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Opinião

A ciência da gratidão

Por Ester Utrilla de Figueiredo

Caracterizando a gratidão
No prefácio da obra The Psychology of Gratitude,¹ o filósofo Robert C. Solomon destaca que a gratidão é uma das virtudes mais subestimadas. Mesmo que não seja considerada uma das virtudes por excelência (conforme Aristóteles), Mark McMinn, em The Science of Virtue,² ressalta que Cícero a descreveria como pai de todas as virtudes.

Como qualquer afeto, a gratidão pode ser considerada como um traço de caráter, um humor ou uma emoção. Quando é considerada um traço de caráter, é entendida como uma tendência a reconhecer e responder com a emoção de gratidão à benevolência dos outros nas experiências positivas e nos resultados que obtemos.³ À diferença do otimismo, que espera por resultados futuros positivos, a gratidão está orientada a reconhecer os resultados.⁴ A gratidão também pode ser entendida como nossa atitude de resposta a um “presente”, seja este do tipo que for; podendo responder com gratidão (e celebração!) ou com queixas e sugestões.⁵

Os instrumentos utilizados nas pesquisas para medir a gratidão nos orientam para entender melhor sua conceitualização. Estas medidas⁶ focam na apreciação pelas coisas; quantidade de coisas pelas quais sou grato (“tenho muitas coisas pelas quais ser grato”), a frequência das vezes que sinto gratidão (“demoro até sentir gratidão por algo”) ou a visão geral da gratidão ao longo do tempo (“conforme envelheço, consigo apreciar melhor as pessoas que formaram parte de minha vida”). Outras questões que refletem a apreciação teriam a ver com o encantamento (pela natureza e pela arte) ou o desfrute das coisas simples da vida. Já os itens contrários são aqueles relacionados com ressentimento (“comigo acontecem mais coisas ruins do que com os outros”).

Coletando dados
No começo dos anos 2000, os pesquisadores cristãos Emmons e McCullough publicaram os achados de vários estudos sobre gratidão, associando-a com uma melhor saúde física e mental; “contar as bênçãos” aumentava o otimismo e a satisfação com a vida, melhorava o sono e diminuía as visitas ao médico. A interpretação dos autores foi que a gratidão nos fazia ser mais pró-sociais: gentis, perdoadores e confiantes nos outros.⁷ Posteriormente também apareceram nos estudos sobre felicidade.⁸

Os estudos desta área se encaixam, na teoria broaden-and-build, dentro da psicologia positiva, que pode ser entendida como uma forma de ampliar nossa percepção sobre as circunstâncias e construir uma solução a partir desta nova visão.⁹ Entretanto, as pesquisas sobre gratidão costumam apresentar limitações metodológicas e os efeitos das intervenções são pequenos. Ainda assim, sua relação com uma boa saúde (demonstrada por pesquisas quantitativas) é incompleta quando não conseguimos entender como funciona essa relação, sendo necessários mais estudos qualitativos.¹⁰

Mas se exercitar voluntariamente a gratidão não é comprovadamente benéfico, por que trabalhar no seu exercício constante? Em 1 Tessalonicenses 5:18 está escrito: Em tudo/em todas as circunstâncias dai graças. Este versículo (além de muitos outros que falam sobre ações de graças no Novo Testamento) parece indicar não um momento episódico, mas uma disposição do coração. Como cristãos, somos chamados a isso, independentemente dos achados científicos. Para Paulo, quem confia em Deus tem razões suficientes para agradecer em qualquer situação, mesmo nas dificuldades.

Porém, hoje em dia nos encontramos numa época diferenciada: a das redes sociais. Como ser grato em um universo onde aparece na minha frente tudo o que os outros têm (e fazem) e que eu não posso ter (nem fazer)? Na comparação social você usa os outros para avaliar a si mesmo, dando lugar a uma tendência entendida como orientação de comparação social.¹¹ Curiosamente, aqueles com uma alta orientação de comparação social são os que mais usam as redes sociais. Já uma menor orientação de comparação social estaria associada com uma tendência disposicional de ser grato ao longo do tempo e em diversas situações. Parece que as pessoas mais gratas aceitam a si mesmos não pela negação das coisas ruins, mas pela escolha de aproveitar o que se tem.¹²



Exercitando o coração
As raízes da gratidão podem ser vistas em muitas tradições religiosas ao redor do mundo. Nas grandes religiões monoteístas, a gratidão permeia textos, ensinamentos e orações; a doutrina tradicional de Deus retrata este como o doador supremo. Depois de reconhecer os favores de Deus, os seres humanos respondem apropriadamente com um afeto grato, e por isso as pessoas religiosas buscam evocar e manter essa emoção de gratidão.¹³

Hoje em dia, a imediatez e a autoafirmação parecem nos impedir de ter esse tipo de disposição. Você não precisa agradecer por nada porque os outros não fazem mais do que sua obrigação; transferimos essa visão, inclusive, para Deus: “É claro que tenho cobertor e comida! Não é o mínimo que um Deus bom ofereceria?”.

