Opinião
- 06 de outubro de 2017
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A influência da Reforma na história da pintura
Por Rosana Basile e Davi Pinto
O ano de 2017 representa um marco na história do protestantismo – celebramos os quinhentos anos da Reforma. Eventos ao redor do mundo têm sido realizados para celebrar o que foi feito, refletir sobre o que estamos fazendo e desenhar o tanto que ainda precisa ser realizado.
Em abril deste ano, em Madri, realizou-se interessante seminário no qual o pintor protestante espanhol Miguel Angel Oyarbide dissertou sobre a relação entre o pensamento moderno proposto por Lutero e a evolução da pintura desde os tempos da Reforma até nossos dias.
Oyarbide, paisagista e retratista nascido em 1954 na capital espanhola, desenvolve sua obra pictórica na interação com a natureza e produz valiosas reflexões sobre a relação entre a história da arte e o cristianismo reformado. Embora não considere que exista uma “arte protestante”, afirma com segurança que as 95 teses de Lutero, publicadas em 1517, não só tiveram grande impacto no pensamento medieval, mas também determinaram um novo rumo para o desenvolvimento da arte e, mais especificamente, da pintura.
É certo que a drástica redução do uso de imagens sagradas em ambientes de culto da igreja reformada levou à destruição de inúmeras obras de arte e promoveu um empobrecimento visual na formação da comunidade evangélica. Mas Oyarbide nota igualmente que os ideais da Reforma contribuíram para uma transformação na linguagem expressiva que impulsionava a produção artística nos anos finais do Renascimento europeu.
O artista dentro da obra
O artista passa a se envolver na cena bíblica ou litúrgica. As figuras tornam-se mais humanizadas, refletindo afetividade e emoção na pintura. Personagens celestiais e humanos ocupam o mesmo nível iconográfico. O próprio artista passa a integrar algumas dessas cenas, como alguém que participa do acontecimento. Na pintura abaixo, o personagem que ergue a taça no canto inferior direito é o próprio Lucas Cranach.
A pintura não mais como objeto de culto
Com o desenvolvimento da imprensa, as imagens se tornam acessíveis ao público fora das paredes da igreja. Esse caráter massificado da imagem amplia suas possibilidades temáticas e impõe à arte uma nova visualidade. Textos são incluídos nos quadros, não mais em latim, mas na língua popular. A pintura na igreja deixa de ser um objeto de culto e passa a ser um sermão.
A grande crítica que a arte cristã sofre neste momento é a de destruir o classicismo, o humanismo. Promove-se uma arte “anti-clássica”, que não prioriza a beleza, mas que tem um compromisso com a fé. Trata-se de uma arte que não segue um padrão, não se preocupa com regras estéticas, e usa até mesmo deformações para representar um conceito expressivo da mensagem. Oyarbide ousa afirmar que o expressionismo começa com a arte protestante.
A partir da Reforma, a arte se abre para novas linguagens, já que a pintura religiosa não é mais o único veículo de aprendizagem da Bíblia. Os artistas se sentem livres para explorar de forma mais profunda outros temas, como paisagens, cenas cotidianas, a vida real, o interior de sua própria casa, um conjunto de músicos, um retrato de qualquer pessoa. Retrato que representa um personagem não mais por seus méritos e no qual são eliminados elementos de ostentação para representar pessoas comuns.
A beleza da natureza como poder de Deus
Já no século XIX, os artistas rompem definitivamente com o conceito utilitário da arte e se dispõem a explorar a arte pela arte. Oyrbide destaca a produção de John Ruskin, paisagista e crítico de arte na época vitoriana que aporta uma teoria estética inspirada na natureza como suprema ordem divina. Seu trabalho expressa uma admiração pela ordem da natureza que reflete a criação em sua beleza. A beleza da natureza como poder de Deus.
A influência da fé reformada na vida e formação de Van Gogh
Há na história da arte um grande número de artistas que, ainda que não tenham se posicionado institucionalmente como cristãos, cresceram e se desenvolveram em ambientes familiares reformados. Um exemplo emblemático é Van Gogh, que, sendo filho de pastor protestante, carregava a tradição cristã em sua formação – chegou inclusive a ser missionário no sul da Bélgica. Van Gogh herda a estética de Ruskin, mas desenvolve sua própria linguagem expressiva. A fé reformada é parte significativa da experiência de vida de Van Gogh, que desenvolve uma pintura impressionista que continua sensibilizando amantes das artes até hoje, cristãos ou não.
