Opinião
- 20 de janeiro de 2021
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A mão visível do bem
Por Carlos Fernandes
Inclusão social já é praticada pela igreja evangélica há muito tempo – e grande parte dos brasileiros ignora isso
O termo “inclusão social” foi transformado – involuntariamente, diga-se – em elemento da imensa trincheira ideológica na qual o Brasil se converteu. A ideia de se proporcionar a todas as pessoas oportunidades e direitos semelhantes, a despeito de suas origens sociais e étnicas e levando em conta particularidades individuais, como limitações físicas ou cognitivas, é fundamento de regimes democráticos. Porém, encontra resistência onde menos se deveria esperar – na base da pirâmide social, onde se encontra a igreja evangélica. O debate se torna mais agudo quando travado sobre as políticas de ações afirmativas implementadas no país nas duas últimas décadas. Associadas a ideologias de esquerda, elas são questionadas por incentivar o vitimismo e criar uma rede de clientelismo supostamente incompatível com o desenvolvimento do país. Neste cabo-de-guerra fratricida, saem perdendo justamente os que mais dependem delas.
A politização dos temas sociais no Brasil contemporâneo caminha na contramão do crescimento da desigualdade em escala global. O Relatório Social Mundial, publicado pelo Departamento de Assuntos Econômicos e Sociais da Organização das Nações Unidas e divulgado em janeiro desde ano, aponta que a desigualdade cresceu para mais de 70% dos seres humanos. Uma bomba-relógio, no entender do secretário-geral da ONU, António Guterres. Segundo ele, as diferenças de rendimentos e a falta de oportunidades “estão criando um ciclo vicioso de desigualdade, frustração e insatisfação”. O relatório analisa o impacto de quatro grandes tendências globais que agravam as disparidades, como inovação tecnológica, mudanças climáticas, urbanização e migração internacional.
Por aqui, os efeitos da desigualdade se veem debaixo de viadutos e marquises. Historicamente desigual, o Brasil ostenta números de distribuição de renda vergonhosos. De acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística divulgada em maio de 2020, a média dos maiores salários do país é 36 vezes maior do que o que ganha o pessoal da extremidade oposta, enquanto 10% dos brasileiros abocanham quase 45% da renda total gerada no país. Hoje, mais da metade dos cerca de 85 milhões de nacionais ocupados labutam na informalidade, sem quaisquer direitos trabalhistas e previdenciários. A isso, some-se outros fatores determinantes de pobreza crônica, como dificuldade de acesso a serviços de saúde, transporte público e saneamento básico, além da falta de educação pública de qualidade.
Os ainda pouco claros impactos socioeconômicos da pandemia do novo coronavírus estão para ser calculados, mas já se anunciam como um retrocesso nos últimos e tímidos avanços obtidos pelo país. Queiram ou não os defensores da ideia fácil da meritocracia, a exclusão social continua atingindo, em cheio, segmentos como negros, mulheres e homens de baixa instrução e portadores de incapacidades motoras, sensoriais e cognitivas. “Minorias”, no caso, não são estratos numericamente inferiores, mas aqueles socialmente vulneráveis. Nesse contexto, as cotas de acesso a estabelecimentos públicos de ensino e postos de trabalho, por exemplo, são um remédio necessário, embora amargo – afinal, promovem, elas mesmas, uma série de distorções.
Rede de ajuda
A igreja evangélica se vê diante de um tema em relação ao qual não pode mais se omitir. Com algo em torno de 30% da população brasileira, ela deixou de ser o mero traço estatístico de quarenta anos atrás para se transformar em ator social preponderante. E sua membresia sente os efeitos das desigualdades na própria pele, literalmente. A chamada religião mais negra do Brasil, título do livro lançado pela Editora Ultimato e de autoria de Marco Davi de Oliveira – pastor batista, historiador e mestre em Ciências da Religião –, tem uma membresia basicamente pobre, sobretudo entre os pentecostais. Os últimos dados disponíveis pela Pesquisa de Orçamentos Familiares do IBGE, de dez anos atrás, mostravam renda média de R$1.271 nas famílias chefiadas por um evangélico. Como, praticamente, um em cada três brasileiros são adeptos dessa corrente religiosa majoritariamente negra e parda, é forçoso afirmar que a Igreja é vítima das desigualdades e, ao mesmo tempo, protagonista obrigatória da luta pela inclusão.
