Opinião
- 29 de setembro de 2021
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A propósito dos 700 anos da morte de Dante Alighieri: você já leu "A Divina Comédia"?
Por Carlos Caldas
O ano de 2021 marca o sétimo centenário da morte do poeta florentino Dante Alighieri, il sommo poeta (“o poeta maior”). A propósito, a fundação portuguesa Calouste Gulbenkian está realizando em Lisboa a exposição “Dias de Dante”. A programação, aberta ao público até novembro, teve abertura com palestra pelo Cardeal José Tolentino Mendonça, poeta e biblista do mais alto nível, o atual responsável pela legendária Biblioteca do Vaticano. Como parte das programações da exposição, será também realizado um colóquio internacional intitulado “Dante: um poeta do nosso tempo”, com participação de intelectuais notáveis, como o crítico literário argentino Alberto Manguel e a professora italiana Lina Bolzoni1.
As atividades são mais que justas. Dante figura em qualquer lista das obras mais importantes já escritas em todos os tempos por conta de sua magnífica A Divina Comédia. A obra, traduzida para muitas línguas, foi ilustrada por artistas do calibre de um Sandro Botticelli, um Gustave Doré e um William Blake – para ficar em apenas três exemplos – e recebeu inúmeras adaptações, como versão em prosa e em quadrinhos, e tem exercido influência em autores como um C. S. Lewis – The Great Divorce (O grande divórcio2 no Brasil) é nitidamente calcado em Dante. Algumas passagens da obra tornaram-se muito conhecidas, tais como o início do primeiro canto do Inferno:
Nel mezzo del cammin di nostra vita
mi ritrovai per una selva oscura
ché la diritta via era smarrita3.
Na época de Dante só se escreviam poemas em latim. O florentino inovou e ousou ao escrever sua obra magistral em italiano – na verdade, na variante dialetal da língua então falada em Florença, região da Toscana, que deu origem ao italiano tal como o conhecemos atualmente. O título original da obra é apenas Commedia. O poeta Giovanni Boccaccio a denominou Divina Commedia, e desde então a obra é assim conhecida. A palavra comédia na época era usada em sentido diferente da que se hoje utiliza: não se tratava de uma peça humorística, mas de uma narrativa com final feliz, contrastando com a tragédia.
A obra é dividida em três partes com 33 cantos cada, mais um de introdução, perfazendo um total de cem cantos. O número cem é simbólico de perfeição. O três por sua vez é simbólico da Santíssima Trindade na tradição cristã. Há detalhes muito curiosos na obra, como por exemplo, a última palavra de cada uma das três partes da obra é estrelas. A Divina Comédia é uma apresentação da cosmovisão medieval. Logo, além de obra literária produzida com rara sofisticação estilística, na qual Dante é a um só tempo narrador e personagem, é uma exposição de história das ideias, ao apresentar a escatologia individual medieval, isto é, o que se acreditava na época quanto ao destino pós-vida. Na obra, encontra-se a narrativa da viagem de Dante ao além: começando pelo Limbo e percorrendo, nesta ordem, o Inferno, o Purgatório e o Paraíso. Cada região destas tem nove círculos. Tal como na literatura apocalíptica judaico-cristã, Dante em sua viagem pelas regiões da geografia cósmica sempre é acompanhado de um guia, a saber: Virgílio (poeta romano, 70-19 a. C.), que o guia pelo Limbo, pelo Inferno e pelo Purgatório, Beatriz – Beatrice, a amada do poeta (de quem quase nada se sabe), que o guia nos primeiros círculos do Paraíso, e por fim, São Bernardo de Claraval (1090-1153, monge cisterciense e teólogo francês). No Limbo Dante e Virgílio encontram com os sábios virtuosos que não são castigados, mas que não recebem a bem-aventurança porque não foram batizados (Canto IV, 34, 37). Dentre as figuras encontradas por Dante encontram-se, entre outros: Sócrates, Platão, Demócrito, Heráclito, Zenão de Eleia, Homero, Horácio, Ovídio, Lucano, além do próprio Virgílio. No Canto III do Inferno encontra-se uma das frases mais conhecidas e citadas da literatura mundial em todos os tempos: “deixai toda esperança, vós que aqui entrais”.
