Opinião
- 24 de janeiro de 2023
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A crise yanomami
Fatos, reflexões e abordagem na busca por soluções permanentes
Por Cassiano Luz
A ampla repercussão da crise sanitária yanomami tem me trazido inúmeras mensagens nos últimos dias. São muitas perguntas, pedidos de esclarecimentos, sugestões e algumas críticas a um suposto silêncio das organizações missionárias e outras vozes evangélicas diante de uma situação calamitosa que teria ceifado mais de quinhentas vidas de crianças yanomamis nos últimos quatro anos, conforme notícia que tem sido veiculada em diversos canais de imprensa.
Incapaz de dar conta de tantas interlocuções, mas movido pela importância que esse tema tem para mim pessoalmente, decidi repetir o formato que adotei anos atrás quando a pauta era o presumido risco de internacionalização amazônica, escrevendo e compartilhando este texto no qual procuro ser o mais objetivo possível acerca do assunto, mesmo sabendo que não é tarefa fácil.
Antes de tudo, dois esclarecimentos importantes. Primeiro, não se trata de um texto cientifico. Neste momento, não estou buscando dados estatísticos atualizados nem confirmação de informações mais precisas relativas a acontecimentos, datas e locais. Meu objetivo é ampliar um pouco mais a discussão e mostrar que a temática é, de fato, mais complexa do que pode parecer. Segundo, não falo aqui em nome de nenhuma instituição, nem mesmo aquelas que represento. Trata-se de uma iniciativa e pontos de vista absolutamente pessoais, de alguém que viveu e trabalhou por quase uma década entre os yanomami, dedicou bastante tempo estudando sua língua e cultura, relacionando-se com eles, que tem profundo respeito por esse povo, e há mais de trinta anos mantem contato constante com os próprios yanomamis e com pessoas que trabalham há décadas entre seus diferentes subgrupos, tanto no Brasil como na Venezuela.
Não restam dúvidas de que há uma crise sanitária em curso entre o povo yanomami. Não posso afirmar que todas as tristes e comoventes imagens que estão circulando são atuais, e nem tenho condições de dimensionar a real extensão dessa crise, mas devemos estar conscientes de que sim, há fome extrema, ausência de insumos e de assistência adequada em boa parte da Terra Indígena Yanomami, e aqui me detenho àqueles que estão em território brasileiro. Dito isso, penso em pelo menos quatro aspectos que precisam ser abordados para trazer maior esclarecimento àqueles que estão interessados e preocupados em ajudar de alguma maneira.
1. O fator territorial
A Terra Indígena Yanomami tem mais de 190 mil quilômetros quadrados, 9,6 milhões de hectares de extensão em região de selva amazônica, por onde estão espalhadas milhares de comunidades que representam quatro subgrupos principais e inúmeros clãs familiares. O acesso a essas regiões é muito difícil, sendo feito, na grande maioria dos casos, apenas em pequenas aeronaves, predominantemente aviões monomotores que transportam tanto pessoal quanto insumos e mantimentos. Isso torna as operações extremamente onerosas. Considere a imensa capilaridade de aldeias que precisam ser atendidas por terra a partir dos locais que possuem pistas de pouso, muitas vezes tendo que percorrer dias em mata fechada, e comece a vislumbrar a dificuldade de se manter equipes de saúde em área por longos períodos, por exemplo. Ao longo dos anos me convenci de que somente aqueles profissionais que abraçam esse trabalho como uma causa pessoal, a partir de uma convicção vocacional, são capazes de permanecer por períodos mais prolongados. Ao mesmo tempo, sem um nível maior de comprometimento não se consegue comunicar de forma adequada com um povo predominantemente monolíngue, não falante do português, em sua maioria, nem fazer diagnósticos mais precisos sem uma compreensão cultural mais aprofundada. São necessários anos de dedicação para aprender ao menos um dos dialetos e ter uma compreensão adequada dos códigos culturais yanomamis, o que não acontece sem um comprometimento pessoal intenso.
