Opinião
- 08 de setembro de 2014
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A MPB e a “música de crente”
Por que o grande Vinícius de Moraes, nosso poeta mais merecidamente “canônico”, ao lado de Bandeira e Drummond, podia cantar seus amores e desamores, suas muitas mulheres e desilusões, suas aquarelas e querelas, seu ceticismo tão próximo de Camus, seu agnosticismo existencialista que, no entanto e contraditoriamente, consolava-se com e nos seus afro-sambas, quase “pontos de macumba”, cânticos rituais do candomblé em discos consagrados e no set list de shows célebres como, por exemplo: “Tom, Vinicius, Toquinho e Miúcha”, gravado ao vivo no Canecão, em 1977, e eu não posso cantar um Salmo de Davi (1, 23, 84, 104, 131, 139, para citar apenas alguns dos meus favoritos) no meio de um show?
Por que o talentoso compositor mineiro João Bosco pode fazer o mesmo que o “poetinha” - expressar sua religiosidade - depois de cantar clássicos da Música Popular Brasileira, como sua parceria com Aldir Blanc eternizada na voz abençoada de Elis “O Bêbado e o Equilibrista”, e eu não posso dizer “É de coração/Tudo o que eu disse/Num hino de louvor /A Jesus de Nazaré...” – ou, no mínimo, sob pena de estar “misturando as coisas”, não devo?
Por que eu, caso esteja na plateia, assistindo a um show de Chico Buarque, Nana Caymmi, Zeca Pagodinho, Beth Carvalho ou qualquer outro artista brasileiro de renome, preciso aceitar como parte natural da cosmovisão do artista a expressão da sua fé ou crise/falta dela (exemplo: “Se eu quiser falar com Deus”, clássico dos clássicos do baiano tropicalista ), mas não recebo essa mesma contrapartida de “tolerância” se eu ou Carlinhos Veiga fazemos o mesmo, isto é, num espetáculo musical quando cantamos a beleza da Criação, a família, a dádiva da vida e, de repente, incluímos algo como Sérgio Pimenta, Guilherme Kerr, Jorge Camargo ou Rehder, ouvimos “Ah, isso é coisa de crente!”?
Preconceito.
Intolerância dos tolerantes.
Pode-se tudo desde que nada destoe do “ethos” pós-moderno.
Eu nunca pensei nesses termos, mas sou parte de uma minoria.
Até porque, cientificamente falando, minoria é um conceito sociológico - e não numérico, demográfico! Wanda Sá, grande nome da Bossa Nova (ganhou o mundo no conjunto de Sérgio Mendes) narra a censura que sofreu ao se converter por influência - pasmem! - do João Donato: “nada de música de crente, hein? “Ou um amigo músico (que prefiro manter no anonimato) perseguido pelo grande crítico e musicólogo Zuza Homem de Melo por ser crente. É óbvio que existe uma clara (às vezes, violenta) rejeição da classe intelectual brasileira ao protestantismo evangélico. Obviamente, pelo que vemos da TV, com razão. A desconfiança procede. O problema é colocar tudo o que se diz “evangélico” na mesma panela. O pensamento (!) e a práxis de Edir Macedo, R.R. Soares, Waldomiro Santiago e o deputado fanfarrão Feliciano são tão evangélicos quanto “boquinha da garrafa”, “Lepo Lepo” e “Ai se eu te pego...“ devem ser consideradas algo da MPB. Teologia da prosperidade é algo tão cristão, protestante e evangélico quanto Ki-Suco é “Beaujolais” ou um “Merlot” chileno top.
Por favor, senhores críticos da “intelligentsia” tupiniquim, especialmente os jornalistas de cultura, esses sociólogos de almanaque que parece nunca ter lido e compreendido de verdade Adorno, por exemplo: precisamos de um pouco, um tiquinho de coerência e integridade intelectual, senhores! Como assim um articulista do Segundo Caderno do Globo pode expressar preocupação quase histérica com a possibilidade da Marina Presidente (nas eleições presidenciais passadas), ao dizer: “Já pensou? Uma presidente evangélica? Não teríamos mais carnaval! E além de tudo, cafona, com aquele coque...”? A senadora, respeitabilíssima mundo afora, caso tenha lido essa bobagem, deve ter gargalhado de chorar!
Isso é confundir Cristianismo com Cristandade, como comentaria Søren Kiekergaard. É achar que Cristo e Cultura devem ser a mesma coisa, notaria Niebuhr. É confundir o norte-americano com o cristão-protestante.
