente. Mas quem conviveu com alguma pessoa com Down sabe que elas são infinitamente mais doces, meigas, alegres e responsivas ao amor e ao carinho do que nós, os “normais”.
Uma repórter da BBC, mãe de uma criança com Down, produziu um documentário1 em que investiga as causas dos abortos de fetos com Down, na Inglaterra, praticados em números quase tão absolutos quanto na Islândia. O diagnóstico em si já é 99% preciso e não causa danos ao feto, e o plano do governo da Inglaterra é administrá-lo obrigatoriamente a todas as mulheres grávidas. Até agora 90% das mães inglesas que recebem o diagnóstico escolhem abortar. O que leva todas essas mães a se recusarem a serem mães de bebês Down? A investigação levou a documentarista a checar como o diagnóstico positivo chega às mães. Tanto num país quanto no outro a “informação” é quase coerciva. As mães recebem uma lista enorme das possíveis doenças que o bebê Down vai contrair, das suas dificuldades no aprendizado, do seu custo para a família. O quadro de terror não é amenizado por testemunhos positivos, nem pela informação factual de que hoje uma grande parte das pessoas com Down vivem vidas produtivas e felizes.
Essa discussão é maior do que a ciência e atinge a nossa noção de humanidade. Quem é o ser humano? Já me envolvi nesse debate antes, quando trabalhei pelo término do infanticídio indígena. Como definir o que é “pessoa”? O escrutínio, em muitas tribos, é tão severo quanto na Islândia. As sociedades indígenas não têm acesso à revelação cristã da imago Dei, de que todos os seres humanos têm igual valor, criados por Deus para a sua glória.
A noção de pessoa lhes é definida pelo custo social, não pelo valor humano. Parece-me que nos reinos prósperos da medicina socializada do norte da Europa, tendo o secularismo derrotado a Igreja em sua missão de definir moralmente quem é o ser humano, hoje quem define é o Estado. E, claro, ele o faz contando os custos. Na ausência dos valores cristãos, guiados pela mão da ciência, não existe outro caminho a não ser um retorno inevitável à barbárie.
Texto publicado originalmente na edição 365 da revista Ultimato.
Nota
1. A world without Down’s syndrome?
• Bráulia Ribeiro trabalhou como missionária na Amazônia durante trinta anos e no Pacífico por seis anos. Hoje é aluna de teologia na Universidade de Yale, Estados Unidos, e candidata ao doutorado pela Universidade de Aberdeen, Escócia. Mora em New Haven, CT, com sua família e é autora dos livros Chamado Radical e Tem Alguém Aí Em Cima?, publicados pela Editora Ultimato. www.braulia.com.br.
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Como as pessoas com deficiência são tratadas em sua igreja?
Foto ilustrativa: Nathan Anderson/Unsplash.com.
Trabalhou como missionária na Amazônia durante trinta anos e no Pacífico por seis anos. Hoje é aluna de teologia na Universidade de Yale, Estados Unidos, e candidata ao doutorado pela Universidade de Aberdeen, Escócia. Mora em New Haven, CT, com sua família. É autora de Chamado Radical e Tem Alguém Aí em Cima?
Para saber mais, acesse: braulia.com.br
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