2. O modelo de gestão
Não é meu objetivo aqui entrar no mérito da comparação entre as administrações pública e privada, mas é fato que, historicamente, temos observado muitos problemas na gestão pública, especialmente onde estão os maiores orçamentos. A gestão logística e de insumos na assistência governamental devida aos yanomami tem sido problemática há várias décadas, em diferentes governos. Conflitos de interesses, desmandos e corrupção têm sido recorrentes na gestão indígena yanomami desde sempre, alternando momentos melhores e piores. Há um sério problema no próprio sistema que precisa ser revisto. Não tenho nenhum receio em afirmar que os locais assistidos pelas agências missionárias têm um resultado muitas vezes superior em termos de qualidade no atendimento e melhor qualidade de vida dos indígenas. Porem a atuação missionária e extremamente limitada em termos geográficos.
3. A presença exploratória
Também não entrarei aqui na discussão sobre o modelo brasileiro de demarcação de terras indígenas, nem na política de proteção aos chamados “povos isolados e de recente contato”, apesar de entender que essa é uma discussão importante e necessária. Mas é fato que a presença hoje ilegal e exploratória dos recursos naturais, principalmente de ouro e de cassiterita no caso da área yanomami, tem sido absolutamente nociva ao meio ambiente e às comunidades indígenas, direta e indiretamente. Vivi por quatro anos em uma comunidade yanomami no Alto Rio Mucajaí, distante 170 quilômetros da capital de Boa Vista, capital de Roraima. Esse rio onde minha filha mais velha aprendeu a nadar e de onde bebíamos água tranquilamente, hoje está praticamente morto, pela ação desenfreada e ilegal dos garimpeiros. Em uma simples busca no YouTube encontra-se um vídeo gravado em 2021 mostrando a comemoração de garimpeiros após terem êxito em desviar o curso do Rio Mucajaí para poderem garimpar em seu leito seco. Não havendo o rio, com a presença de novas “vilas de garimpo”, não há mais peixes, a caça, outrora abundante, desparece, as doenças chegam em seu lugar. Ao mesmo tempo, as relações que se estabelecem entre essas “vilas” e as comunidades indígenas representam outro problema gravíssimo. Esses relances ora são conflituosas, frequentemente resultando em mortes por confrontos, ora são predatórias, já que o não-índio intruso passa a oferecer quinquilharias e comidas industrializadas em troca do “direito” de permanecer em terra indígena, o que introduz novas vulnerabilidades e doenças, e alimenta um outro grande problema do qual falarei no próximo tópico.
Os yanomami foram vítimas de uma tragédia sanitária possivelmente bem maior que a atual, que teve seu auge no final dos anos de 1980, justamente pela invasão garimpeira, portanto não é a primeira e, tremo ao dizer, provavelmente nem será a última vez que veremos imagens como as que circulam hoje pelo mundo. Mas, a bem da verdade, é preciso dizer que, sim, foi nos últimos anos, com a retirada de diversas salvaguardas, que houve uma nova invasão garimpeira na região.
4. O fator cultural
A alguns amigos mais conhecedores da realidade indígena, tenho perguntado nos últimos dias se já viram os yekwana passarem fome ou vítimas desse tipo de situação que hoje vemos entre os yanomami. Os yekwana são uma etnia de língua karib, bem diferentes dos yanomami, que também vivem em território venezuelano e brasileiro. Há três grandes comunidades yekwanas vivendo dentro da Terra Indígena Yanomami, exatamente na mesma região onde vivem os sanumb, um dos subgrupos yanomamis que está bastante vulnerável na atual crise. Os yekwana, entre outras características, são excelentes agricultores e exímios navegadores, experts na confecção de canoas e, por fatores eminentemente culturais – deixando bem claro que não faço aqui qualquer juízo de valor entre uma ou outra cultura – historicamente têm se mostrado muito mais resilientes no contato intercultural e muito mais eficientes na forma como lidam com crises de toda natureza.