Tem muita gente por aqui em Pindorama que acha que ser evangelical (batista, presbiteriano, metodista, por exemplo) é ser “gringo”. De novo: a crítica não é semeada e vicejada do nada e no ar. A liturgia e idiossincrasias religiosas desse segmento do cristianismo são tipicamente estadunidenses. Para não citar a arquitetura: “Da linda pátria estou” é, na verdade, uma canção folk/caipira, assim como “Glória, glória, aleluia” é uma balada sobre um soldado sulista da Guerra de Secessão (1861-1865) -- só para mencionar alguns dos nossos “hinos”.
Mas é possível ser evangélico e ser brasileiro (estou escrevendo a respeito disso; um livro bem útil, espero e prometo). O problema é que nossos compositores e artistas não sabem do conselho sagaz de Emily Dickenson: “Fala toda a verdade – mas fale indiretamente”. Essa dica é especialmente salutar no que diz respeito ao desafio que cristãos evangelicais têm para fazer uma música para fora da igreja que possa ser cantada no culto e uma música para o culto (como Bach fazia) que possa ser executada fora. Eu olho para meus companheiros – cantores e compositores cristãos -- assustados dentro dos seus guetos -- e os vejo declamando, apavorados, o Salmo 137.4: “Como, porém, haveríamos de entoar o canto do Senhor em terra estranha?”. A resposta (a que eu encontro, seguindo Paulo, no seu sermão no Aerópago ateniense (Atos 17.16-34), Calvino, Kuyper, Francis Schaeffer, Hans Rookmaaker, historiador holandês e cristão de arte e a feliz interação de teologia e literatura na obra vasta, piedosa e erudita de Eugene Peterson, pode ser muito bem sintetizada na frase famosa de T.S. Elliot, em “Religion and Literature”: conheçam, critiquem e dialoguem com a cultura, para elaborar uma arte que seja “inconscientemente, em vez de deliberada e provocadoramente, cristã”. Ou seja, que digam ao nos ouvirem “Ah, isso é coisa de crente!” – mas com outra entonação. A que se deslumbrar diante da Beleza e da Verdade de mãos dadas. Perguntem ao músico Elomar se ele é cristão. O aclamado menestrel baiano dirá: “Sim, batista!”.
Leia também
Viola, furria, amô, dinhêro não
A arte não precisa de justificativa
Cosmovisão cristã e transformação
Por que o talentoso compositor mineiro João Bosco pode fazer o mesmo que o “poetinha” - expressar sua religiosidade - depois de cantar clássicos da Música Popular Brasileira, como sua parceria com Aldir Blanc eternizada na voz abençoada de Elis “O Bêbado e o Equilibrista”, e eu não posso dizer “É de coração/Tudo o que eu disse/Num hino de louvor /A Jesus de Nazaré...” – ou, no mínimo, sob pena de estar “misturando as coisas”, não devo?
Por que eu, caso esteja na plateia, assistindo a um show de Chico Buarque, Nana Caymmi, Zeca Pagodinho, Beth Carvalho ou qualquer outro artista brasileiro de renome, preciso aceitar como parte natural da cosmovisão do artista a expressão da sua fé ou crise/falta dela (exemplo: “Se eu quiser falar com Deus”, clássico dos clássicos do baiano tropicalista ), mas não recebo essa mesma contrapartida de “tolerância” se eu ou Carlinhos Veiga fazemos o mesmo, isto é, num espetáculo musical quando cantamos a beleza da Criação, a família, a dádiva da vida e, de repente, incluímos algo como Sérgio Pimenta, Guilherme Kerr, Jorge Camargo ou Rehder, ouvimos “Ah, isso é coisa de crente!”?
Preconceito.
Intolerância dos tolerantes.
Pode-se tudo desde que nada destoe do “ethos” pós-moderno.
Eu nunca pensei nesses termos, mas sou parte de uma minoria.