A academia tem reconhecido o papel dos evangélicos em iniciativas de inclusão social. O recém-lançado livro Povo de Deus – Quem são os evangélicos e por que eles importam (Geração Editorial) menciona o enorme alcance das igrejas de periferia no que se refere a iniciativas de inclusão e acolhimento a vulneráveis. A obra cita o trabalho de doutorado do antropólogo Juliano Spyer, que diz: “Essas igrejas produzem um serviço de que o Estado não dá conta ou para os quais a sociedade brasileira não se mobiliza. Há uma rede de ajuda mútua: quando o marido fica desempregado e se arruma emprego, o filho se envolve com drogas e encontra um lugar para ser tratado, o marido que batia na mulher encontra caminhos para negociar uma harmonia em casa. É um estado de bem-estar social informal”. O estudioso critica o preconceito com que as elites e a mídia ainda tratam o segmento religioso que mais cresce no país. “A conversão também é um ato inteligente, e não apenas de fé, que traz benefícios à vida do brasileiro mais pobre”, acentua.
Para além da rede de solidariedade explícita que se forma entre os membros de cada uma das milhares de igrejas evangélicas espalhadas pelo país, existe uma ação organizada, cuja ênfase primária é o amor ao próximo, preconizado pelo próprio Cristo. Um genuíno desejo de transformação social muito além da mera narrativa proselitista é o que move entidades de orientação evangélica de grande porte que atuam no país, como Visão Mundial e ChildFund Brasil. Elas proporcionam educação, segurança alimentar, amparo familiar e melhorias estruturais a comunidades distantes da ação do Estado, enquanto grupos como a Rede Evangélica Nacional de Ação Social (Renas) mobilizam organizações cristãs, igrejas e coletivos que atuam nas mais diversas áreas, do combate à exploração sexual infantil a inserção profissional.
Até mesmo em pequenas ações de inclusão de deficientes físicos, os evangélicos são vanguarda. Antes que a Linguagem Brasileira de Sinais (LIBRAS) alcançasse patamares de ampla utilização, igrejas já montavam grupos de deficientes auditivos devidamente atendidos por voluntários que lhes traduziam o conteúdo das celebrações, em plenos anos 1970. A Sociedade Bíblica do Brasil, uma das maiores produtoras mundiais das Sagradas Escrituras, investe há décadas em programas de distribuição gratuita do livro sagrado em Braille, sistema de sinais de relevo que possibilita a leitura por cegos. Boa parte da produção teológica brasileira tem despertado para o tema, o que se observa na intensa produção literária no sentido de despertar a Igreja para a realidade que já não se limita a bater à sua porta, mas ocupa lugar nos bancos.
Razão da fé
Alavancado por uma plataforma de vieses conservadores, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) chegou ao poder em 2019 com apoio maciço do eleitorado evangélico. Pesquisa realizada pelo Instituto Brasileiro de Opinião Pública e Estatística, o Ibope, encontrou 67% dos votos válidos do segmento para o então candidato do PSL. Mais do que uma guinada ideológica no país, a chegada de um militar ao Planalto pelo voto direto teve muitos componentes comportamentais. Demonstrando rejeição a bandeiras tradicionais da chamada política progressista, como flexibilização das leis que proíbem o aborto por mera opção e o uso de substâncias entorpecentes, o eleitor crente encontrou em Bolsonaro uma voz para amplificar suas angústias com o saldo de um quarto de século de centro-esquerda no poder.
Com a adesão a um discurso difuso que envolvia desde restrições ao avanço de grupos LGBTQI+ a uma hipotética implantação do comunismo no país, o evangélico brasileiro médio abraçou, também, questionamentos ao papel do Estado como promotor de bem-estar social. Algumas medidas emblemáticas do novo governo, como a crítica à política de cotas étnico-sociais e a postura negacionista em relação ao racismo estrutural da sociedade brasileira, bem como aos programas de distribuição de renda, vieram de encontro à causa da inclusão social, essencial a uma fé cristã viva. Resta saber até que ponto tais posicionamentos poderão influenciar a práxis evangélica de assistir ao ser humano na plenitude de suas necessidades, consubstanciada na noção do Evangelho Integral que ganhou corpo a partir de Lausanne-1974. Muito mais do que galgar posições na política e no Estado, que levou à outrora tão criticada hegemonia católica na condução do país, é hora de os evangélicos brasileiros influenciarem a esfera pública com a mão visível do Bem – aquela que precisa agir também fora das igrejas e revelar ao mundo a razão da nossa fé.
• Carlos Fernandes é jornalista, editor e produtor editorial.
Texto publicado originalmente na revista Literal, de dezembro de 2020. Reproduzido com permissão.