Os yanomami, por sua vez, têm pelo menos duas características bastante marcantes que, me parece, os tornam mais vulneráveis nesse sentido do que seus vizinhos yekwana. A primeira chamarei de “individualismo”. Não existem lideranças amplamente reconhecidas nas comunidades yanomamis. Quem espera, por exemplo, interagir com um “cacique yanomami” ou algo parecido, certamente irá se frustrar no final do processo. Para a segunda característica cultural, pego emprestado do meu amigo, antropólogo e missionário Ronaldo Lidorio, o que em seu Método Antropos de Análise Sociocultural ele define como “culturas existenciais”, aquelas que manifestam uma tendência mais acentuada de viverem focadas nas experiências ativas, ou seja, as do presente, deixando para se preocupar com o futuro quando ele chegar. Culturas individualistas e existenciais, como a yanomami, mostram-se mais vulneráveis às interfaces com a cultura envolvente, que via-de-regra leva “facilidades”, bem ou mal-intencionadas, como a comida industrializada que aparentemente “substitui” o duro trabalho de abrir uma clareira no meio da selva e plantar as roças que garantiriam a alimentado nos períodos mais críticos, ou os esforços relacionados à caça, pesca e coleta, por exemplo.
Não tenho a pretensão de pensar que esses quatro aspectos resumem ou explicam a crise atual. Não falei, por exemplo, sobre a epidemia de malária, que tem crescido assustadoramente na área, como em tantas outras ocasiões no passado. Eu mesmo enfrentei pelo menos nove malárias, duas delas resistentes, a maioria resultante das buscas ativas que fazíamos para interromper o ciclo de contágio em regiões endêmicas na área yanomami. Há muitos anos sabemos como controlar a malária, mas não tem havido a mobilização e investimento necessários para fazê-lo, ou pelo menos esses recursos não têm chegado onde deveriam, da forma como deveriam. Tivemos também a pandemia da Covid-19, entre outros fatores. Mas entendo que está posto o suficiente para que, humildemente, possa propor algumas sugestões para esse momento:
1.
Precisamos reconhecer que os problemas que afetam os yanomami são antigos, pelo menos cinco décadas, e a crise que vemos agora já vimos muitas outras vezes. Isso não é defesa ou ataque a um ou outro governo, mas sim uma constatação honesta. Por isso não creio que é momento de gastarmos tempo e energia encontrando culpados para a situação atual. Se há responsabilidades a serem atribuídas e contas a serem pagas com a justiça, deixemos que as autoridades judiciárias competentes cuidem disso. Há outras ações que nos cabem e demandam nossa atenção.
2.
Como movimento missionário evangélico e Igreja de Jesus Cristo, precisamos sair das nossas trincheiras e assumir compromissos mais amplos do que a atuado – excelente, por sinal – que temos concentrado em regiões bastante especificas. Ninguém conhece o povo, a língua e a cultura yanomami como os missionários! Simplesmente não faz sentido que estejamos fora dos debates acerca das soluções que precisam ser buscadas para esse momento. Há um grande e compreensível receio por parte das organizações evangélicas de se envolverem em iniciativas que visam pressionar e influenciar políticas e alocação de recursos públicos, mas, nesse momento, precisamos pensar no bem dos mais de trinta mil yanomamis e não apenas daquelas poucas centenas com os quais atuamos diretamente. Ainda sonho com o dia em que, como evangélicos, teremos uma ação de advocacy mais robusta, profissional e sistemática.
3.
Entre as ações apontadas no item anterior, precisamos pressionar as autoridades para que:
• Sejam interrompidas imediatamente as atividades de garimpo na área yanomami. Sabemos que é possível, já foi feito antes e pode ser feito novamente.
• Sejam deflagradas ações de combate à malária nas regiões endêmicas. Já foi feito antes e é uma necessidade urgente.
• Sejam implementadas ações de socorro imediato nas regiões onde estão ocorrendo mortes por desnutrição.
• Seja revista toda a operado de logística e alocação de recursos via Distrito Sanitário Indígena Yanomami.
4.
