Opinião
- 03 de novembro de 2017
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A participação cristã no direito das mulheres ao voto
Por Isabella Passos
O sufrágio* universal das mulheres, o direito de votar, foi alcançado por diferentes países em diferentes momentos. Em alguns deles, o sufrágio feminino foi concedido mesmo antes do sufrágio universal, visto que o impedimento do voto se direcionava tanto a homens quanto a mulheres, dependendo de suas classes sociais ou raças. Alguns países concederam o voto a ambos os sexos no mesmo período. Por isso, o movimento do sufrágio feminino é um movimento pelo voto universal da mulher apesar de uma insistente narrativa de que o problema se direcionava somente a elas e a todas elas. O filme As Sufragistas reitera essa leitura seletiva e militante ao não mencionar, por exemplo, que pelo menos 40% dos homens britânicos não tinha o direito ao voto na época dos fatos descritos, ao passo que algumas mulheres já votavam.
Os estados federados dos Estados Unidos da América outorgaram o voto às mulheres a partir de 1869, no Wyoming, tornando-se exemplo para o resto do mundo. Entretanto, em nível federal, os direitos políticos femininos só foram reconhecidos em 1920. E vale um parêntesis: especialmente as mulheres afro-americanas tiveram que esperar até 1965 para que o Voting Right Act lhes garantisse esse direito em todos os estados federados [1].
Em 1893, a Nova Zelândia se torna o primeiro país a conceder o voto universal às mulheres, atendendo tanto as de origem europeia quanto as mulheres maoris. No século XX, em 1902, a Austrália permite às mulheres votarem e se candidatarem às eleições. E ainda antes da França, Brasil e Uruguai, em 1930, concedem o direito do voto às suas cidadãs. Vale mencionar que o estado do Rio Grande do Norte é o pioneiro a autorizar o voto da mulher ainda antes da lei que valeu para todo o território brasileiro, lá pelos idos de 1928.
Assim, o percurso que leva ao exercício do voto é processual e cheio de controversas, como ocorre na maioria dos regimes de efetivação de direitos civis, sociais, políticos e religiosos instaurados pelas democracias modernas. Uma marca, porém, se destaca em todos eles: o legado protestante por meio da participação ativa da agência cristã em torno das pautas de reformas pelas quais passou o mundo moderno. Especialmente no sufrágio das mulheres, são os cristãos, sobretudo as mulheres cristãs [2], que formam grupos e disseminam experiências (o que o feminismo da moda não irá te contar), a partir, principalmente, dos Estado Unidos [3] e do Reino Unido.
“Consideramos essas verdades como evidentes; que todos os homens e mulheres são criados iguais; que são dotados pelo Criador com certos direitos inalienáveis; que entre estes estão a vida, a liberdade e a busca da felicidade. Para garantir esses direitos, os governos são instituídos, obtendo seus justos poderes pelo consentimento dos governados.” Declaração do Sentimentos, em 1848 (EUA).
Um evento em particular marca o fenômeno mundial e chama a atenção de toda a Europa. É a Convenção de Seneca Falls, reconhecida como a primeira convenção mundial pelos direitos das mulheres. Ela ocorre em 1848, em Seneca Falls, Nova York, em uma pequena Igreja Metodista Wesleyana. O evento teve dois dias de duração e resultou na Declaração de Sentimentos assinada por 68 mulheres e 32 homens [4]. Esse documento é escrito nos moldes da Declaração de Independência do EUA e tem como primeira resolução o “direito inalienável à franquia eletiva” por parte da mulher.
Com a fundação da União de Temperança da Mulher Cristã (WCTU), em 1873 e, posteriormente, a União Internacional de Temperança das Mulheres Cristãs, os grupos passam a operar internacionalmente sob a “missão religiosa pela reforma social”, que incluía trabalhos evangelísticos, assistenciais e a divulgação do sufrágio feminino. O seu internacionalismo forma grupos em diversos países do mundo, sendo que alguns deles permanecem ativos ainda hoje. Nesse caldo é formado, no Reino Unido, em 1897, a União Nacional pelo Sufrágio Feminino, primeiro grupo partidário com representantes no parlamento inglês para a alteração de leis que acabou concedendo o voto também aos homens com mais de 21 anos daquela nação.
