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Opinião

A igreja do saco de boxe e a memória dos primeiros mártires Luteranos

Por Davi Chang Ribeiro Lin

Aproveitando um tempo de estudos teológicos na Bélgica, estive no último fim de semana na exposição histórica “Lutero na Antuérpia, tolerância e repressão no século XVI”, na igreja católica Sint-Andrieskerk (Santo André) em Antuérpia. Seu estilo gótico no exterior e o barroco no interior foram brindados com... um saco de boxe no meio da igreja. Ao lado, uma mensagem mencionando a luta de Jacó com Deus. E acrescentaram: “lutar com alguém é melhor que ignorá-lo. Assim também com Deus”. Para uma Europa pós-cristã para quem Deus não é mais relevante, o saco de boxe é um apontamento contra a indiferença e um chamado a pelejar com um Deus que não entendemos e cujos caminhos às vezes questionamos. A ironia, porém, é que um saco de boxe nesta igreja remete ao passado de lutas (não com Deus), mas entre cristãos.

As ideias iniciais de Lutero chegaram à Antuérpia a partir do monastério Agostiniano. Jakob Probst (a quem Lutero carinhosamente chamava de “gordinho flamengo”) começou a falar abertamente contra as indulgências. Um tribunal da inquisição foi formado em Bruxelas. Em 1523, Hendrik Voes e Johann Esch, dois monges agostinianos, recusam a renunciar as ideias de Lutero e foram queimados vivos. O monastério agostiniano é então destruído e a igreja católica de Santo André erguida. Abalado pela morte destes amigos, Lutero compõe “uma nova canção levantamos”, música escrita em homenagem a estes que foram os primeiros mártires da Reforma Protestante. “Lançadas para os ventos negligentes / ou sobre o elenco das águas, / as cinzas dos mártires, assistidas, / se reunirão finalmente. / E daquela poeira dispersa, / ao nosso redor e ao exterior, / sondaremos uma semente abundante / de testemunhas para Deus.”

A visita me tocou: primeiramente, a coragem destes agostinianos em não negarem suas convicções luteranas. Como Estevão, estes primeiros mártires da Reforma foram publicamente humilhados, mas queimaram cantando suas canções. E de outro, encantou-me a abertura dos católicos Belgas do século XXI em contar esta história reconhecendo os protestantes como vítimas da violência. A maneira como se conta a história é um índice de sua humildade. A exposição teve uma parte intitulada “memória das vítimas” e o guia escrito buscava explicar aos visitantes as causas legítimas pelas quais os monges lutaram, contra a corrupção da igreja católica e comercialização das crenças, além de notas explicativas sobre os nuances das diferentes igrejas protestantes atuais. O foco da exposição foi nos mártires como pessoas sinceras que buscavam reforma e que proclamaram a palavra de Deus. Curiosamente, a exposição não citou a retaliação protestante de 1581, na qual Calvinistas destruíram parte desta igreja.

A exposição terminou dizendo que católicos e protestantes no hemisfério norte vivem atualmente os mesmos desafios: a indiferença e desinteresse quanto a igreja e uma atitude de negação de Deus. O saco de boxe convidava a lutar com Deus e não ignorá-lo. A luta não é contra carne ou sangue. É melhor lutar com Deus do que fazer de outro ser humano o seu saco de pancadas.

Aos sairmos da exposição, ouvimos um jovem europeu, branco e musculoso, dizendo a uma moça que não acreditava nas “besteiras de Deus e Jesus”. Aquilo era ultrapassado dizia ele. Mas gostava do padre que emprestava o salão paroquial para suas festas e às vezes se sentava na igreja para refletir. A criativa estratégia da igreja colocou o saco de boxe para o fortão em silêncio se perguntar sobre Deus.

Pergunto-me se a igreja evangélica brasileira sabe pelo que realmente lutar, e se o faz de maneira sábia. Talvez, se dependermos menos dos poderes político, jurídico e econômico, poderemos redescobrir mais profundamente o que significa encarnação e a força que nasce não no palácio, mas da manjedoura. Os irmãos da Europa tem, atualmente, pouca força e reconhecem que perderam a luta contra a secularização. Foram jogados na lona. O mesmo caminho tem sido traçado em um rápido processo de transformação social no Brasil. Mas isto, ao invés de uma retaliação bélica dos cristãos, precisa nos ensinar a responder estrategicamente a partir da fraqueza. Quem está na lona aprende a testemunhar criativamente e ouve melhor a dor do mundo.

Cristo, o vencedor ferido, continua abrindo portas para que seus filhos se posicionem sabiamente. Os cristãos serão sempre exilados que acharam na fraqueza de um Deus esmurrado e traspassado sua grande alegria e, na força do amor doador a esperança da ressurreição . Nas palavras do luterano Edmund Schlink, por causa da ação constante de Cristo, podemos olhar para o futuro da igreja cristã com esperança: “a igreja existe porque Jesus Cristo, o crucificado e ressurreto, age sempre nela de maneira nova... ela não é anterior a sua ação; e ela não existe por um instante sem sua ação”.

A visita ressaltou-me a importância de dar memória às vítimas da história e a olhar com esperança nosso futuro, mesmo em tempos turbulentos. Da Antuérpia a Auschwitz, quero contar e recontar a história do crucificado. Ele, que se tornou humano como eu e sofreu a ponto de derramar seu sangue, leva para o Pai nossas frágeis poeiras de cinzas, sementes que testemunham para Deus.

• Davi C. Ribeiro Lin é em mestre em teologia pelo Regent College, Canadá e doutorando em Teologia pela FAJE e por KU Leuven (Bélgica). Possui graduação em psicologia e especialização em Psicologia Clínica. É parte do colegiado de líderes da Comunidade Evangélica do Castelo, em Belo Horizonte.

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