Como Igreja de Jesus, precisamos perguntar antes de fazer. Pilotando o Programa Aliança Pela Vida, de respostas rápidas em emergências humanas, da Aliança Evangélica Brasileira, temos aprendido que no momento da crise aguda muitas ações ineficientes acabam acontecendo de forma atabalhoada, gerando excesso de respostas a determinada demanda, enquanto outras permanecem descobertas. Corremos o risco, por exemplo, de ter muita comida represada em Boa Vista, RR, sem capacidade de transporte para dentro da área yanomami. Por isso é fundamental uma ação planejada e articulada com quem está na linha de frente.
5.
Passado esse momento mais crítico, é fundamental pensarmos em ações estruturantes de longo prazo, sob o risco de um assistencialismo que só venha agravar ainda mais a situação no futuro. Para isso também e necessário ouvir, principalmente os yanomami e aqueles mais experientes e conhecedores da cultura yanomami e suas nuances. Talvez essa seja a tarefa mais difícil de todas, mas também a mais importante.
Seguimos pedindo a Deus que tenha misericórdia desse povo tão sofrido e, eventualmente, nos dê o privilégio de sermos parte da sua resposta.
Vinhedo, 22 de janeiro de 2023.
Saiba mais:
» A Questão Indígena – Uma Luta Desigual, Isaac Souza e Ronaldo Almeida Lidório, org.
» Infográfico O que não sabemos sobre os indígenas do Brasil?
» Indígenas no Brasil – um universo pouco conhecido
» Indígenas do Brasil: paradoxos, perdas e desafios
» Live de Diálogos de Esperança - O impacto da pandemia nas comunidades indígenas
Crédito da imagem: Marcelo Camargo/Agência Brasil
Por Cassiano Luz
A ampla repercussão da crise sanitária yanomami tem me trazido inúmeras mensagens nos últimos dias. São muitas perguntas, pedidos de esclarecimentos, sugestões e algumas críticas a um suposto silêncio das organizações missionárias e outras vozes evangélicas diante de uma situação calamitosa que teria ceifado mais de quinhentas vidas de crianças yanomamis nos últimos quatro anos, conforme notícia que tem sido veiculada em diversos canais de imprensa.
Incapaz de dar conta de tantas interlocuções, mas movido pela importância que esse tema tem para mim pessoalmente, decidi repetir o formato que adotei anos atrás quando a pauta era o presumido risco de internacionalização amazônica, escrevendo e compartilhando este texto no qual procuro ser o mais objetivo possível acerca do assunto, mesmo sabendo que não é tarefa fácil.
Antes de tudo, dois esclarecimentos importantes. Primeiro, não se trata de um texto cientifico. Neste momento, não estou buscando dados estatísticos atualizados nem confirmação de informações mais precisas relativas a acontecimentos, datas e locais. Meu objetivo é ampliar um pouco mais a discussão e mostrar que a temática é, de fato, mais complexa do que pode parecer. Segundo, não falo aqui em nome de nenhuma instituição, nem mesmo aquelas que represento. Trata-se de uma iniciativa e pontos de vista absolutamente pessoais, de alguém que viveu e trabalhou por quase uma década entre os yanomami, dedicou bastante tempo estudando sua língua e cultura, relacionando-se com eles, que tem profundo respeito por esse povo, e há mais de trinta anos mantem contato constante com os próprios yanomamis e com pessoas que trabalham há décadas entre seus diferentes subgrupos, tanto no Brasil como na Venezuela.
Não restam dúvidas de que há uma crise sanitária em curso entre o povo yanomami. Não posso afirmar que todas as tristes e comoventes imagens que estão circulando são atuais, e nem tenho condições de dimensionar a real extensão dessa crise, mas devemos estar conscientes de que sim, há fome extrema, ausência de insumos e de assistência adequada em boa parte da Terra Indígena Yanomami, e aqui me detenho àqueles que estão em território brasileiro. Dito isso, penso em pelo menos quatro aspectos que precisam ser abordados para trazer maior esclarecimento àqueles que estão interessados e preocupados em ajudar de alguma maneira.