Assim, o voto é mais uma das variantes produzidas pelo legado de liberdade aberto pela Reforma Protestante do séc. XVI. É a partir da antropologia reformada que mulheres e homens repensaram sua relação na família (núcleo de cuidado e de resistência ao secularismo), na igreja e na sociedade, principalmente por meio da atribuição do caráter religioso às condições da vida comum. É por causa da sua agenda reformista - e não revolucionária, que mulheres e homens encampam participação ativa e singular em associações que gradativamente saem do serviço social (filantropia), desde sempre realizado pela igreja, para a ação social e política exigida pela complexa estrutura formada pelo Estado moderno. Nesse sentido, não há em qualquer direção como não tributar à cristandade as condições de melhoria de vida das mulheres e dos homens modernos. Mesmo em episódios corriqueiros, como o da concessão do voto. Aqui, também, o resgate do sacerdócio universal de todos os crentes e a reforma das relações promovida pela ideia de igualdade presente nas raízes judaico-cristãs do movimento continuam a ditar o caminho do bem viver para a comunidade humana. Não sem as tensões próprias entre Cristo e cultura, claro. Mas essa é uma outra conversa. E viva a Reforma! Sempre.
• Isabella Passos é formada em Filosofia pela PUC-MG. Mora em Belo Horizonte e congrega na Igreja Esperança.
Notas:
* Embora muitas vezes utilizados como sinônimos, voto e sufrágio possuem significados diferentes. Sufrágio é o direito de votar e de ser votado; voto é a forma de exercer o direito ao sufrágio
[1] O livro negro da condição das mulheres, Ed. Difel, 2011, p. 610-611.
[2] O impacto do Cristianismo na primeira onda do feminismo. Vanessa Raquel de Almeida Meira e Isaac Malheiros.
[3] Segundo as historiadoras Sylvia Paletschek e Bianka Pietrow-Ennker, o movimento feminista internacional do séc. XIX, especialmente o britânico, o francês e o alemão são devedores do legado produzido pelo movimento das mulheres americanas, predominantemente, um movimento cristão e conservador. Ver em: Women's Emancipation Movements in the Nineteenth Century: A European Perspective. Stanford University Press, 2004, p. 4-5.
[4] Suffragist Men and the Importance of Allies.
Leia mais
Mulheres e homens: o que fazer com as diferenças?
É possível ser feminista cristã?
O feminismo quer redefinir o que é ser homem?
Imagem: Marcelo Camargo/Agência Brasil.
O sufrágio* universal das mulheres, o direito de votar, foi alcançado por diferentes países em diferentes momentos. Em alguns deles, o sufrágio feminino foi concedido mesmo antes do sufrágio universal, visto que o impedimento do voto se direcionava tanto a homens quanto a mulheres, dependendo de suas classes sociais ou raças. Alguns países concederam o voto a ambos os sexos no mesmo período. Por isso, o movimento do sufrágio feminino é um movimento pelo voto universal da mulher apesar de uma insistente narrativa de que o problema se direcionava somente a elas e a todas elas. O filme As Sufragistas reitera essa leitura seletiva e militante ao não mencionar, por exemplo, que pelo menos 40% dos homens britânicos não tinha o direito ao voto na época dos fatos descritos, ao passo que algumas mulheres já votavam.
Os estados federados dos Estados Unidos da América outorgaram o voto às mulheres a partir de 1869, no Wyoming, tornando-se exemplo para o resto do mundo. Entretanto, em nível federal, os direitos políticos femininos só foram reconhecidos em 1920. E vale um parêntesis: especialmente as mulheres afro-americanas tiveram que esperar até 1965 para que o Voting Right Act lhes garantisse esse direito em todos os estados federados [1].
Em 1893, a Nova Zelândia se torna o primeiro país a conceder o voto universal às mulheres, atendendo tanto as de origem europeia quanto as mulheres maoris. No século XX, em 1902, a Austrália permite às mulheres votarem e se candidatarem às eleições. E ainda antes da França, Brasil e Uruguai, em 1930, concedem o direito do voto às suas cidadãs. Vale mencionar que o estado do Rio Grande do Norte é o pioneiro a autorizar o voto da mulher ainda antes da lei que valeu para todo o território brasileiro, lá pelos idos de 1928.
Assim, o percurso que leva ao exercício do voto é processual e cheio de controversas, como ocorre na maioria dos regimes de efetivação de direitos civis, sociais, políticos e religiosos instaurados pelas democracias modernas. Uma marca, porém, se destaca em todos eles: o legado protestante por meio da participação ativa da agência cristã em torno das pautas de reformas pelas quais passou o mundo moderno. Especialmente no sufrágio das mulheres, são os cristãos, sobretudo as mulheres cristãs [2], que formam grupos e disseminam experiências (o que o feminismo da moda não irá te contar), a partir, principalmente, dos Estado Unidos [3] e do Reino Unido.