Tanto o Inferno, quanto o Purgatório e o Paraíso são divididos em nove círculos cada. Os círculos do Inferno formam uma espiral descendente, isto é, a cada volta os viajantes estão um nível mais baixo que o anterior. Em cada círculo um pecado é castigado, dos considerados mais leves (os “pecados de contenção” ou “da carne”, de natureza sexual) aos mais graves (a traição a quem fez o bem, isto é, pagar o bem com o mal, com “destaque” para os traidores da pátria e da família). Nos círculos do Inferno Dante e seu guia Virgílio encontram-se com figuras históricas e mitológicas, o que demonstra uma liberdade poética impressionante. No nono círculo está Satanás, preso, não em um lago de fogo, mas em um abismo de gelo. O Satanás de Dante é imaginado como um ser que faz lembrar morcego monstruoso gigantesco, preso da cintura para baixo no gelo, batendo desesperadamente as asas, mas sem conseguir sair do lugar.
Do Inferno os dois viajantes passam para o Purgatório. Agora, é uma subida: a cada círculo, eles estão um nível acima do inferior. Dante foi o responsável pela popularização da ideia do “terceiro lugar” na crença popular4. Quem está no Purgatório tem que, como o próprio nome do lugar indica, purgar seus pecados, para poder sair de lá e chegar ao Paraíso, o terceiro e último ponto da viagem de Dante. Virgílio não mais poderá ser seu guia, pois tendo vivido antes da vinda de Jesus, não recebeu o batismo. Dante doravante será guiado por Beatriz, pelo menos, nos primeiros seis círculos, ou “céus”. Cada céu do Paraíso é governado por um astro. No Quarto Céu por exemplo, o Céu do Sol, estão os teólogos. Alberto Magno e Tomás de Aquino, respectivamente, mestre e discípulo, Pedro Lombardo, Isidoro de Sevilha (considerado por alguns como o último dos Pais da Igreja ocidental) e Ricardo de São Vitor, entre outros, são citados. Um dos momentos mais interessantes na subida do Paraíso está no Canto XI, quando ele se encontra com São Francisco de Assis, um dos mais notáveis cristãos que a Idade Média produziu5. Nos últimos três céus o guia de Dante não será mais Beatriz, mas São Bernardo de Claraval, outra figura notabilíssima do cristianismo medieval ocidental6. No último céu está a Rosa Mística, no centro da qual está a Santíssima Trindade. Por intercessão feita por São Bernardo à Virgem Maria, Dante pode contemplar a Trindade.
A Divina Comédia ocupa com mérito seu lugar destacado no cânon da literatura mundial. A obra é criativa, intrigante, fascinante e provocadora. As comemorações dos 700 anos da morte de Dante propiciam oportunidade não apenas para que nos lembremos de seu legado, mas para que pensemos em questões do nosso “hoje”. Vivemos em um tempo contraditório: por um lado, há uma facilidade inacreditável de acesso a informações. Com um telefone celular todo mundo tem um computador e enciclopédias literalmente na palma da mão. Por outro lado, estranhamente, nunca se viu uma época como a nossa, com tanta superficialidade e ignorância praticamente generalizada. Tirando exceções, que graças a Deus sempre houve, há e haverá, nunca foi tão fácil acessar informações, mas nunca se leu tão pouco. Dante em seu tempo jamais teria produzido uma obra tão formidável se não tivesse um repertório imenso de leituras, de autores contemporâneos e antigos. Daí, é inevitável que a pergunta seja feita: você já leu A Divina Comédia? Se sim, que tal lê-la outra vez. Se não, que tal aceitar o desafio de ler um clássico entre os clássicos?
Notas:
1. Cardeal Tolentino Mendonça abre celebrações dos 700 anos da morte de Dante. Pastoral da Cultura. Disponível aqui. Acesso em 26 set. 2021
2. As primeiras edições brasileiras desta obra de Lewis traduziram o título como O grande abismo. A edição mais recente, da Thomas Nelson, optou por O grande divórcio.
3. “No meio do caminho de nossa vida eu me encontrei em uma selva escura, porque o caminho certo foi perdido.”
4. Para detalhes da “invenção” do Purgatório na perspectiva da história das ideias o texto clássico é O nascimento do Purgatório (Petrópolis: Vozes, 2017) do medievalista francês Jacques Le Goff.
5. O estudo definitivo do Canto XI do Paraíso é o feito pelo crítico literário alemão Erich Auerbach: São Francisco de Assis na Comédia de Dante, um dos capítulos de seu livro Figura. São Paulo: Ática, 1997.
