Opinião
- 14 de novembro de 2019
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A questão da relevância
Por Alderi Souza de Matos
A matéria saiu no jornal The New York Times de 6 de setembro: “O que atrai ateus, judeus e católicos para uma igreja presbiteriana”. Em seguida, vem a explicação: “Na Igreja Presbiteriana Rutgers, em Manhattan, justiça social e questões ambientais unem a congregação. Também existem aquelas coisas de Bíblia”. O articulista fala de um sermão dominical recente que tratou dos perigos das verduras geneticamente modificadas e observa que, nessa igreja, ter uma crença em Deus – qualquer Deus que seja – é opcional. A comunidade que ali se reúne é amalgamada por outro conjunto de convicções, que inclui a luta pela justiça, o ativismo contra as mudanças climáticas, refeições para os sem-teto e uma força tarefa para ajudar famílias refugiadas.
O fenômeno retratado nessa reportagem é passível de muitas análises e interpretações. Uma questão que parece central é a busca de finalidade ou propósito. Ao longo dos séculos, os cristãos têm se perguntado para que existe a igreja, qual é o seu objetivo ou, em linguagem mais atual, qual a sua missão no mundo. Uma contribuição para o debate foi dada pelo teólogo H. Richard Niebuhr. Em seu famoso livro Cristo e Cultura (1951), ele refletiu sobre as possibilidades de relação entre a igreja e a sociedade. Olhando para a história cristã, identificou cinco tipos, sendo os dois primeiros polos opostos: “Cristo contra a cultura” e “O Cristo da cultura”. O primeiro vê uma incompatibilidade total entre o reino de Deus e a sociedade secular. É exemplo disso o monasticismo medieval, com sua proposta de abandono do mundo. No segundo tipo, Cristo é considerado um grande herói da história cultural. Isso ocorre com aqueles que veem íntima relação entre o cristianismo e a civilização ocidental, como o filósofo Hegel.
Os outros tipos representam uma posição intermediária, afirmando continuidades e descontinuidades. O terceiro tipo é “Cristo acima da cultura”, para o qual, além das realizações humanas, Cristo deve proceder de cima e entrar na vida, trazendo realidades que a aspiração e o esforço humano não podem alcançar. O quarto tipo, “Cristo e a cultura em paradoxo”, acentua a tensão que acompanha a obediência a duas autoridades. O ser humano é visto como sujeito a duas moralidades e como cidadão de dois mundos em oposição. Por fim, o quinto modelo de Niebuhr, “Cristo, o transformador da cultura”, vê a natureza humana e a cultura como pecaminosas, havendo oposição entre Cristo e as instituições humanas. Porém, essa antítese não leva nem à separação do mundo nem à expectativa de uma salvação além da história. Cristo converte o homem na sua cultura e sociedade. Estes três últimos tipos seriam representados, respectivamente, por Tomás de Aquino, Martinho Lutero e Agostinho/João Calvino.
Nas últimas décadas, muitas igrejas evangélicas brasileiras têm revelado certa angústia em relação à sua identidade e à sua missão no mundo. De maneira crescente, tem surgido a questão da relevância, ou seja, não basta ser igreja, é precisar fazer diferença na sociedade em que se vive. E essa diferença tem sido entendida principalmente em termos de ativismo político e social, de luta por uma sociedade mais justa e fraterna, como na igreja mencionada acima. É uma atitude que parece refletir o quarto tipo de Niebuhr, Cristo e a cultura em paradoxo, em tensão criativa. A cultura é fonte de opressão e discriminação, mas também oferece propostas de superação dos seus pecados.
Temos de nos perguntar como se deve refletir sobre isso biblicamente. Olhando para o Novo Testamento, vemos que Cristo redimiu e reuniu a sua igreja com uma série de propósitos. O primeiro e mais elevado deles é a glória do próprio Deus trino, o “soli Deo gloria” da Reforma (Rm 11.36). Em um artigo recente, Mark Galli, editor-chefe da revista Christianity Today, argumenta que o ativismo missional das igrejas evangélicas tem obscurecido a sua paixão por Deus. A preocupação com os outros tem deixado em segundo plano o Supremo Outro. Em segundo lugar, à luz do Novo Testamento, a igreja existe para ser instrumento de reconciliação das pessoas com Deus e de educação na fé dos novos discípulos. Ela deve levar ao mundo aquilo que nenhuma outra instituição ou organização pode oferecer, aquilo de que os indivíduos e a sociedade mais necessitam numa perspectiva ampla, profunda e duradoura. João Calvino se referiu à igreja no desempenho dessa função como “mãe e mestra”, ou seja, ela gera novos filhos para Deus por meio do evangelho e os nutre e educa durante toda a sua vida.
Em terceiro lugar, e de modo subsidiário às duas primeiras finalidades, a igreja deve proclamar e viver na sociedade humana os valores da verdade, da justiça e da solidariedade do reino. Se ela omitir as primeiras finalidades e ficar só com esta, corre o risco de se tornar uma espécie de organização não governamental – e muito pouco eficiente –, pois não tem a força e os recursos para promover a justiça social, que é acima de tudo uma tarefa dos governantes. Segundo o artigo mencionado no início, muitas igrejas estão se “reinventando” para serem comunidades de acolhimento, onde todos são bem-vindos, independentemente de suas convicções. Devemos ser isto, mas sem deixar de lado a glória de Deus e a proclamação do seu evangelho. A igreja não é chamada prioritariamente para ser relevante, mas para ser fiel.