1. O fator territorial
A Terra Indígena Yanomami tem mais de 190 mil quilômetros quadrados, 9,6 milhões de hectares de extensão em região de selva amazônica, por onde estão espalhadas milhares de comunidades que representam quatro subgrupos principais e inúmeros clãs familiares. O acesso a essas regiões é muito difícil, sendo feito, na grande maioria dos casos, apenas em pequenas aeronaves, predominantemente aviões monomotores que transportam tanto pessoal quanto insumos e mantimentos. Isso torna as operações extremamente onerosas. Considere a imensa capilaridade de aldeias que precisam ser atendidas por terra a partir dos locais que possuem pistas de pouso, muitas vezes tendo que percorrer dias em mata fechada, e comece a vislumbrar a dificuldade de se manter equipes de saúde em área por longos períodos, por exemplo. Ao longo dos anos me convenci de que somente aqueles profissionais que abraçam esse trabalho como uma causa pessoal, a partir de uma convicção vocacional, são capazes de permanecer por períodos mais prolongados. Ao mesmo tempo, sem um nível maior de comprometimento não se consegue comunicar de forma adequada com um povo predominantemente monolíngue, não falante do português, em sua maioria, nem fazer diagnósticos mais precisos sem uma compreensão cultural mais aprofundada. São necessários anos de dedicação para aprender ao menos um dos dialetos e ter uma compreensão adequada dos códigos culturais yanomamis, o que não acontece sem um comprometimento pessoal intenso.
2. O modelo de gestão
Não é meu objetivo aqui entrar no mérito da comparação entre as administrações pública e privada, mas é fato que, historicamente, temos observado muitos problemas na gestão pública, especialmente onde estão os maiores orçamentos. A gestão logística e de insumos na assistência governamental devida aos yanomami tem sido problemática há várias décadas, em diferentes governos. Conflitos de interesses, desmandos e corrupção têm sido recorrentes na gestão indígena yanomami desde sempre, alternando momentos melhores e piores. Há um sério problema no próprio sistema que precisa ser revisto. Não tenho nenhum receio em afirmar que os locais assistidos pelas agências missionárias têm um resultado muitas vezes superior em termos de qualidade no atendimento e melhor qualidade de vida dos indígenas. Porem a atuação missionária e extremamente limitada em termos geográficos.
3. A presença exploratória
Também não entrarei aqui na discussão sobre o modelo brasileiro de demarcação de terras indígenas, nem na política de proteção aos chamados “povos isolados e de recente contato”, apesar de entender que essa é uma discussão importante e necessária. Mas é fato que a presença hoje ilegal e exploratória dos recursos naturais, principalmente de ouro e de cassiterita no caso da área yanomami, tem sido absolutamente nociva ao meio ambiente e às comunidades indígenas, direta e indiretamente. Vivi por quatro anos em uma comunidade yanomami no Alto Rio Mucajaí, distante 170 quilômetros da capital de Boa Vista, capital de Roraima. Esse rio onde minha filha mais velha aprendeu a nadar e de onde bebíamos água tranquilamente, hoje está praticamente morto, pela ação desenfreada e ilegal dos garimpeiros. Em uma simples busca no YouTube encontra-se um vídeo gravado em 2021 mostrando a comemoração de garimpeiros após terem êxito em desviar o curso do Rio Mucajaí para poderem garimpar em seu leito seco. Não havendo o rio, com a presença de novas “vilas de garimpo”, não há mais peixes, a caça, outrora abundante, desparece, as doenças chegam em seu lugar. Ao mesmo tempo, as relações que se estabelecem entre essas “vilas” e as comunidades indígenas representam outro problema gravíssimo. Esses relances ora são conflituosas, frequentemente resultando em mortes por confrontos, ora são predatórias, já que o não-índio intruso passa a oferecer quinquilharias e comidas industrializadas em troca do “direito” de permanecer em terra indígena, o que introduz novas vulnerabilidades e doenças, e alimenta um outro grande problema do qual falarei no próximo tópico.