6. Para uma biografia de São Bernardo de Claraval, consultar GALLO, Max. A cruzada do monge. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007
Leia mais:
» 25 Livros Que Todo Cristão Deveria Ler, Richard Foster e Dallas Willard
» Pai nosso de Dante
O ano de 2021 marca o sétimo centenário da morte do poeta florentino Dante Alighieri, il sommo poeta (“o poeta maior”). A propósito, a fundação portuguesa Calouste Gulbenkian está realizando em Lisboa a exposição “Dias de Dante”. A programação, aberta ao público até novembro, teve abertura com palestra pelo Cardeal José Tolentino Mendonça, poeta e biblista do mais alto nível, o atual responsável pela legendária Biblioteca do Vaticano. Como parte das programações da exposição, será também realizado um colóquio internacional intitulado “Dante: um poeta do nosso tempo”, com participação de intelectuais notáveis, como o crítico literário argentino Alberto Manguel e a professora italiana Lina Bolzoni1.
As atividades são mais que justas. Dante figura em qualquer lista das obras mais importantes já escritas em todos os tempos por conta de sua magnífica A Divina Comédia. A obra, traduzida para muitas línguas, foi ilustrada por artistas do calibre de um Sandro Botticelli, um Gustave Doré e um William Blake – para ficar em apenas três exemplos – e recebeu inúmeras adaptações, como versão em prosa e em quadrinhos, e tem exercido influência em autores como um C. S. Lewis – The Great Divorce (O grande divórcio2 no Brasil) é nitidamente calcado em Dante. Algumas passagens da obra tornaram-se muito conhecidas, tais como o início do primeiro canto do Inferno:
Nel mezzo del cammin di nostra vita
mi ritrovai per una selva oscura
ché la diritta via era smarrita3.
Na época de Dante só se escreviam poemas em latim. O florentino inovou e ousou ao escrever sua obra magistral em italiano – na verdade, na variante dialetal da língua então falada em Florença, região da Toscana, que deu origem ao italiano tal como o conhecemos atualmente. O título original da obra é apenas Commedia. O poeta Giovanni Boccaccio a denominou Divina Commedia, e desde então a obra é assim conhecida. A palavra comédia na época era usada em sentido diferente da que se hoje utiliza: não se tratava de uma peça humorística, mas de uma narrativa com final feliz, contrastando com a tragédia.
Para ler extratos de "A Divina Comédia", como o "Canto do Inferno" e "Purgatório", conheça 25 Livros Que Todo Cristão Deveria Ler, de Richard Foster e Dallas Willard, com os elementos essenciais da obra e algumas poucas e boas razões para ler Dante Alighieri.
A obra é dividida em três partes com 33 cantos cada, mais um de introdução, perfazendo um total de cem cantos. O número cem é simbólico de perfeição. O três por sua vez é simbólico da Santíssima Trindade na tradição cristã. Há detalhes muito curiosos na obra, como por exemplo, a última palavra de cada uma das três partes da obra é estrelas. A Divina Comédia é uma apresentação da cosmovisão medieval. Logo, além de obra literária produzida com rara sofisticação estilística, na qual Dante é a um só tempo narrador e personagem, é uma exposição de história das ideias, ao apresentar a escatologia individual medieval, isto é, o que se acreditava na época quanto ao destino pós-vida. Na obra, encontra-se a narrativa da viagem de Dante ao além: começando pelo Limbo e percorrendo, nesta ordem, o Inferno, o Purgatório e o Paraíso. Cada região destas tem nove círculos. Tal como na literatura apocalíptica judaico-cristã, Dante em sua viagem pelas regiões da geografia cósmica sempre é acompanhado de um guia, a saber: Virgílio (poeta romano, 70-19 a. C.), que o guia pelo Limbo, pelo Inferno e pelo Purgatório, Beatriz – Beatrice, a amada do poeta (de quem quase nada se sabe), que o guia nos primeiros círculos do Paraíso, e por fim, São Bernardo de Claraval (1090-1153, monge cisterciense e teólogo francês). No Limbo Dante e Virgílio encontram com os sábios virtuosos que não são castigados, mas que não recebem a bem-aventurança porque não foram batizados (Canto IV, 34, 37). Dentre as figuras encontradas por Dante encontram-se, entre outros: Sócrates, Platão, Demócrito, Heráclito, Zenão de Eleia, Homero, Horácio, Ovídio, Lucano, além do próprio Virgílio. No Canto III do Inferno encontra-se uma das frases mais conhecidas e citadas da literatura mundial em todos os tempos: “deixai toda esperança, vós que aqui entrais”.
