Opinião
- 18 de março de 2024
- Visualizações: 2062
- comente!
- +A
- -A
- compartilhar
A Fazenda da Caveira de Barbacena e a colina da Caveira de Jerusalém
A grande vergonha do manicômio de Barbacena durou quase meio século. É uma vergonha recente
Por Elben César
A Inquisição foi uma vergonha, as Cruzadas foram uma vergonha, o colonialismo foi uma vergonha, a escravatura foi uma vergonha, a discriminação racial foi uma vergonha, os campos de concentração foram uma vergonha, a Guerra Fria foi uma vergonha e o manicômio de Barbacena foi uma vergonha.
Se não tivesse desaparecido, a grande vergonha de Barbacena estaria comemorando seu 121º aniversário exatamente agora, em março de 2024. Criado pelo governo de Minas Gerais em 1903, o Hospício de Barbacena, mais tarde Hospital Colônia, começou num ambiente de lugubridade. Embora situado num lugar aprazível (a mil metros de altura) e espaçoso, a propriedade havia pertencido a Joaquim Silvério dos Reis, o coronel português que se filiou à conjuração mineira e depois a denunciou, causando o fracasso do movimento que desejava proclamar a independência do Brasil de Portugal, o degredo de vários inconfidentes e o enforcamento de Tiradentes aos 45 anos, em 21 de abril de 1792. Por ter o sinistro nome de Fazenda da Caveira – palavra que é um dos símbolos largamente associados à morte –, a área obrigatoriamente lembrava a colina da Caveira, o lugar onde Jesus foi crucificado (Lc 23.33). Soma-se a isso o nome dado ao manicômio – Hospício de Barbacena –, que fere o paciente e seus familiares.
Nos primeiros trinta anos, tudo correu muito bem. Tão bem que o Hospital Colônia (nome mais delicado) passou a ser um mega-hospital, atraindo doentes de todo o estado de Minas e de vários outros lugares do país, não só portadores de “transtornos mentais” – expressão desconhecida na época –, mas também sifilíticos, tuberculosos e marginalizados. De somente duzentos passou para quase 5 mil pacientes. Era uma mistura absurda: crianças que nunca mais veriam seus pais, meninos considerados desobedientes pelos pais e professores, presos políticos, toda sorte de pessoas indesejáveis e até moças solteiras que haviam perdido a virgindade ou que estavam grávidas. Os “doentes” eram despejados na estação Barbacena da Estrada de Ferro Central do Brasil, que ficava defronte ao pavilhão principal, pelo chamado “Trem de Doido”. A maioria nunca mais voltava para casa.
Por causa dessa superlotação, a direção da colônia foi obrigada a retirar as três ou quatro camas de cada quarto para alojar, no chão coberto de feno, oito a doze pacientes, que competiam com os ratos que os mordiam durante a noite. Por causa das fezes e da urina o cheiro era insuportável. Abandonados à própria sorte, os internos perambulavam nus e descalços pelos pavilhões e comiam comida servida em cochos, sem colheres. Os pacientes mais rebeldes e os acusados de alguma insubmissão eram mantidos presos em celas gradeadas, algemados pelos pés e mãos.
Por acreditar que a ociosidade era nociva ao louco, uma parte do tratamento era por conta da laborterapia, por meio da qual se retirava do paciente a condição de criatura inútil, possibilitando a canalização de sua agressividade e, consequentemente, a cura, pensava-se. Os pacientes pobres e considerados indigentes eram forçados a trabalhos monótonos e repetitivos, como se fossem escravos, na lavoura, na área do hospital e na confecção de tijolos, como aconteceu com os israelitas no Egito. Praticava-se também a lobotomia, corte das vias nervosas na região frontal do cérebro quando há esquizofrenia grave e em estados compulsivos.