>> Conheça o livro Venha o Teu Reino - Uma Igreja para Hoje.
Leia mais:
» Justiça social e desigualdade: o que os evangélicos têm a ver com isso?
Inclusão social já é praticada pela igreja evangélica há muito tempo – e grande parte dos brasileiros ignora isso
O termo “inclusão social” foi transformado – involuntariamente, diga-se – em elemento da imensa trincheira ideológica na qual o Brasil se converteu. A ideia de se proporcionar a todas as pessoas oportunidades e direitos semelhantes, a despeito de suas origens sociais e étnicas e levando em conta particularidades individuais, como limitações físicas ou cognitivas, é fundamento de regimes democráticos. Porém, encontra resistência onde menos se deveria esperar – na base da pirâmide social, onde se encontra a igreja evangélica. O debate se torna mais agudo quando travado sobre as políticas de ações afirmativas implementadas no país nas duas últimas décadas. Associadas a ideologias de esquerda, elas são questionadas por incentivar o vitimismo e criar uma rede de clientelismo supostamente incompatível com o desenvolvimento do país. Neste cabo-de-guerra fratricida, saem perdendo justamente os que mais dependem delas.
A politização dos temas sociais no Brasil contemporâneo caminha na contramão do crescimento da desigualdade em escala global. O Relatório Social Mundial, publicado pelo Departamento de Assuntos Econômicos e Sociais da Organização das Nações Unidas e divulgado em janeiro desde ano, aponta que a desigualdade cresceu para mais de 70% dos seres humanos. Uma bomba-relógio, no entender do secretário-geral da ONU, António Guterres. Segundo ele, as diferenças de rendimentos e a falta de oportunidades “estão criando um ciclo vicioso de desigualdade, frustração e insatisfação”. O relatório analisa o impacto de quatro grandes tendências globais que agravam as disparidades, como inovação tecnológica, mudanças climáticas, urbanização e migração internacional.
Por aqui, os efeitos da desigualdade se veem debaixo de viadutos e marquises. Historicamente desigual, o Brasil ostenta números de distribuição de renda vergonhosos. De acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística divulgada em maio de 2020, a média dos maiores salários do país é 36 vezes maior do que o que ganha o pessoal da extremidade oposta, enquanto 10% dos brasileiros abocanham quase 45% da renda total gerada no país. Hoje, mais da metade dos cerca de 85 milhões de nacionais ocupados labutam na informalidade, sem quaisquer direitos trabalhistas e previdenciários. A isso, some-se outros fatores determinantes de pobreza crônica, como dificuldade de acesso a serviços de saúde, transporte público e saneamento básico, além da falta de educação pública de qualidade.
Os ainda pouco claros impactos socioeconômicos da pandemia do novo coronavírus estão para ser calculados, mas já se anunciam como um retrocesso nos últimos e tímidos avanços obtidos pelo país. Queiram ou não os defensores da ideia fácil da meritocracia, a exclusão social continua atingindo, em cheio, segmentos como negros, mulheres e homens de baixa instrução e portadores de incapacidades motoras, sensoriais e cognitivas. “Minorias”, no caso, não são estratos numericamente inferiores, mas aqueles socialmente vulneráveis. Nesse contexto, as cotas de acesso a estabelecimentos públicos de ensino e postos de trabalho, por exemplo, são um remédio necessário, embora amargo – afinal, promovem, elas mesmas, uma série de distorções.
Rede de ajuda
A igreja evangélica se vê diante de um tema em relação ao qual não pode mais se omitir. Com algo em torno de 30% da população brasileira, ela deixou de ser o mero traço estatístico de quarenta anos atrás para se transformar em ator social preponderante. E sua membresia sente os efeitos das desigualdades na própria pele, literalmente. A chamada religião mais negra do Brasil, título do livro lançado pela Editora Ultimato e de autoria de Marco Davi de Oliveira – pastor batista, historiador e mestre em Ciências da Religião –, tem uma membresia basicamente pobre, sobretudo entre os pentecostais. Os últimos dados disponíveis pela Pesquisa de Orçamentos Familiares do IBGE, de dez anos atrás, mostravam renda média de R$1.271 nas famílias chefiadas por um evangélico. Como, praticamente, um em cada três brasileiros são adeptos dessa corrente religiosa majoritariamente negra e parda, é forçoso afirmar que a Igreja é vítima das desigualdades e, ao mesmo tempo, protagonista obrigatória da luta pela inclusão.
