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- 06 de outubro de 2015
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A fé em meio ao sofrimento e à morte
RESENHA
WOLTERSTORFF, Nicholas. Lamento: A fé em meio ao sofrimento e à morte. Tradução: Joel Tibúrcio de Sousa. Viçosa: Ultimato, 2007, 112 p.
Lamento talvez tenha sido o livro mais impactante que li ao longo de 2015. É impressionante como a poesia da dor alcança áreas de nosso ser que a poesia da alegria, com toda a sua beleza, parece não atingir. Há algo no sofrimento que nos aproxima de pessoas com as quais nunca tivemos contato e cujas histórias jamais nos foram contadas. O contato com a dor alheia tem uma capacidade inexplicável que, ainda que por alguns instantes, nos tornar um só.
Foi esta a sensação que tive quando li a obra de Nicholas Wolterstorff. Filósofo cristão, professor no Calvin College (EUA) e na Universidade Livre de Amsterdã (Holanda), Wolterstorff me era um autor desconhecido, até que Lamento veio parar em minhas mãos. Só larguei o livro após terminar sua última página. E pretendo fazer do então desconhecido escritor um companheiro na caminhada literária.
Lamento é a tentativa de expressar os estragos que uma tragédia provoca na vida de seres humanos. Não uma tragédia qualquer. A pior delas. A expressão mais emblemática da inversão da ordem natural das coisas. A terrível e indescritível experiência de sepultar um filho.
Pai de cinco filhos, Wolterstorff recebe, certo dia, uma ligação: um de seus filhos, Eric, havia morrido em um acidente de alpinismo. Eu não sei o que isso significa! Ninguém que não tenha passado por esta experiência pode dizer: “sei o que você está passando”. Sequer imaginamos! Dor não é das coisas que se conhece na teoria. E a dor de perder um filho é imensurável e incomparável.
Como cristãos, temos um problema. Somos, vez ou outra, encorajados a encarar a morte como se ela fosse um problema já superado. Não que não seja! Teologicamente, de fato, rimos como o apóstolo Paulo, dizendo: “onde está, ó morte, a tua vitória?”. Rimos, contudo, na esperança de que o Cristo que esvaziou o poder da morte com a sua ressurreição, um dia inaugure um tempo em que ela nem mesmo exista em nossa memória. Enquanto este tempo não chega, lidamos com o maligno poder que a morte tem de roubar pedaços de nós, sempre que, ao levar alguém que amamos, ela nos lembra de quão perto está em nossa jornada.
Wolterstorff é um cristão que não zomba da morte. Só quem conhece seus efeitos mais profundos sabe que ela foi feita para ser chorada, e não zombada. Wolterstorff tampouco faz dela pouco caso. Ignorá-la é impossível, já que o silêncio que ela provoca é ensurdecedor. Wolterstorff entende o que muitos de seus irmãos de fé insistem em ignorar: lamentar é sinal de humanidade; é gesto de sobrevivência diante das feridas irremediáveis que o sofrimento causa na alma.
Lamento me deu a sensação de estar diante de um “Jó contemporâneo”. Não pela equiparação do sofrimento de Wolterstorff ao do personagem bíblico. Só os tolos e insensíveis colocam sofrimento na balança, como se pudessem ser comparados. O que faz de Wolterstorff um espécie de Jó é sua capacidade de encarar sua tragédia com honestidade, apresentando todos os seus questionamentos a Deus, sem a menor pretensão de parecer um sujeito resolvido, daqueles cuja fé é tão “forte” que nem mesmo questionam as mais profundas e cruéis cicatrizes que a vida lhes traz.
É sobre tais cicatrizes, por sinal, que Wolterstorff fala com um tipo de beleza que só a poesia da dor suscita. Tentando explicar a profundidade de sua dor, e evocando as palavras de Jesus a Tomé (“põe tuas mãos em minhas feridas, e saberás quem sou”), o autor diz: “Cristo não perdeu suas feridas. Elas são a sua identidade, nos dizem quem ele é. Elas desceram à sepultura com ele e, com ele, de lá saíram, visíveis, tangíveis, palpáveis. [Como com Jesus], se você quer saber quem eu [Nicholas Wolterstorff] sou, ponha as mãos nestas chagas”.2
Wolterstorff reconhece que, depois da tragédia, ele mudou. Mudou para melhor. Mas, sem um momento de hesitação, admite, trocaria essa mudança pela volta de Eric. Dentre outras coisas, talvez a ressurreição do Filho de Deus seja aos pais que vivem a mesma tragédia que viveu o Criador – de experimentar a dor de perder um filho - a lembrança de que um dia todos eles terão seus meninos de volta nos braços. Até lá, o lamento permanece uma das formas de cuidar das chagas que para sempre serão carregadas – no corpo e na alma.
Nota:
1. Wolterstorff, Nicholas. Lamento, 2007, pp. 92, 93
• Daniel Leite Guanaes de Miranda é pastor da Igreja Presbiteriana do Recreio, no Rio de Janeiro (RJ). É também psicólogo clínico e doutor em Teologia pela Universidade de Aberdeen.
