Opinião
- 26 de outubro de 2015
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A Palavra de Deus e a crise de integridade
“Onde a Palavra não é pregada e aceita o povo se corrompe”. Essas palavras parafraseadas de Provérbios 29.18 – lit.: “onde não há visão/profeta o povo se desvia” - refletem muito bem o entendimento dos antigos sábios do quanto à falta da instrução de Deus afeta a qualidade moral de um povo. A sabedoria de Provérbios e de outros escritos do Antigo Testamento é enfática na necessidade de se meditar na lei do Senhor para que se viva bem na terra. Contudo, o temor de Deus e a meditação na lei do Senhor afetavam não só a qualidade moral do povo como também a qualidade de vida, do governo e da sociedade. Por meio dos sábios, dos profetas e dos sacerdotes a lei do Senhor era ensinada e praticada.
Há duas boas razões para refletirmos sobre essa passagem no momento atual. Primeiro, neste mês lembramos a Reforma Protestante do século 16. Como sabemos, a Reforma desencadeou um movimento que resgatou e sustentou dentre muitas verdades a primazia da autoridade e, consequentemente, da exposição das Escrituras na igreja. Os primeiros reformadores (Calvino, Bullinger) entendiam que a verdadeira igreja era marcada pela pregação da Palavra e fiel administração dos sacramentos. Posteriormente, outros (Pedro Mártir, Zacarias Ursinus) acrescentaram ainda como terceira marca da verdadeira igreja a disciplina. Theodoro de Beza, por outro lado, falava de uma única marca da igreja, a pregação. De todo modo, para o teólogo Robert Godfrey, cada uma dessas três marcas é a expressão da principal marca, a Palavra. E a Palavra é entendida pelos reformados como: a) a Palavra eterna, isto é, a segunda pessoa da Trindade; b) a Palavra encarnada, Jesus Cristo; c) a Palavra escrita, a Bíblia; e d) a Palavra proclamada.1 Por isso, quando falamos da Palavra como principal marca da igreja, estamos falando da presença do próprio Deus na igreja. É a Palavra pregada e vivida que manifesta os propósitos, juízos, misericórdia e salvação de Deus. Assim, à medida que a igreja prega a Palavra e o povo de Deus pratica a justiça e o amor, Deus se manifesta e a igreja é um testemunho e sinal do reino de Deus na terra.
A segunda boa razão de meditarmos nessa passagem se deve ao momento político e social de nossa nação. Por mais que a corrupção não tenha surgido agora, estamos sendo constantemente expostos e lembrados da corrupção generalizada. Isso nos faz pensar que vivemos no país uma profunda crise de caráter e integridade. Isso não se limita aos empresários e políticos envolvidos nos casos que estão sendo investigados, mas à nação como um todo. Há uma crise de caráter porque perdemos o referencial do certo e errado. Mesmo que boa parte da população não professe ou não pratique a fé cristã, a sociedade está fundada em valores e princípios de justiça e igualdade os quais se sustentam por deveres e direitos dos cidadãos. E como cristãos entendemos que há também princípios bíblicos que dirigem nossa vida -- não só religiosa e espiritual como também nossa vida na sociedade.
Mas você dirá: a igreja está ativa na sociedade. Ela evangeliza e prega a palavra por todos os meios possíveis de comunicação. As religiões crescem, literatura religiosa e bíblica está cada vez mais acessível às pessoas. A Bíblia pode ser encontrada nas livrarias dos shoppings, bancas de jornal ou de camelôs. Não há falta de proclamação da Palavra. Mesmo assim, “o povo se corrompe”.
Curiosamente, foi justamente no período de importantes profetas do Antigo Testamento, como Elias, Eliseu, Amós, Oseias Isaías, Miqueias, Jeremias, Ezequiel e outros que as maiores abominações eram praticadas em Judá e Israel. Nem mesmo a reforma do rei Josias em Jerusalém, quando o livro da lei foi descoberto no templo e passou a ser ensinado e praticado, foi suficiente para impedir a catástrofe do exílio babilônico (2 Rs 23.24-27). Então, até que ponto a proclamação da Palavra impede um povo de se corromper ou se desviar?
Primeiro, à medida que o povo de Deus pratica os ensinamentos de Jesus, a igreja não só serve de sinal da presença e do reino de Deus como também influencia a sociedade por meio de suas ações. Se de um lado é verdade que importantes profetas do Antigo Testamento viveram em época de muita idolatria e abuso de poder dos reis, também é verdade que sua pregação confrontou e incomodou os reis. Além disso, a história da igreja é repleta de exemplos em que o compromisso da igreja com o ensino das Escrituras teve impacto positivo na sociedade. Não só a Reforma do século 16, mas também o movimento pietista, o puritanismo na Inglaterra, os avivamentos na América do Norte e na Europa, e o pentecostalismo na América Latina tiveram impacto na sociedade. Esses movimentos resultaram no engajamento da igreja com questões sociais e humanitárias de modo a transformar a sociedade.