O número de mortos era assustador – sessenta óbitos por semana. Calcula-se que cerca de 60 mil pessoas morreram no Hospital Colônia. As mortes eram causadas por maus-tratos, diarreia, desnutrição, desidratação, doenças oportunistas, falta de higiene e frio intenso. Fala-se de um chá que era frequentemente servido por volta da meia-noite e, “estranhamente”, no dia seguinte muitos amanheciam mortos e eram espalhados nos corredores e pátios do hospital até serem sepultados.
Até serem sepultados é apenas o modo de falar, pois vários deles eram colocados em tonéis com ácido para “desencarnar”, isto é, para tirar-lhes a carne. O que sobrava – o esqueleto – era vendido a faculdades de medicina do país. Além do comércio de esqueletos, havia o de cadáveres inteiros para abastecer os laboratórios de anatomia. Ao todo, 1.853 corpos foram vendidos para dezessete faculdades de medicina.
A grande vergonha do manicômio de Barbacena durou quase meio século – de 1933 a 1979. É uma vergonha recente. Coisas parecidas ou piores aconteceram no Bethlem Royal Hospital of London, o mais antigo hospital psiquiátrico do mundo, do século 13, e em outros. Num deles, no século 17, doentes mentais eram espancados e torturados em público para divertir os visitantes.
Artigo originalmente publicado na edição 341 de Ultimato.
Crédito das imagens: Luiz Alfredo Ferreira/Acervo da Fundação Municipal de Cultura de Barbacena.
REVISTA ULTIMATO | DOENÇAS QUE FAZEM SOFRER TAMBÉM OS QUE CREEM
Todas as pessoas – também os que creem – correm o risco de adoecer mentalmente. Há multidões na igreja lutando com problemas de saúde mental. Felizmente, há esperança e ajuda: profissionais da saúde, recursos terapêuticos e medicamentos. Os cristãos podem contar ainda com a ajuda extraordinária de seu Deus. E a igreja deve proporcionar um espaço seguro para estes.
É disso que trata a matéria de capa da edição 405 da revista Ultimato. Para assinar, clique aqui.
Saiba mais:
» Saúde Emocional e Vida Cristã - Curando s feridas do coração, Esly Regina Carvalho
» Um Novo Dia - Deixando para trás ansiedade, fome, controle, vergonha, ira e desespero, Emma Scrivener
» Encorajamento Que Vem do Alto – A vida nova que só Deus pode dar, Robert Koo
» Doenças que fazem sofrer também os que creem, edição 405 de Ultimato
» O que mais você pode ler sobre saúde mental, Blog Ultimato
Por Elben César
A Inquisição foi uma vergonha, as Cruzadas foram uma vergonha, o colonialismo foi uma vergonha, a escravatura foi uma vergonha, a discriminação racial foi uma vergonha, os campos de concentração foram uma vergonha, a Guerra Fria foi uma vergonha e o manicômio de Barbacena foi uma vergonha.
Se não tivesse desaparecido, a grande vergonha de Barbacena estaria comemorando seu 121º aniversário exatamente agora, em março de 2024. Criado pelo governo de Minas Gerais em 1903, o Hospício de Barbacena, mais tarde Hospital Colônia, começou num ambiente de lugubridade. Embora situado num lugar aprazível (a mil metros de altura) e espaçoso, a propriedade havia pertencido a Joaquim Silvério dos Reis, o coronel português que se filiou à conjuração mineira e depois a denunciou, causando o fracasso do movimento que desejava proclamar a independência do Brasil de Portugal, o degredo de vários inconfidentes e o enforcamento de Tiradentes aos 45 anos, em 21 de abril de 1792. Por ter o sinistro nome de Fazenda da Caveira – palavra que é um dos símbolos largamente associados à morte –, a área obrigatoriamente lembrava a colina da Caveira, o lugar onde Jesus foi crucificado (Lc 23.33). Soma-se a isso o nome dado ao manicômio – Hospício de Barbacena –, que fere o paciente e seus familiares.