Os yanomami foram vítimas de uma tragédia sanitária possivelmente bem maior que a atual, que teve seu auge no final dos anos de 1980, justamente pela invasão garimpeira, portanto não é a primeira e, tremo ao dizer, provavelmente nem será a última vez que veremos imagens como as que circulam hoje pelo mundo. Mas, a bem da verdade, é preciso dizer que, sim, foi nos últimos anos, com a retirada de diversas salvaguardas, que houve uma nova invasão garimpeira na região.
4. O fator cultural
A alguns amigos mais conhecedores da realidade indígena, tenho perguntado nos últimos dias se já viram os yekwana passarem fome ou vítimas desse tipo de situação que hoje vemos entre os yanomami. Os yekwana são uma etnia de língua karib, bem diferentes dos yanomami, que também vivem em território venezuelano e brasileiro. Há três grandes comunidades yekwanas vivendo dentro da Terra Indígena Yanomami, exatamente na mesma região onde vivem os sanumb, um dos subgrupos yanomamis que está bastante vulnerável na atual crise. Os yekwana, entre outras características, são excelentes agricultores e exímios navegadores, experts na confecção de canoas e, por fatores eminentemente culturais – deixando bem claro que não faço aqui qualquer juízo de valor entre uma ou outra cultura – historicamente têm se mostrado muito mais resilientes no contato intercultural e muito mais eficientes na forma como lidam com crises de toda natureza.
Os yanomami, por sua vez, têm pelo menos duas características bastante marcantes que, me parece, os tornam mais vulneráveis nesse sentido do que seus vizinhos yekwana. A primeira chamarei de “individualismo”. Não existem lideranças amplamente reconhecidas nas comunidades yanomamis. Quem espera, por exemplo, interagir com um “cacique yanomami” ou algo parecido, certamente irá se frustrar no final do processo. Para a segunda característica cultural, pego emprestado do meu amigo, antropólogo e missionário Ronaldo Lidorio, o que em seu Método Antropos de Análise Sociocultural ele define como “culturas existenciais”, aquelas que manifestam uma tendência mais acentuada de viverem focadas nas experiências ativas, ou seja, as do presente, deixando para se preocupar com o futuro quando ele chegar. Culturas individualistas e existenciais, como a yanomami, mostram-se mais vulneráveis às interfaces com a cultura envolvente, que via-de-regra leva “facilidades”, bem ou mal-intencionadas, como a comida industrializada que aparentemente “substitui” o duro trabalho de abrir uma clareira no meio da selva e plantar as roças que garantiriam a alimentado nos períodos mais críticos, ou os esforços relacionados à caça, pesca e coleta, por exemplo.
Não tenho a pretensão de pensar que esses quatro aspectos resumem ou explicam a crise atual. Não falei, por exemplo, sobre a epidemia de malária, que tem crescido assustadoramente na área, como em tantas outras ocasiões no passado. Eu mesmo enfrentei pelo menos nove malárias, duas delas resistentes, a maioria resultante das buscas ativas que fazíamos para interromper o ciclo de contágio em regiões endêmicas na área yanomami. Há muitos anos sabemos como controlar a malária, mas não tem havido a mobilização e investimento necessários para fazê-lo, ou pelo menos esses recursos não têm chegado onde deveriam, da forma como deveriam. Tivemos também a pandemia da Covid-19, entre outros fatores. Mas entendo que está posto o suficiente para que, humildemente, possa propor algumas sugestões para esse momento:
1.
Precisamos reconhecer que os problemas que afetam os yanomami são antigos, pelo menos cinco décadas, e a crise que vemos agora já vimos muitas outras vezes. Isso não é defesa ou ataque a um ou outro governo, mas sim uma constatação honesta. Por isso não creio que é momento de gastarmos tempo e energia encontrando culpados para a situação atual. Se há responsabilidades a serem atribuídas e contas a serem pagas com a justiça, deixemos que as autoridades judiciárias competentes cuidem disso. Há outras ações que nos cabem e demandam nossa atenção.
2.