Até porque, cientificamente falando, minoria é um conceito sociológico - e não numérico, demográfico! Wanda Sá, grande nome da Bossa Nova (ganhou o mundo no conjunto de Sérgio Mendes) narra a censura que sofreu ao se converter por influência - pasmem! - do João Donato: “nada de música de crente, hein? “Ou um amigo músico (que prefiro manter no anonimato) perseguido pelo grande crítico e musicólogo Zuza Homem de Melo por ser crente. É óbvio que existe uma clara (às vezes, violenta) rejeição da classe intelectual brasileira ao protestantismo evangélico. Obviamente, pelo que vemos da TV, com razão. A desconfiança procede. O problema é colocar tudo o que se diz “evangélico” na mesma panela. O pensamento (!) e a práxis de Edir Macedo, R.R. Soares, Waldomiro Santiago e o deputado fanfarrão Feliciano são tão evangélicos quanto “boquinha da garrafa”, “Lepo Lepo” e “Ai se eu te pego...“ devem ser consideradas algo da MPB. Teologia da prosperidade é algo tão cristão, protestante e evangélico quanto Ki-Suco é “Beaujolais” ou um “Merlot” chileno top.
Por favor, senhores críticos da “intelligentsia” tupiniquim, especialmente os jornalistas de cultura, esses sociólogos de almanaque que parece nunca ter lido e compreendido de verdade Adorno, por exemplo: precisamos de um pouco, um tiquinho de coerência e integridade intelectual, senhores! Como assim um articulista do Segundo Caderno do Globo pode expressar preocupação quase histérica com a possibilidade da Marina Presidente (nas eleições presidenciais passadas), ao dizer: “Já pensou? Uma presidente evangélica? Não teríamos mais carnaval! E além de tudo, cafona, com aquele coque...”? A senadora, respeitabilíssima mundo afora, caso tenha lido essa bobagem, deve ter gargalhado de chorar!
Isso é confundir Cristianismo com Cristandade, como comentaria Søren Kiekergaard. É achar que Cristo e Cultura devem ser a mesma coisa, notaria Niebuhr. É confundir o norte-americano com o cristão-protestante.
Tem muita gente por aqui em Pindorama que acha que ser evangelical (batista, presbiteriano, metodista, por exemplo) é ser “gringo”. De novo: a crítica não é semeada e vicejada do nada e no ar. A liturgia e idiossincrasias religiosas desse segmento do cristianismo são tipicamente estadunidenses. Para não citar a arquitetura: “Da linda pátria estou” é, na verdade, uma canção folk/caipira, assim como “Glória, glória, aleluia” é uma balada sobre um soldado sulista da Guerra de Secessão (1861-1865) -- só para mencionar alguns dos nossos “hinos”.
Mas é possível ser evangélico e ser brasileiro (estou escrevendo a respeito disso; um livro bem útil, espero e prometo). O problema é que nossos compositores e artistas não sabem do conselho sagaz de Emily Dickenson: “Fala toda a verdade – mas fale indiretamente”. Essa dica é especialmente salutar no que diz respeito ao desafio que cristãos evangelicais têm para fazer uma música para fora da igreja que possa ser cantada no culto e uma música para o culto (como Bach fazia) que possa ser executada fora. Eu olho para meus companheiros – cantores e compositores cristãos -- assustados dentro dos seus guetos -- e os vejo declamando, apavorados, o Salmo 137.4: “Como, porém, haveríamos de entoar o canto do Senhor em terra estranha?”. A resposta (a que eu encontro, seguindo Paulo, no seu sermão no Aerópago ateniense (Atos 17.16-34), Calvino, Kuyper, Francis Schaeffer, Hans Rookmaaker, historiador holandês e cristão de arte e a feliz interação de teologia e literatura na obra vasta, piedosa e erudita de Eugene Peterson, pode ser muito bem sintetizada na frase famosa de T.S. Elliot, em “Religion and Literature”: conheçam, critiquem e dialoguem com a cultura, para elaborar uma arte que seja “inconscientemente, em vez de deliberada e provocadoramente, cristã”. Ou seja, que digam ao nos ouvirem “Ah, isso é coisa de crente!” – mas com outra entonação. A que se deslumbrar diante da Beleza e da Verdade de mãos dadas. Perguntem ao músico Elomar se ele é cristão. O aclamado menestrel baiano dirá: “Sim, batista!”.
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Viola, furria, amô, dinhêro não
A arte não precisa de justificativa
Cosmovisão cristã e transformação
Gerson Borges, casado com Rosana Márcia e pai de Bernardo e Pablo, pastoreia a Comunidade de Jesus no ABCD Paulista. É autor de Ser Evangélico sem Deixar de Ser Brasileiro, cantor, compositor e escritor, licenciado em letras e graduando em psicologia.
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