Nos primeiros trinta anos, tudo correu muito bem. Tão bem que o Hospital Colônia (nome mais delicado) passou a ser um mega-hospital, atraindo doentes de todo o estado de Minas e de vários outros lugares do país, não só portadores de “transtornos mentais” – expressão desconhecida na época –, mas também sifilíticos, tuberculosos e marginalizados. De somente duzentos passou para quase 5 mil pacientes. Era uma mistura absurda: crianças que nunca mais veriam seus pais, meninos considerados desobedientes pelos pais e professores, presos políticos, toda sorte de pessoas indesejáveis e até moças solteiras que haviam perdido a virgindade ou que estavam grávidas. Os “doentes” eram despejados na estação Barbacena da Estrada de Ferro Central do Brasil, que ficava defronte ao pavilhão principal, pelo chamado “Trem de Doido”. A maioria nunca mais voltava para casa.
Por causa dessa superlotação, a direção da colônia foi obrigada a retirar as três ou quatro camas de cada quarto para alojar, no chão coberto de feno, oito a doze pacientes, que competiam com os ratos que os mordiam durante a noite. Por causa das fezes e da urina o cheiro era insuportável. Abandonados à própria sorte, os internos perambulavam nus e descalços pelos pavilhões e comiam comida servida em cochos, sem colheres. Os pacientes mais rebeldes e os acusados de alguma insubmissão eram mantidos presos em celas gradeadas, algemados pelos pés e mãos.
Por acreditar que a ociosidade era nociva ao louco, uma parte do tratamento era por conta da laborterapia, por meio da qual se retirava do paciente a condição de criatura inútil, possibilitando a canalização de sua agressividade e, consequentemente, a cura, pensava-se. Os pacientes pobres e considerados indigentes eram forçados a trabalhos monótonos e repetitivos, como se fossem escravos, na lavoura, na área do hospital e na confecção de tijolos, como aconteceu com os israelitas no Egito. Praticava-se também a lobotomia, corte das vias nervosas na região frontal do cérebro quando há esquizofrenia grave e em estados compulsivos.
O número de mortos era assustador – sessenta óbitos por semana. Calcula-se que cerca de 60 mil pessoas morreram no Hospital Colônia. As mortes eram causadas por maus-tratos, diarreia, desnutrição, desidratação, doenças oportunistas, falta de higiene e frio intenso. Fala-se de um chá que era frequentemente servido por volta da meia-noite e, “estranhamente”, no dia seguinte muitos amanheciam mortos e eram espalhados nos corredores e pátios do hospital até serem sepultados.
Até serem sepultados é apenas o modo de falar, pois vários deles eram colocados em tonéis com ácido para “desencarnar”, isto é, para tirar-lhes a carne. O que sobrava – o esqueleto – era vendido a faculdades de medicina do país. Além do comércio de esqueletos, havia o de cadáveres inteiros para abastecer os laboratórios de anatomia. Ao todo, 1.853 corpos foram vendidos para dezessete faculdades de medicina.
A grande vergonha do manicômio de Barbacena durou quase meio século – de 1933 a 1979. É uma vergonha recente. Coisas parecidas ou piores aconteceram no Bethlem Royal Hospital of London, o mais antigo hospital psiquiátrico do mundo, do século 13, e em outros. Num deles, no século 17, doentes mentais eram espancados e torturados em público para divertir os visitantes.
Artigo originalmente publicado na edição 341 de Ultimato.
Crédito das imagens: Luiz Alfredo Ferreira/Acervo da Fundação Municipal de Cultura de Barbacena.
REVISTA ULTIMATO | DOENÇAS QUE FAZEM SOFRER TAMBÉM OS QUE CREEM
Todas as pessoas – também os que creem – correm o risco de adoecer mentalmente. Há multidões na igreja lutando com problemas de saúde mental. Felizmente, há esperança e ajuda: profissionais da saúde, recursos terapêuticos e medicamentos. Os cristãos podem contar ainda com a ajuda extraordinária de seu Deus. E a igreja deve proporcionar um espaço seguro para estes.