Posteriormente, Edvard Munch destaca-se por promover uma nova estética expressionista, muito mais conectada com as emoções do que com um compromisso fotográfico com a realidade. Conhecido por suas imagens deformadas, fantasmagóricas e de forte expressividade emocional, lidou desde a infância com uma realidade cristã que, se em certos momentos lhe parecia fanática e irracional, certamente influenciou sua linguagem expressiva.
A partir do expressionismo, a arte ganha outros espaços conceituais. A imagem deixa de ser essencial, e a arte passa a ser tratada como linguagem. Essa neutralização da figura, numa tendência caracterizada como “anti-imagem”, é um dos pilares da arte contemporânea e não deixa de ter relação com a estética puritana das paredes brancas nos lugares de culto. Outras tendências são a descontextualização da imagem, com a mudança de paradigmas sobre o que pode ser considerado arte; o expressionismo abstrato, em que a imagem em si é mais importante do que sua função; e o minimalismo, que busca reduzir ao máximo a presença de elementos visuais. Todos esses movimentos, embora não carreguem conceitos diretamente ligados à religião, se alimentam da necessidade de envolver a arte no universo das emoções, da espiritualidade e do corpo, usando a força simbólica de elementos artísticos básicos, como a cor e as formas geométricas.
Oyarbide conclui essa reflexão sobre o fluxo das manifestações artísticas na história da arte a partir da Reforma com palavras esperançosas para o futuro da arte e sua imprescindível relação com a vida cristã:
“Confio que algum dia poderemos colocar tudo isso em ordem e descobrir que realmente existe uma Estética Protestante que tenha a presença que merece no conjunto da História da Arte, e que se reconheça sua influência em toda sua dimensão. Enquanto isso, continuaremos indagando, refletindo, mas sobretudo nos emocionando com as obras de tantos artistas que comprometeram a vida e o trabalho com a batalha pessoal, que implica viver a coerência de uma nova vida em Cristo, que definitivamente foi a porta que abriu a Reforma Protestante há quinhentos anos.” (500reforma.org)
• Rosana Basile, artista plástica, e Davi Pinto, diplomata, são casados e têm três filhas. Juntos criaram o Teologarte, site que busca conectar as artes e a fé cristã.
Leia mais
A Reforma e as artes
Uma pintura que ensina
A Reforma: o que você precisa saber e por quê [John Stott | Michael Reeves]
O ano de 2017 representa um marco na história do protestantismo – celebramos os quinhentos anos da Reforma. Eventos ao redor do mundo têm sido realizados para celebrar o que foi feito, refletir sobre o que estamos fazendo e desenhar o tanto que ainda precisa ser realizado.
Em abril deste ano, em Madri, realizou-se interessante seminário no qual o pintor protestante espanhol Miguel Angel Oyarbide dissertou sobre a relação entre o pensamento moderno proposto por Lutero e a evolução da pintura desde os tempos da Reforma até nossos dias.
Oyarbide, paisagista e retratista nascido em 1954 na capital espanhola, desenvolve sua obra pictórica na interação com a natureza e produz valiosas reflexões sobre a relação entre a história da arte e o cristianismo reformado. Embora não considere que exista uma “arte protestante”, afirma com segurança que as 95 teses de Lutero, publicadas em 1517, não só tiveram grande impacto no pensamento medieval, mas também determinaram um novo rumo para o desenvolvimento da arte e, mais especificamente, da pintura.
É certo que a drástica redução do uso de imagens sagradas em ambientes de culto da igreja reformada levou à destruição de inúmeras obras de arte e promoveu um empobrecimento visual na formação da comunidade evangélica. Mas Oyarbide nota igualmente que os ideais da Reforma contribuíram para uma transformação na linguagem expressiva que impulsionava a produção artística nos anos finais do Renascimento europeu.
O artista dentro da obra
O artista passa a se envolver na cena bíblica ou litúrgica. As figuras tornam-se mais humanizadas, refletindo afetividade e emoção na pintura. Personagens celestiais e humanos ocupam o mesmo nível iconográfico. O próprio artista passa a integrar algumas dessas cenas, como alguém que participa do acontecimento. Na pintura abaixo, o personagem que ergue a taça no canto inferior direito é o próprio Lucas Cranach.
A pintura não mais como objeto de culto
Com o desenvolvimento da imprensa, as imagens se tornam acessíveis ao público fora das paredes da igreja. Esse caráter massificado da imagem amplia suas possibilidades temáticas e impõe à arte uma nova visualidade. Textos são incluídos nos quadros, não mais em latim, mas na língua popular. A pintura na igreja deixa de ser um objeto de culto e passa a ser um sermão.