>> Conheça o livro A Missão da Igreja Hoje, de Michael Goheen
*Artigo originalmente publicado na edição 380 da revista Ultimato.
O fenômeno retratado nessa reportagem é passível de muitas análises e interpretações. Uma questão que parece central é a busca de finalidade ou propósito. Ao longo dos séculos, os cristãos têm se perguntado para que existe a igreja, qual é o seu objetivo ou, em linguagem mais atual, qual a sua missão no mundo. Uma contribuição para o debate foi dada pelo teólogo H. Richard Niebuhr. Em seu famoso livro Cristo e Cultura (1951), ele refletiu sobre as possibilidades de relação entre a igreja e a sociedade. Olhando para a história cristã, identificou cinco tipos, sendo os dois primeiros polos opostos: “Cristo contra a cultura” e “O Cristo da cultura”. O primeiro vê uma incompatibilidade total entre o reino de Deus e a sociedade secular. É exemplo disso o monasticismo medieval, com sua proposta de abandono do mundo. No segundo tipo, Cristo é considerado um grande herói da história cultural. Isso ocorre com aqueles que veem íntima relação entre o cristianismo e a civilização ocidental, como o filósofo Hegel.
Os outros tipos representam uma posição intermediária, afirmando continuidades e descontinuidades. O terceiro tipo é “Cristo acima da cultura”, para o qual, além das realizações humanas, Cristo deve proceder de cima e entrar na vida, trazendo realidades que a aspiração e o esforço humano não podem alcançar. O quarto tipo, “Cristo e a cultura em paradoxo”, acentua a tensão que acompanha a obediência a duas autoridades. O ser humano é visto como sujeito a duas moralidades e como cidadão de dois mundos em oposição. Por fim, o quinto modelo de Niebuhr, “Cristo, o transformador da cultura”, vê a natureza humana e a cultura como pecaminosas, havendo oposição entre Cristo e as instituições humanas. Porém, essa antítese não leva nem à separação do mundo nem à expectativa de uma salvação além da história. Cristo converte o homem na sua cultura e sociedade. Estes três últimos tipos seriam representados, respectivamente, por Tomás de Aquino, Martinho Lutero e Agostinho/João Calvino.
Nas últimas décadas, muitas igrejas evangélicas brasileiras têm revelado certa angústia em relação à sua identidade e à sua missão no mundo. De maneira crescente, tem surgido a questão da relevância, ou seja, não basta ser igreja, é precisar fazer diferença na sociedade em que se vive. E essa diferença tem sido entendida principalmente em termos de ativismo político e social, de luta por uma sociedade mais justa e fraterna, como na igreja mencionada acima. É uma atitude que parece refletir o quarto tipo de Niebuhr, Cristo e a cultura em paradoxo, em tensão criativa. A cultura é fonte de opressão e discriminação, mas também oferece propostas de superação dos seus pecados.
Temos de nos perguntar como se deve refletir sobre isso biblicamente. Olhando para o Novo Testamento, vemos que Cristo redimiu e reuniu a sua igreja com uma série de propósitos. O primeiro e mais elevado deles é a glória do próprio Deus trino, o “soli Deo gloria” da Reforma (Rm 11.36). Em um artigo recente, Mark Galli, editor-chefe da revista Christianity Today, argumenta que o ativismo missional das igrejas evangélicas tem obscurecido a sua paixão por Deus. A preocupação com os outros tem deixado em segundo plano o Supremo Outro. Em segundo lugar, à luz do Novo Testamento, a igreja existe para ser instrumento de reconciliação das pessoas com Deus e de educação na fé dos novos discípulos. Ela deve levar ao mundo aquilo que nenhuma outra instituição ou organização pode oferecer, aquilo de que os indivíduos e a sociedade mais necessitam numa perspectiva ampla, profunda e duradoura. João Calvino se referiu à igreja no desempenho dessa função como “mãe e mestra”, ou seja, ela gera novos filhos para Deus por meio do evangelho e os nutre e educa durante toda a sua vida.
Em terceiro lugar, e de modo subsidiário às duas primeiras finalidades, a igreja deve proclamar e viver na sociedade humana os valores da verdade, da justiça e da solidariedade do reino. Se ela omitir as primeiras finalidades e ficar só com esta, corre o risco de se tornar uma espécie de organização não governamental – e muito pouco eficiente –, pois não tem a força e os recursos para promover a justiça social, que é acima de tudo uma tarefa dos governantes. Segundo o artigo mencionado no início, muitas igrejas estão se “reinventando” para serem comunidades de acolhimento, onde todos são bem-vindos, independentemente de suas convicções. Devemos ser isto, mas sem deixar de lado a glória de Deus e a proclamação do seu evangelho. A igreja não é chamada prioritariamente para ser relevante, mas para ser fiel.
>> Conheça o livro A Missão da Igreja Hoje, de Michael Goheen
Autor de A Caminhada Cristã na História, Alderi Souza de Matos é pastor presbiteriano e professor no Centro de Pós-Graduação Andrew Jumper, em São Paulo. É bacharel em teologia, filosofia e direito, mestre em Novo Testamento (S.T.M.) e doutor em História da Igreja (Th.D.). É também o historiador da Igreja Presbiteriana do Brasil e escreve a coluna “História” da revista Ultimato.
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