Segundo, é justamente em época de violência, corrupção, conflitos e guerras que a igreja precisa ser mais ousada e eficaz na propagação da mensagem do evangelho. Os profetas denunciavam os erros e anunciavam esperança. Não se trata de uma pregação moralista ou de uma tentativa de impor normas bíblicas e cristãs nas leis civis, mas envolve viver e defender os valores do reino de Deus não só dentro da igreja como também fora dela. John Stott expressava essa ideia dizendo que a igreja deve servir de “contracultura” à sociedade moderna. Não significa transformar uma nação em um país cristão nem em eleger um presidente cristão, mas defender arduamente os valores do reino de Deus.
Terceiro, a Palavra precisa ser pregada ousadamente na própria igreja. Se a Palavra não é pregada na igreja, o próprio povo de Deus se corromperá. Infelizmente, há um enfraquecimento da pregação na igreja evangélica hoje. A exposição e ensino bíblico vêm sendo substituído por entretenimentos religiosos. Como disse A. W. Tozer há mais de 60 anos,
“Na maioria das igrejas evangélicas é comum agora oferecer ao povo, principalmente aos jovens, o máximo de entretenimento e o mínimo de instrução. Em muitos lugares raramente é possível ir a uma reunião cuja única atração seja Deus. Só se pode concluir que os filhos de Deus estão entediados dele, pois é preciso mimá-los com pirulitos e balinhas na forma de películas religiosas, jogos e refrescos” (A. W. Tozer)
No texto de Provérbios 29.18, a palavra “povo” refere-se à própria nação de Israel, por isso, aqueles que supostamente tinham o conhecimento de Deus, porém, corriam o risco de se corromper por não atentar ao que Deus tinha a dizer. A Bíblia “A Mensagem” representa bem essa ideia: “Quando as pessoas não conseguem ver o que Deus está fazendo, elas tropeçam em si mesmas; Mas, quando atentam para o que ele revela, são as mais abençoadas.”
Não há dúvida que vivemos uma profunda crise de integridade em nossa nação. Não podemos permitir que as Escrituras deixem de ser proclamadas e vividas pela igreja. Todos desejam transformações, desejamos uma sociedade mais justa e menos corrupta. A Palavra transforma os indivíduos e a sociedade, consequentemente, serve de sinal da presença do reino de Deus no mundo.
Nota:
1. Godfrey, Robert W. The marks of the church. Disponível neste link. Acessado em 06 out 2015.
Foto: monique72 / Freeiamages.com
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Há duas boas razões para refletirmos sobre essa passagem no momento atual. Primeiro, neste mês lembramos a Reforma Protestante do século 16. Como sabemos, a Reforma desencadeou um movimento que resgatou e sustentou dentre muitas verdades a primazia da autoridade e, consequentemente, da exposição das Escrituras na igreja. Os primeiros reformadores (Calvino, Bullinger) entendiam que a verdadeira igreja era marcada pela pregação da Palavra e fiel administração dos sacramentos. Posteriormente, outros (Pedro Mártir, Zacarias Ursinus) acrescentaram ainda como terceira marca da verdadeira igreja a disciplina. Theodoro de Beza, por outro lado, falava de uma única marca da igreja, a pregação. De todo modo, para o teólogo Robert Godfrey, cada uma dessas três marcas é a expressão da principal marca, a Palavra. E a Palavra é entendida pelos reformados como: a) a Palavra eterna, isto é, a segunda pessoa da Trindade; b) a Palavra encarnada, Jesus Cristo; c) a Palavra escrita, a Bíblia; e d) a Palavra proclamada.1 Por isso, quando falamos da Palavra como principal marca da igreja, estamos falando da presença do próprio Deus na igreja. É a Palavra pregada e vivida que manifesta os propósitos, juízos, misericórdia e salvação de Deus. Assim, à medida que a igreja prega a Palavra e o povo de Deus pratica a justiça e o amor, Deus se manifesta e a igreja é um testemunho e sinal do reino de Deus na terra.
A segunda boa razão de meditarmos nessa passagem se deve ao momento político e social de nossa nação. Por mais que a corrupção não tenha surgido agora, estamos sendo constantemente expostos e lembrados da corrupção generalizada. Isso nos faz pensar que vivemos no país uma profunda crise de caráter e integridade. Isso não se limita aos empresários e políticos envolvidos nos casos que estão sendo investigados, mas à nação como um todo. Há uma crise de caráter porque perdemos o referencial do certo e errado. Mesmo que boa parte da população não professe ou não pratique a fé cristã, a sociedade está fundada em valores e princípios de justiça e igualdade os quais se sustentam por deveres e direitos dos cidadãos. E como cristãos entendemos que há também princípios bíblicos que dirigem nossa vida -- não só religiosa e espiritual como também nossa vida na sociedade.