A grande crítica que a arte cristã sofre neste momento é a de destruir o classicismo, o humanismo. Promove-se uma arte “anti-clássica”, que não prioriza a beleza, mas que tem um compromisso com a fé. Trata-se de uma arte que não segue um padrão, não se preocupa com regras estéticas, e usa até mesmo deformações para representar um conceito expressivo da mensagem. Oyarbide ousa afirmar que o expressionismo começa com a arte protestante.
A partir da Reforma, a arte se abre para novas linguagens, já que a pintura religiosa não é mais o único veículo de aprendizagem da Bíblia. Os artistas se sentem livres para explorar de forma mais profunda outros temas, como paisagens, cenas cotidianas, a vida real, o interior de sua própria casa, um conjunto de músicos, um retrato de qualquer pessoa. Retrato que representa um personagem não mais por seus méritos e no qual são eliminados elementos de ostentação para representar pessoas comuns.
A beleza da natureza como poder de Deus
Já no século XIX, os artistas rompem definitivamente com o conceito utilitário da arte e se dispõem a explorar a arte pela arte. Oyrbide destaca a produção de John Ruskin, paisagista e crítico de arte na época vitoriana que aporta uma teoria estética inspirada na natureza como suprema ordem divina. Seu trabalho expressa uma admiração pela ordem da natureza que reflete a criação em sua beleza. A beleza da natureza como poder de Deus.
A influência da fé reformada na vida e formação de Van Gogh
Há na história da arte um grande número de artistas que, ainda que não tenham se posicionado institucionalmente como cristãos, cresceram e se desenvolveram em ambientes familiares reformados. Um exemplo emblemático é Van Gogh, que, sendo filho de pastor protestante, carregava a tradição cristã em sua formação – chegou inclusive a ser missionário no sul da Bélgica. Van Gogh herda a estética de Ruskin, mas desenvolve sua própria linguagem expressiva. A fé reformada é parte significativa da experiência de vida de Van Gogh, que desenvolve uma pintura impressionista que continua sensibilizando amantes das artes até hoje, cristãos ou não.
Posteriormente, Edvard Munch destaca-se por promover uma nova estética expressionista, muito mais conectada com as emoções do que com um compromisso fotográfico com a realidade. Conhecido por suas imagens deformadas, fantasmagóricas e de forte expressividade emocional, lidou desde a infância com uma realidade cristã que, se em certos momentos lhe parecia fanática e irracional, certamente influenciou sua linguagem expressiva.
A partir do expressionismo, a arte ganha outros espaços conceituais. A imagem deixa de ser essencial, e a arte passa a ser tratada como linguagem. Essa neutralização da figura, numa tendência caracterizada como “anti-imagem”, é um dos pilares da arte contemporânea e não deixa de ter relação com a estética puritana das paredes brancas nos lugares de culto. Outras tendências são a descontextualização da imagem, com a mudança de paradigmas sobre o que pode ser considerado arte; o expressionismo abstrato, em que a imagem em si é mais importante do que sua função; e o minimalismo, que busca reduzir ao máximo a presença de elementos visuais. Todos esses movimentos, embora não carreguem conceitos diretamente ligados à religião, se alimentam da necessidade de envolver a arte no universo das emoções, da espiritualidade e do corpo, usando a força simbólica de elementos artísticos básicos, como a cor e as formas geométricas.
Oyarbide conclui essa reflexão sobre o fluxo das manifestações artísticas na história da arte a partir da Reforma com palavras esperançosas para o futuro da arte e sua imprescindível relação com a vida cristã:
“Confio que algum dia poderemos colocar tudo isso em ordem e descobrir que realmente existe uma Estética Protestante que tenha a presença que merece no conjunto da História da Arte, e que se reconheça sua influência em toda sua dimensão. Enquanto isso, continuaremos indagando, refletindo, mas sobretudo nos emocionando com as obras de tantos artistas que comprometeram a vida e o trabalho com a batalha pessoal, que implica viver a coerência de uma nova vida em Cristo, que definitivamente foi a porta que abriu a Reforma Protestante há quinhentos anos.” (500reforma.org)
• Rosana Basile, artista plástica, e Davi Pinto, diplomata, são casados e têm três filhas. Juntos criaram o Teologarte, site que busca conectar as artes e a fé cristã.
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A Reforma: o que você precisa saber e por quê [John Stott | Michael Reeves]
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