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Opinião

A festa de Babette

Com muito gosto e “subida honra”, como diziam os antigos, inicio uma sequência de reflexões mensais na versão eletrônica de ULTIMATO sobre cinema na perspectiva da fé cristã. Vou começar por um clássico. Ítalo Calvino, escritor italiano, defendeu com maestria que devemos ler os clássicos. A tese deste Calvino – que não deve ser confundido com o outro, o grave reformador francês do século XVI – aplica-se perfeitamente bem aos filmes. Clássicos são perenes. É o caso de “A festa de Babette”, do cineasta dinamarquês Gabriel Axel (falecido no início deste ano, aos 95 anos). Esta produção dinamarquesa ganhou o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro no ano de seu lançamento, 1987, além de também ter sido contemplado com o BAFTA (a versão britânica do Oscar) igualmente na categoria de melhor filme estrangeiro em 1988. O filme é baseado em um conto do mesmo título que faz parte de “Anedotas do destino”, coletânea da escritora dinamarquesa Karen Blixen. Trata-se de um drama, muitíssimo bem escrito. Eu diria que a adaptação de Axel é 95% fiel ao texto de Blixen.

Babette é uma francesa católica que chega a uma vilazinha perdida em uma ilhota do litoral da Dinamarca em 1871, fugindo da Comuna de Paris. Seu marido e seus filhos foram mortos nas confusões que aconteceram naquele conturbado momento histórico da França. Ela é acolhida por duas irmãs solteironas, Martina e Filipa, filhas do pastor daquela comunidade (todos na ilha são luteranos). Como o pastor não teve filhos homens, o recurso que teve para homenagear os reformadores alemães foi adaptar seus nomes aos de suas filhas: Martina, em homenagem a Martim Lutero, e Felipa, em homenagem a Felipe Melanchton. Durante anos Babette trabalha como criada na casa das irmãs, e não apenas as ajuda, bem como aos mais velhos e doentes da vila. O filme mostra com rara sensibilidade como os ilhéus viviam uma rotina que jamais era alterada. Há flashbacks nos quais se recorda a juventude das irmãs, quando ambas foram cortejadas, uma por Lorens Lowenhielm, um oficial do exército dinamarquês, e a outra por Achiles Papin, um professor de canto francês. Mas o rigoroso pai não permite que suas filhas se casem. Anos mais tarde Babette recebe a notícia que fora contemplada com o prêmio máximo de uma loteria na França. Ela recebe um prêmio fabuloso, dez mil francos. E aí o que ninguém sabia do passado de Babette aos poucos começa a ser revelado: ela fora a “chef” do Cafe Anglais, um dos mais requintados restaurantes de Paris, onde as cabeças coroadas da Europa se reuniam para os mais sofisticados jantares. Babette resolve gastar o prêmio que ganhou oferecendo um jantar, que seria para comemorar o centenário do nascimento do pastor. E assim ela faz. Os aldeões com medo do que poderão encontrar resolvem não expressar prazer nem satisfação com o jantar. Só que lá pelas tantas, algo extraordinário acontece: uma catarse, e eles publicamente começam a confessar seus pecados uns aos outros. Esta cena no filme não é tão forte como no conto, o que é uma pena. A meu ver este é o único ponto fraco que consigo detectar na direção de Axel. Mas voltando à narrativa, eles confessam seus pecados uns aos outros, pedem perdão uns aos outros, concedem o perdão uns aos outros, e voltam para suas casas felizes como crianças. Babette, por meio da alquimia e da magia dos prazeres da mesa e do vinho, como diria o Rubem Alves, abençoa a todos.

Há muitas possibilidades de leitura deste filme. Uma delas é interpretá-lo a partir da categoria dos estágios da vida, do filósofo também dinamarquês e luterano Sǿren Kierkegaard: o estágio ético ocupa a maior parte da narrativa, quando mostra uma comunidade onde todos são sérios, não há diversão, não há lazer, não há alegria, todos apenas trabalham e vão aos cultos aos domingos e mais nada; o estágio estético é o momento do banquete, da festa, mesmo eles fazendo um esforço enorme para negar a alegria e o prazer; e, finalmente, o estágio religioso, a superação do ético e do estético, quando acontece a catarse coletiva, as máscaras caem, a hipocrisia e a falsidade de todos são deixadas de lado, e acontece um momento de quebrantamento, cura e redenção.

Outra possibilidade de leitura é entender “A festa de Babette” como uma metáfora da salvação pela graça, mas não conforme algumas metáforas paulinas, sendo a mais conhecida a da justificação, que aparece nos primeiros capítulos de Romanos, mas conforme alguns textos na Bíblia Hebraica – Isaías – e especialmente, textos do terceiro evangelho, onde se apresenta a salvação como festa, como banquete. A Bíblia fala da realidade da salvação por meio de metáforas. “Justificação pela fé”, a preferida dos protestantes clássicos, é apenas uma delas. Mas não estamos acostumados a pensar na salvação a partir da metáfora da festa. O conto de Karen Blixen e o filme de Gabriel Axel nos convidam a pensar na história como uma ilustração do que Deus faz conosco em Cristo: assim como Babette se sacrificou para dar uma festa para quem não merecia, Deus em Cristo nos salva e nos convida sem merecimento nosso para uma festa. Os aldeões daquela ilhota são amargos, falsos, fofoqueiros, estão cheios de maldade. Mas são transformados quando criam coragem para abrir mão de seus pecados há muito escondidos. Isaías 25.6 fala da festa que Javé oferecerá, “um banquete com coisas gordurosas, uma festa com vinhos velhos”. O tema da salvação como festa era conhecido dos judeus da época de Jesus, conforme atestado por Lucas 14.1ss e, ainda mais eloquente, Lucas 15.11,11-32. Estes textos (e outros ainda, como Apocalipse 19.7, 9) nos convidam a repensar a salvação: o que Deus nos oferece em Cristo, sem merecimento nosso, é festa, é alegria, é banquete, é riso, é júbilo, é canto, é dança, é prazer. Em uma única palavra: é graça!

Estas são apenas duas possibilidades de leitura deste filme tocante e comovente. “A festa de Babette” é um filme que vale a pena ser visto e revisto. Aleluia!
É professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da PUC Minas, onde coordena o GPRA – Grupo de Pesquisa Religião e Arte.
  • Textos publicados: 83 [ver]

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