A academia tem reconhecido o papel dos evangélicos em iniciativas de inclusão social. O recém-lançado livro Povo de Deus – Quem são os evangélicos e por que eles importam (Geração Editorial) menciona o enorme alcance das igrejas de periferia no que se refere a iniciativas de inclusão e acolhimento a vulneráveis. A obra cita o trabalho de doutorado do antropólogo Juliano Spyer, que diz: “Essas igrejas produzem um serviço de que o Estado não dá conta ou para os quais a sociedade brasileira não se mobiliza. Há uma rede de ajuda mútua: quando o marido fica desempregado e se arruma emprego, o filho se envolve com drogas e encontra um lugar para ser tratado, o marido que batia na mulher encontra caminhos para negociar uma harmonia em casa. É um estado de bem-estar social informal”. O estudioso critica o preconceito com que as elites e a mídia ainda tratam o segmento religioso que mais cresce no país. “A conversão também é um ato inteligente, e não apenas de fé, que traz benefícios à vida do brasileiro mais pobre”, acentua.
Para além da rede de solidariedade explícita que se forma entre os membros de cada uma das milhares de igrejas evangélicas espalhadas pelo país, existe uma ação organizada, cuja ênfase primária é o amor ao próximo, preconizado pelo próprio Cristo. Um genuíno desejo de transformação social muito além da mera narrativa proselitista é o que move entidades de orientação evangélica de grande porte que atuam no país, como Visão Mundial e ChildFund Brasil. Elas proporcionam educação, segurança alimentar, amparo familiar e melhorias estruturais a comunidades distantes da ação do Estado, enquanto grupos como a Rede Evangélica Nacional de Ação Social (Renas) mobilizam organizações cristãs, igrejas e coletivos que atuam nas mais diversas áreas, do combate à exploração sexual infantil a inserção profissional.
Até mesmo em pequenas ações de inclusão de deficientes físicos, os evangélicos são vanguarda. Antes que a Linguagem Brasileira de Sinais (LIBRAS) alcançasse patamares de ampla utilização, igrejas já montavam grupos de deficientes auditivos devidamente atendidos por voluntários que lhes traduziam o conteúdo das celebrações, em plenos anos 1970. A Sociedade Bíblica do Brasil, uma das maiores produtoras mundiais das Sagradas Escrituras, investe há décadas em programas de distribuição gratuita do livro sagrado em Braille, sistema de sinais de relevo que possibilita a leitura por cegos. Boa parte da produção teológica brasileira tem despertado para o tema, o que se observa na intensa produção literária no sentido de despertar a Igreja para a realidade que já não se limita a bater à sua porta, mas ocupa lugar nos bancos.
Razão da fé
Alavancado por uma plataforma de vieses conservadores, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) chegou ao poder em 2019 com apoio maciço do eleitorado evangélico. Pesquisa realizada pelo Instituto Brasileiro de Opinião Pública e Estatística, o Ibope, encontrou 67% dos votos válidos do segmento para o então candidato do PSL. Mais do que uma guinada ideológica no país, a chegada de um militar ao Planalto pelo voto direto teve muitos componentes comportamentais. Demonstrando rejeição a bandeiras tradicionais da chamada política progressista, como flexibilização das leis que proíbem o aborto por mera opção e o uso de substâncias entorpecentes, o eleitor crente encontrou em Bolsonaro uma voz para amplificar suas angústias com o saldo de um quarto de século de centro-esquerda no poder.
Com a adesão a um discurso difuso que envolvia desde restrições ao avanço de grupos LGBTQI+ a uma hipotética implantação do comunismo no país, o evangélico brasileiro médio abraçou, também, questionamentos ao papel do Estado como promotor de bem-estar social. Algumas medidas emblemáticas do novo governo, como a crítica à política de cotas étnico-sociais e a postura negacionista em relação ao racismo estrutural da sociedade brasileira, bem como aos programas de distribuição de renda, vieram de encontro à causa da inclusão social, essencial a uma fé cristã viva. Resta saber até que ponto tais posicionamentos poderão influenciar a práxis evangélica de assistir ao ser humano na plenitude de suas necessidades, consubstanciada na noção do Evangelho Integral que ganhou corpo a partir de Lausanne-1974. Muito mais do que galgar posições na política e no Estado, que levou à outrora tão criticada hegemonia católica na condução do país, é hora de os evangélicos brasileiros influenciarem a esfera pública com a mão visível do Bem – aquela que precisa agir também fora das igrejas e revelar ao mundo a razão da nossa fé.
• Carlos Fernandes é jornalista, editor e produtor editorial.
Texto publicado originalmente na revista Literal, de dezembro de 2020. Reproduzido com permissão.
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