Tanto o Inferno, quanto o Purgatório e o Paraíso são divididos em nove círculos cada. Os círculos do Inferno formam uma espiral descendente, isto é, a cada volta os viajantes estão um nível mais baixo que o anterior. Em cada círculo um pecado é castigado, dos considerados mais leves (os “pecados de contenção” ou “da carne”, de natureza sexual) aos mais graves (a traição a quem fez o bem, isto é, pagar o bem com o mal, com “destaque” para os traidores da pátria e da família). Nos círculos do Inferno Dante e seu guia Virgílio encontram-se com figuras históricas e mitológicas, o que demonstra uma liberdade poética impressionante. No nono círculo está Satanás, preso, não em um lago de fogo, mas em um abismo de gelo. O Satanás de Dante é imaginado como um ser que faz lembrar morcego monstruoso gigantesco, preso da cintura para baixo no gelo, batendo desesperadamente as asas, mas sem conseguir sair do lugar.
Do Inferno os dois viajantes passam para o Purgatório. Agora, é uma subida: a cada círculo, eles estão um nível acima do inferior. Dante foi o responsável pela popularização da ideia do “terceiro lugar” na crença popular4. Quem está no Purgatório tem que, como o próprio nome do lugar indica, purgar seus pecados, para poder sair de lá e chegar ao Paraíso, o terceiro e último ponto da viagem de Dante. Virgílio não mais poderá ser seu guia, pois tendo vivido antes da vinda de Jesus, não recebeu o batismo. Dante doravante será guiado por Beatriz, pelo menos, nos primeiros seis círculos, ou “céus”. Cada céu do Paraíso é governado por um astro. No Quarto Céu por exemplo, o Céu do Sol, estão os teólogos. Alberto Magno e Tomás de Aquino, respectivamente, mestre e discípulo, Pedro Lombardo, Isidoro de Sevilha (considerado por alguns como o último dos Pais da Igreja ocidental) e Ricardo de São Vitor, entre outros, são citados. Um dos momentos mais interessantes na subida do Paraíso está no Canto XI, quando ele se encontra com São Francisco de Assis, um dos mais notáveis cristãos que a Idade Média produziu5. Nos últimos três céus o guia de Dante não será mais Beatriz, mas São Bernardo de Claraval, outra figura notabilíssima do cristianismo medieval ocidental6. No último céu está a Rosa Mística, no centro da qual está a Santíssima Trindade. Por intercessão feita por São Bernardo à Virgem Maria, Dante pode contemplar a Trindade.
A Divina Comédia ocupa com mérito seu lugar destacado no cânon da literatura mundial. A obra é criativa, intrigante, fascinante e provocadora. As comemorações dos 700 anos da morte de Dante propiciam oportunidade não apenas para que nos lembremos de seu legado, mas para que pensemos em questões do nosso “hoje”. Vivemos em um tempo contraditório: por um lado, há uma facilidade inacreditável de acesso a informações. Com um telefone celular todo mundo tem um computador e enciclopédias literalmente na palma da mão. Por outro lado, estranhamente, nunca se viu uma época como a nossa, com tanta superficialidade e ignorância praticamente generalizada. Tirando exceções, que graças a Deus sempre houve, há e haverá, nunca foi tão fácil acessar informações, mas nunca se leu tão pouco. Dante em seu tempo jamais teria produzido uma obra tão formidável se não tivesse um repertório imenso de leituras, de autores contemporâneos e antigos. Daí, é inevitável que a pergunta seja feita: você já leu A Divina Comédia? Se sim, que tal lê-la outra vez. Se não, que tal aceitar o desafio de ler um clássico entre os clássicos?
Notas:
1. Cardeal Tolentino Mendonça abre celebrações dos 700 anos da morte de Dante. Pastoral da Cultura. Disponível aqui. Acesso em 26 set. 2021
2. As primeiras edições brasileiras desta obra de Lewis traduziram o título como O grande abismo. A edição mais recente, da Thomas Nelson, optou por O grande divórcio.
3. “No meio do caminho de nossa vida eu me encontrei em uma selva escura, porque o caminho certo foi perdido.”
4. Para detalhes da “invenção” do Purgatório na perspectiva da história das ideias o texto clássico é O nascimento do Purgatório (Petrópolis: Vozes, 2017) do medievalista francês Jacques Le Goff.
5. O estudo definitivo do Canto XI do Paraíso é o feito pelo crítico literário alemão Erich Auerbach: São Francisco de Assis na Comédia de Dante, um dos capítulos de seu livro Figura. São Paulo: Ática, 1997.
6. Para uma biografia de São Bernardo de Claraval, consultar GALLO, Max. A cruzada do monge. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007
Leia mais:
» 25 Livros Que Todo Cristão Deveria Ler, Richard Foster e Dallas Willard
» Pai nosso de Dante
É professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da PUC Minas, onde coordena o GPRA – Grupo de Pesquisa Religião e Arte.
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