Foto: Silvio Mechow/Freeimages.com
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O complicado problema do sofrimento
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Para (melhor) enfrentar o sofrimento
Pare de conjugar o verbo sofrer
Sangue, sofrimento e fé
WOLTERSTORFF, Nicholas. Lamento: A fé em meio ao sofrimento e à morte. Tradução: Joel Tibúrcio de Sousa. Viçosa: Ultimato, 2007, 112 p.
Lamento talvez tenha sido o livro mais impactante que li ao longo de 2015. É impressionante como a poesia da dor alcança áreas de nosso ser que a poesia da alegria, com toda a sua beleza, parece não atingir. Há algo no sofrimento que nos aproxima de pessoas com as quais nunca tivemos contato e cujas histórias jamais nos foram contadas. O contato com a dor alheia tem uma capacidade inexplicável que, ainda que por alguns instantes, nos tornar um só.
Foi esta a sensação que tive quando li a obra de Nicholas Wolterstorff. Filósofo cristão, professor no Calvin College (EUA) e na Universidade Livre de Amsterdã (Holanda), Wolterstorff me era um autor desconhecido, até que Lamento veio parar em minhas mãos. Só larguei o livro após terminar sua última página. E pretendo fazer do então desconhecido escritor um companheiro na caminhada literária.
Lamento é a tentativa de expressar os estragos que uma tragédia provoca na vida de seres humanos. Não uma tragédia qualquer. A pior delas. A expressão mais emblemática da inversão da ordem natural das coisas. A terrível e indescritível experiência de sepultar um filho.
Pai de cinco filhos, Wolterstorff recebe, certo dia, uma ligação: um de seus filhos, Eric, havia morrido em um acidente de alpinismo. Eu não sei o que isso significa! Ninguém que não tenha passado por esta experiência pode dizer: “sei o que você está passando”. Sequer imaginamos! Dor não é das coisas que se conhece na teoria. E a dor de perder um filho é imensurável e incomparável.
Como cristãos, temos um problema. Somos, vez ou outra, encorajados a encarar a morte como se ela fosse um problema já superado. Não que não seja! Teologicamente, de fato, rimos como o apóstolo Paulo, dizendo: “onde está, ó morte, a tua vitória?”. Rimos, contudo, na esperança de que o Cristo que esvaziou o poder da morte com a sua ressurreição, um dia inaugure um tempo em que ela nem mesmo exista em nossa memória. Enquanto este tempo não chega, lidamos com o maligno poder que a morte tem de roubar pedaços de nós, sempre que, ao levar alguém que amamos, ela nos lembra de quão perto está em nossa jornada.
Wolterstorff é um cristão que não zomba da morte. Só quem conhece seus efeitos mais profundos sabe que ela foi feita para ser chorada, e não zombada. Wolterstorff tampouco faz dela pouco caso. Ignorá-la é impossível, já que o silêncio que ela provoca é ensurdecedor. Wolterstorff entende o que muitos de seus irmãos de fé insistem em ignorar: lamentar é sinal de humanidade; é gesto de sobrevivência diante das feridas irremediáveis que o sofrimento causa na alma.
Lamento me deu a sensação de estar diante de um “Jó contemporâneo”. Não pela equiparação do sofrimento de Wolterstorff ao do personagem bíblico. Só os tolos e insensíveis colocam sofrimento na balança, como se pudessem ser comparados. O que faz de Wolterstorff um espécie de Jó é sua capacidade de encarar sua tragédia com honestidade, apresentando todos os seus questionamentos a Deus, sem a menor pretensão de parecer um sujeito resolvido, daqueles cuja fé é tão “forte” que nem mesmo questionam as mais profundas e cruéis cicatrizes que a vida lhes traz.
É sobre tais cicatrizes, por sinal, que Wolterstorff fala com um tipo de beleza que só a poesia da dor suscita. Tentando explicar a profundidade de sua dor, e evocando as palavras de Jesus a Tomé (“põe tuas mãos em minhas feridas, e saberás quem sou”), o autor diz: “Cristo não perdeu suas feridas. Elas são a sua identidade, nos dizem quem ele é. Elas desceram à sepultura com ele e, com ele, de lá saíram, visíveis, tangíveis, palpáveis. [Como com Jesus], se você quer saber quem eu [Nicholas Wolterstorff] sou, ponha as mãos nestas chagas”.2
Wolterstorff reconhece que, depois da tragédia, ele mudou. Mudou para melhor. Mas, sem um momento de hesitação, admite, trocaria essa mudança pela volta de Eric. Dentre outras coisas, talvez a ressurreição do Filho de Deus seja aos pais que vivem a mesma tragédia que viveu o Criador – de experimentar a dor de perder um filho - a lembrança de que um dia todos eles terão seus meninos de volta nos braços. Até lá, o lamento permanece uma das formas de cuidar das chagas que para sempre serão carregadas – no corpo e na alma.
Nota:
1. Wolterstorff, Nicholas. Lamento, 2007, pp. 92, 93
• Daniel Leite Guanaes de Miranda é pastor da Igreja Presbiteriana do Recreio, no Rio de Janeiro (RJ). É também psicólogo clínico e doutor em Teologia pela Universidade de Aberdeen.
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