Mas você dirá: a igreja está ativa na sociedade. Ela evangeliza e prega a palavra por todos os meios possíveis de comunicação. As religiões crescem, literatura religiosa e bíblica está cada vez mais acessível às pessoas. A Bíblia pode ser encontrada nas livrarias dos shoppings, bancas de jornal ou de camelôs. Não há falta de proclamação da Palavra. Mesmo assim, “o povo se corrompe”.
Curiosamente, foi justamente no período de importantes profetas do Antigo Testamento, como Elias, Eliseu, Amós, Oseias Isaías, Miqueias, Jeremias, Ezequiel e outros que as maiores abominações eram praticadas em Judá e Israel. Nem mesmo a reforma do rei Josias em Jerusalém, quando o livro da lei foi descoberto no templo e passou a ser ensinado e praticado, foi suficiente para impedir a catástrofe do exílio babilônico (2 Rs 23.24-27). Então, até que ponto a proclamação da Palavra impede um povo de se corromper ou se desviar?
Primeiro, à medida que o povo de Deus pratica os ensinamentos de Jesus, a igreja não só serve de sinal da presença e do reino de Deus como também influencia a sociedade por meio de suas ações. Se de um lado é verdade que importantes profetas do Antigo Testamento viveram em época de muita idolatria e abuso de poder dos reis, também é verdade que sua pregação confrontou e incomodou os reis. Além disso, a história da igreja é repleta de exemplos em que o compromisso da igreja com o ensino das Escrituras teve impacto positivo na sociedade. Não só a Reforma do século 16, mas também o movimento pietista, o puritanismo na Inglaterra, os avivamentos na América do Norte e na Europa, e o pentecostalismo na América Latina tiveram impacto na sociedade. Esses movimentos resultaram no engajamento da igreja com questões sociais e humanitárias de modo a transformar a sociedade.
Segundo, é justamente em época de violência, corrupção, conflitos e guerras que a igreja precisa ser mais ousada e eficaz na propagação da mensagem do evangelho. Os profetas denunciavam os erros e anunciavam esperança. Não se trata de uma pregação moralista ou de uma tentativa de impor normas bíblicas e cristãs nas leis civis, mas envolve viver e defender os valores do reino de Deus não só dentro da igreja como também fora dela. John Stott expressava essa ideia dizendo que a igreja deve servir de “contracultura” à sociedade moderna. Não significa transformar uma nação em um país cristão nem em eleger um presidente cristão, mas defender arduamente os valores do reino de Deus.
Terceiro, a Palavra precisa ser pregada ousadamente na própria igreja. Se a Palavra não é pregada na igreja, o próprio povo de Deus se corromperá. Infelizmente, há um enfraquecimento da pregação na igreja evangélica hoje. A exposição e ensino bíblico vêm sendo substituído por entretenimentos religiosos. Como disse A. W. Tozer há mais de 60 anos,
“Na maioria das igrejas evangélicas é comum agora oferecer ao povo, principalmente aos jovens, o máximo de entretenimento e o mínimo de instrução. Em muitos lugares raramente é possível ir a uma reunião cuja única atração seja Deus. Só se pode concluir que os filhos de Deus estão entediados dele, pois é preciso mimá-los com pirulitos e balinhas na forma de películas religiosas, jogos e refrescos” (A. W. Tozer)
No texto de Provérbios 29.18, a palavra “povo” refere-se à própria nação de Israel, por isso, aqueles que supostamente tinham o conhecimento de Deus, porém, corriam o risco de se corromper por não atentar ao que Deus tinha a dizer. A Bíblia “A Mensagem” representa bem essa ideia: “Quando as pessoas não conseguem ver o que Deus está fazendo, elas tropeçam em si mesmas; Mas, quando atentam para o que ele revela, são as mais abençoadas.”
Não há dúvida que vivemos uma profunda crise de integridade em nossa nação. Não podemos permitir que as Escrituras deixem de ser proclamadas e vividas pela igreja. Todos desejam transformações, desejamos uma sociedade mais justa e menos corrupta. A Palavra transforma os indivíduos e a sociedade, consequentemente, serve de sinal da presença do reino de Deus no mundo.
Nota:
1. Godfrey, Robert W. The marks of the church. Disponível neste link. Acessado em 06 out 2015.
Foto: monique72 / Freeiamages.com
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O Escândalo do Comportamento Evangélico
Pastor presbiteriano e doutor em Antigo Testamento, é professor e capelão no Seminário Presbiteriano do Sul, e tradutor de obras teológicas. É autor do livro O propósito bíblico da missão.
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