É disso que trata a matéria de capa da edição 405 da revista Ultimato. Para assinar, clique aqui.
Saiba mais:
» Saúde Emocional e Vida Cristã - Curando s feridas do coração, Esly Regina Carvalho
» Um Novo Dia - Deixando para trás ansiedade, fome, controle, vergonha, ira e desespero, Emma Scrivener
» Encorajamento Que Vem do Alto – A vida nova que só Deus pode dar, Robert Koo
» Doenças que fazem sofrer também os que creem, edição 405 de Ultimato
» O que mais você pode ler sobre saúde mental, Blog Ultimato
Elben Magalhães Lenz César foi o fundador da Editora Ultimato e redator da revista Ultimato até a sua morte, em outubro de 2016. Fundador do Centro Evangélico de Missões e pastor emérito da Igreja Presbiteriana de Viçosa (IPV), é autor de, entre outros, Por Que (Sempre) Faço o Que Não Quero?, Refeições Diárias com Jesus, Mochila nas Costas e Diário na Mão, Para (Melhor) Enfrentar o Sofrimento, Conversas com Lutero, Refeições Diárias com os Profetas Menores, A Pessoa Mais Importante do Mundo, História da Evangelização do Brasil e Práticas Devocionais. Foi casado por sessenta anos com Djanira Momesso César, com quem teve cinco filhas, dez netos e quatro bisnetos.
- Textos publicados: 117 [ver]
- 18 de março de 2024
- Visualizações: 2062
- comente!
- +A
- -A
- compartilhar
QUE BOM QUE VOCÊ CHEGOU ATÉ AQUI.
Ultimato quer falar com você.
A cada dia, mais de dez mil usuários navegam pelo Portal Ultimato. Leem e compartilham gratuitamente dezenas de blogs e hotsites, além do acervo digital da revista Ultimato, centenas de estudos bíblicos, devocionais diárias de autores como John Stott, Eugene Peterson, C. S. Lewis, entre outros, além de artigos, notícias e serviços que são atualizados diariamente nas diferentes plataformas e redes sociais.
PARA CONTINUAR, precisamos do seu apoio. Compartilhe conosco um cafezinho.
Leia mais em Opinião
Opinião do leitor
Para comentar é necessário estar logado no site. Clique aqui para fazer o login ou o seu cadastro.
Ainda não há comentários sobre este texto. Seja o primeiro a comentar!
Escreva um artigo em resposta
Para escrever uma resposta é necessário estar cadastrado no site. Clique aqui para fazer o login ou seu cadastro.
Ainda não há artigos publicados na seção "Palavra do leitor" em resposta a este texto.
Assuntos em Últimas
- 500AnosReforma
- Aconteceu Comigo
- Aconteceu há...
- Agenda50anos
- Arte e Cultura
- Biografia e História
- Casamento e Família
- Ciência
- Devocionário
- Espiritualidade
- Estudo Bíblico
- Evangelização e Missões
- Ética e Comportamento
- Igreja e Liderança
- Igreja em ação
- Institucional
- Juventude
- Legado e Louvor
- Meio Ambiente
- Política e Sociedade
- Reportagem
- Resenha
- Série Ciência e Fé Cristã
- Teologia e Doutrina
- Testemunho
- Vida Cristã
Revista Ultimato
+ lidos
- Descobrindo o potencial da diáspora: um chamado à igreja brasileira
- Trabalho sob a perspectiva do reino de Deus
- Jesus [não] tem mais graça
- Onde estão as crianças?
- Não confunda o Natal com Papai Noel — Para celebrar o verdadeiro Natal
- Uma cidade sitiada - Uma abordagem literária do Salmo 31
- C. S. Lewis, 126 anos
- Ultimato recebe prêmio Areté 2024
- Exalte o Altíssimo!
- Paciência e determinação: virtudes essenciais para enfrentar a realidade da vida