Como movimento missionário evangélico e Igreja de Jesus Cristo, precisamos sair das nossas trincheiras e assumir compromissos mais amplos do que a atuado – excelente, por sinal – que temos concentrado em regiões bastante especificas. Ninguém conhece o povo, a língua e a cultura yanomami como os missionários! Simplesmente não faz sentido que estejamos fora dos debates acerca das soluções que precisam ser buscadas para esse momento. Há um grande e compreensível receio por parte das organizações evangélicas de se envolverem em iniciativas que visam pressionar e influenciar políticas e alocação de recursos públicos, mas, nesse momento, precisamos pensar no bem dos mais de trinta mil yanomamis e não apenas daquelas poucas centenas com os quais atuamos diretamente. Ainda sonho com o dia em que, como evangélicos, teremos uma ação de advocacy mais robusta, profissional e sistemática.
3.
Entre as ações apontadas no item anterior, precisamos pressionar as autoridades para que:
• Sejam interrompidas imediatamente as atividades de garimpo na área yanomami. Sabemos que é possível, já foi feito antes e pode ser feito novamente.
• Sejam deflagradas ações de combate à malária nas regiões endêmicas. Já foi feito antes e é uma necessidade urgente.
• Sejam implementadas ações de socorro imediato nas regiões onde estão ocorrendo mortes por desnutrição.
• Seja revista toda a operado de logística e alocação de recursos via Distrito Sanitário Indígena Yanomami.
4.
Como Igreja de Jesus, precisamos perguntar antes de fazer. Pilotando o Programa Aliança Pela Vida, de respostas rápidas em emergências humanas, da Aliança Evangélica Brasileira, temos aprendido que no momento da crise aguda muitas ações ineficientes acabam acontecendo de forma atabalhoada, gerando excesso de respostas a determinada demanda, enquanto outras permanecem descobertas. Corremos o risco, por exemplo, de ter muita comida represada em Boa Vista, RR, sem capacidade de transporte para dentro da área yanomami. Por isso é fundamental uma ação planejada e articulada com quem está na linha de frente.
5.
Passado esse momento mais crítico, é fundamental pensarmos em ações estruturantes de longo prazo, sob o risco de um assistencialismo que só venha agravar ainda mais a situação no futuro. Para isso também e necessário ouvir, principalmente os yanomami e aqueles mais experientes e conhecedores da cultura yanomami e suas nuances. Talvez essa seja a tarefa mais difícil de todas, mas também a mais importante.
Seguimos pedindo a Deus que tenha misericórdia desse povo tão sofrido e, eventualmente, nos dê o privilégio de sermos parte da sua resposta.
Vinhedo, 22 de janeiro de 2023.
- Cassiano Luz é diretor executivo da Aliança Evangélica Brasileira, idealizador do Programa Aliança pela Vida – que atua em situações de catástrofes e emergências humanas – e missionário da SEPAL - Servindo aos Pastores e Líderes. Foi presidente da Associação de Missões Transculturais Brasileiras (AMTB), onde colabora com o Departamento de Assuntos Indígenas (DAI) desde 2004, e foi diretor de operações da Visão Mundial Brasil. É bacharel em teologia e especialista em antropologia intercultural. Viveu na área yanomami entre 1999 e 2006, onde atuou na educação bilíngue e bicultural, serviu como intérprete, técnico de enfermagem e microscopista em programas de atenção à saúde, educação e subsistência.
A BÍBLIA NÃO ERRA. OS LEITORES, NEM TANTO | REVISTA ULTIMATO
O Ano-Novo é sempre uma oportunidade de renovação de votos. E não há voto mais importante e definidor para 2023 do que o propósito de se expor regularmente à Palavra de Deus, por meio da leitura das Escrituras. A Bíblia deve ocupar lugar central em nossa vida e na vida da igreja.
A matéria de capa desta edição não só incentiva o leitor à leitura regular da Bíblia, mas também o encoraja a aceitar o desafio de olhar reverentemente para as Escrituras como “um diário de Deus”, a partir da “chave” do amor.
Saiba mais:
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Crédito da imagem: Marcelo Camargo/Agência Brasil
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