“Consideramos essas verdades como evidentes; que todos os homens e mulheres são criados iguais; que são dotados pelo Criador com certos direitos inalienáveis; que entre estes estão a vida, a liberdade e a busca da felicidade. Para garantir esses direitos, os governos são instituídos, obtendo seus justos poderes pelo consentimento dos governados.” Declaração do Sentimentos, em 1848 (EUA).
Um evento em particular marca o fenômeno mundial e chama a atenção de toda a Europa. É a Convenção de Seneca Falls, reconhecida como a primeira convenção mundial pelos direitos das mulheres. Ela ocorre em 1848, em Seneca Falls, Nova York, em uma pequena Igreja Metodista Wesleyana. O evento teve dois dias de duração e resultou na Declaração de Sentimentos assinada por 68 mulheres e 32 homens [4]. Esse documento é escrito nos moldes da Declaração de Independência do EUA e tem como primeira resolução o “direito inalienável à franquia eletiva” por parte da mulher.
Com a fundação da União de Temperança da Mulher Cristã (WCTU), em 1873 e, posteriormente, a União Internacional de Temperança das Mulheres Cristãs, os grupos passam a operar internacionalmente sob a “missão religiosa pela reforma social”, que incluía trabalhos evangelísticos, assistenciais e a divulgação do sufrágio feminino. O seu internacionalismo forma grupos em diversos países do mundo, sendo que alguns deles permanecem ativos ainda hoje. Nesse caldo é formado, no Reino Unido, em 1897, a União Nacional pelo Sufrágio Feminino, primeiro grupo partidário com representantes no parlamento inglês para a alteração de leis que acabou concedendo o voto também aos homens com mais de 21 anos daquela nação.
Assim, o voto é mais uma das variantes produzidas pelo legado de liberdade aberto pela Reforma Protestante do séc. XVI. É a partir da antropologia reformada que mulheres e homens repensaram sua relação na família (núcleo de cuidado e de resistência ao secularismo), na igreja e na sociedade, principalmente por meio da atribuição do caráter religioso às condições da vida comum. É por causa da sua agenda reformista - e não revolucionária, que mulheres e homens encampam participação ativa e singular em associações que gradativamente saem do serviço social (filantropia), desde sempre realizado pela igreja, para a ação social e política exigida pela complexa estrutura formada pelo Estado moderno. Nesse sentido, não há em qualquer direção como não tributar à cristandade as condições de melhoria de vida das mulheres e dos homens modernos. Mesmo em episódios corriqueiros, como o da concessão do voto. Aqui, também, o resgate do sacerdócio universal de todos os crentes e a reforma das relações promovida pela ideia de igualdade presente nas raízes judaico-cristãs do movimento continuam a ditar o caminho do bem viver para a comunidade humana. Não sem as tensões próprias entre Cristo e cultura, claro. Mas essa é uma outra conversa. E viva a Reforma! Sempre.
• Isabella Passos é formada em Filosofia pela PUC-MG. Mora em Belo Horizonte e congrega na Igreja Esperança.
Notas:
* Embora muitas vezes utilizados como sinônimos, voto e sufrágio possuem significados diferentes. Sufrágio é o direito de votar e de ser votado; voto é a forma de exercer o direito ao sufrágio
[1] O livro negro da condição das mulheres, Ed. Difel, 2011, p. 610-611.
[2] O impacto do Cristianismo na primeira onda do feminismo. Vanessa Raquel de Almeida Meira e Isaac Malheiros.
[3] Segundo as historiadoras Sylvia Paletschek e Bianka Pietrow-Ennker, o movimento feminista internacional do séc. XIX, especialmente o britânico, o francês e o alemão são devedores do legado produzido pelo movimento das mulheres americanas, predominantemente, um movimento cristão e conservador. Ver em: Women's Emancipation Movements in the Nineteenth Century: A European Perspective. Stanford University Press, 2004, p. 4-5.
[4] Suffragist Men and the Importance of Allies.
Leia mais
Mulheres e homens: o que fazer com as diferenças?
É possível ser feminista cristã?
O feminismo quer redefinir o que é ser homem?
Imagem: Marcelo Camargo/Agência Brasil.
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