Mas a gratidão se encaixa numa vida humilde. Apesar disso, essa atitude está longe de acompanhar o homem, como vemos ao longo da Bíblia¹⁴ (desde Gênesis, com Adão, Eva e seus descendentes, até os Evangelhos, com a parábola do fariseu e o publicano; o único leproso que voltou a agradecer Jesus e a traição de Judas). Em Levítico, Deus dá instruções explícitas sobre como oferecer as oferendas para que elas agradassem a Deus; curiosamente, a raíz latina para gratidão é gratus, que quer dizer “agradável”. Inclusive, todo o Antigo Testamento associa a gratidão com o perdão, porque ao receber os presentes queimados a Deus eles recebem a expiação dos pecados.¹⁵ A dinâmica ideal e efêmera entre Deus e os israelitas era a de pessoas humildes que recebem perdão pelos seus erros, incluindo a ingratidão.

Numa época de insatisfação, na qual ansiamos por sempre mais, a ciência da gratidão nos ajuda, como cristãos, a desenvolver a condição de ser grato através da prática de realizar atos de gratidão de maneira intencional e específica. Neste sentido, a ciência da psicologia positiva nos guia no como, mesmo que o efeito em nossa saúde não esteja totalmente comprovado, enquanto a teologia possibilita uma compreensão mais profunda, o porquê.¹⁶

Podemos praticar a gratidão direcionada para Deus escrevendo uma carta ou passeando.¹⁷ Por exemplo, você pode escrever um salmo começando com afirmações de gratidão pela bondade de Deus, incluindo as lutas que você está vivenciando e finalizando com ações de graças pela Sua fidelidade. Também, enquanto passeia, pode agradecer a Deus pelas cores e cheiros, refletindo sobre o que você ama nisso. Ainda, o Talmud instrui os judeus a recitar cem bênçãos por dia (acordar, lavar as mãos, comer etc.).¹⁸ E um exame diário jesuíta, realizado à tarde, consiste em parar e meditar sobre o que Deus fez no seu dia; sentindo Sua presença, lembrando o dia com gratidão e escolhendo algum momento sobre o qual refletir.¹⁹

Uma das práticas comuns é registrar aquilo pelo qual você é grato. Algumas dicas para aprimorá-la seriam agradecer pelas pessoas mais do que pelas coisas e subtrair bênçãos (como seria minha vida sem…?).²⁰ Também é importante prezar pela especificidade (por exemplo, não se mostrar apenas grato pelo amor de Deus, mas pelo ventilador num dia quente), e ter reflexões mais pessoais e profundas ao invés de fazer listas intermináveis.²¹ Dessa forma, consigo agradecer não apenas pelo meu marido, mas também pelo seu companheirismo que me ensina a ser uma melhor amiga dos outros.

Mas não vemos mais as coisas e as criaturas do mundo como dádivas sagradas.²² Assim, essa falta de sacralidade nas coisas ao redor (ainda nas mais simples!) prejudica nossa capacidade de agradecer, pois elas não são realmente vistas como bênçãos de Deus.

Celebrando as bênçãos
O exercício “Alegria sob demanda” foi elaborado por alguns pesquisadores que entendem que nosso estado padrão de alegria pode ser preestabelecido pela exposição repetida ao estado de gratidão.²³ Previamente, precisamos pensar sobre alguma lembrança pela qual somos gratos e nos perguntar o que sentimos e o que Deus pode estar nos comunicando com isso. Depois, compilamos uma lista de lembranças e passamos cinco minutos por dia refletindo sobre algumas delas, passando a fazer isso três vezes por dia durante 30 dias. Contudo, alguns especialistas entendem que fazer isso todo dia pode ser fatigante, sendo mais efetivo fazer isso apenas algumas vezes por semana.²⁴ Mas o compromisso e a constância continuam sendo essenciais. Como seu cérebro já estará sendo treinado para esse estado de contentamento, quando a mente começa a se distanciar, será capaz de retornar porque já estará sendo o mais habitual para você.²⁵

A celebração pode ser considerada como gratidão externalizada. A maioria das festas da Bíblia tinham o intuito de agradecer: pela libertação (Páscoa), pela provisão (festa das Semanas), pelo sustento no deserto (festa das Cabanas), etc. Todo o calendário litúrgico parece implicar uma constante gratidão pelas dádivas ao longo do ano. Entretanto, além do problema do desaparecimento dos rituais, outra dificuldade para a celebração é a falta de pausas. Como observa Byung Chul-Han:

Hoje em dia o tempo de celebração desapareceu totalmente em prol do tempo de trabalho, que acabou se tornando totalitário. A própria pausa se conserva implícita no tempo de trabalho. Ela serve apenas para nos recuperar do trabalho, para poder continuar funcionando.²⁶

A celebração pode ser considerada como gratidão externalizada.

Sem tempo para parar, refletir e apreciar as dádivas do céu, mergulhamos no caos da vida apenas para sobreviver. Na sobrevivência não há gratidão; apenas coisas pelas quais lutar para continuar vivendo. A falta de gratidão também é um problema espiritual. Eu quero mais e exijo mais. A gratidão parte do saber de que eu tenho tudo o que preciso (“o meu cálice transborda”²⁷), mesmo que isso não seja tudo o que (eu acho que) anelo.

A gratidão parte do saber de que eu tenho tudo o que preciso (“o meu cálice transborda”), mesmo que isso não seja tudo o que (eu acho que) anelo.

Essa gratidão também nos leva à generosidade. Nosso Deus, que se tornou um de nós, é um Deus de abundância. A própria encarnação é a generosidade de Deus.²⁸ Somos capazes de dar (e receber) porque nos foi dado tudo para sermos generosos: tudo provém dEle e tudo a Ele damos. A gratidão não anseia nada, o que subverte a cultura do consumo, da competição e da conquista.²⁹ Por isso, uma mentalidade em sintonia com a gratidão abre a porta para o contentamento e alimenta a generosidade, porque quanto mais somos conscientes do que temos recebido, mais conseguimos retorná-lo.

Nos bons tempos, o cristão é grato pelas bênçãos por causa da bondade de Deus; nas dificuldades, é grato pela pessoa e sacrifício de Jesus.³⁰ Desta forma, se considerarmos a virtude da gratidão como uma disposição para ser grato pela pessoa adequada no momento adequado, a gratidão cristã seria a disposição de sentir gratidão para com Deus pela dádiva do filho sobre todas as coisas e em todo momento; o mal restante é mantido na perspectiva do maior presente de Deus.³¹

Como os israelitas no Antigo Testamento, estamos em constante necessidade de perdão pela nossa ingratidão. Posso sim perguntar onde está Deus no sofrimento. Posso duvidar e me entristecer. Mas ele sempre responde: “Eu estou aqui: no teu café de manhã, no mergulho na praia. Estou aqui; na chamada do amigo, no abraço da avó. Estou aqui”.

Notas
1. Robert A. Emmons, Michael E. McCullough, The Psychology of Gratitude, 2004.
2. Mark McMinn, The Science of Virtue: why positive psychology matters to the church, 2017. A bibliografia consultada foi o documento original em inglês, mas o livro está disponível em português com o título assinalado no texto acima.
3. Robert A. Emmons, Michael E. McCullough e Jo-Ann Tsang, “The Grateful Disposition: A Conceptual and Empirical Topography”, Journal of Personality and Social Psychology, v. 82, n. 1, 2002, p. 112–127.
4. Robert A. Emmons, Jeffrey Froh, Rachel Rose, “Gratitude”, Positive psychological assessment: A handbook of models and measures, 2019, p. 317–332.
5. McMinn, 2017.
6. Noel A. Card, “Meta-analyses of the reliabilities of four measures of gratitude”, The Journal of Positive Psychology, v. 14, n. 5, 2019, p. 576–586.
7. McMinn, 2017.
8. Shawn Archor, O jeito Harvard de ser feliz, 2012, p. 106.
9. Giskin Day, Glenn Robert e Anne Marie Rafferty, “Gratitude in Health Care: A Meta-narrative Review”, Qualitative Health Research, v. 30, n. 14, 2020, p. 2303-2315.
10. Ibidem.
11. Caroline Winata e Esther Widhi Andangsari, “Dispositional Gratitude Social Comparison Orientation among Social Media Users”, Humaniora, v. 8, n. 3, 2017.
12. Ibidem.
13. Emmons e McCullough, 2004.
14. Ibidem.
15. Ibidem.
16. McMinn, 2017.
17. Ibidem.
18. Oren Jay Sofer, Your heart was made for this: contemplative practices for meeting a world in crisis with courage, 2023.
19. Ibidem.
20. McMinn, 2017.
21. Jason Marsh, “Tips for Keeping a Gratitude Journal”, Greater Good Magazine, 17 de novembro de 2011. Clique aqui para acessar.
22. Norman Wirzba, Nossa vida sagrada: como o cristianismo pode nos salvar da crise ambiental, 2023.
23. Jim Wilder e Michel Hendricks, The Other Half of Church: Christian Community, Brain Science, and Overcoming Spiritual Stagnation, 2020, p. 217.
24. Marsh, 2011.
25. Wilder e Hendricks, 2020, p. 219.
26. Byung-Chul Han, Sociedade do cansaço, 2017, p. 113.
27. Salmo 23:5b, ARA.
28. Stanley Hauerwas, The Character of Virtue: Letters to a Godson, 2018, p. 174.
29. Sofer, 2023.
30. Emmons e McCullough, 2004.
31. Ibidem.


Artigo publicado originalmente no site Unus Mundus. Reproduzido com permissão.

  • Ester Utrilla de Figueiredo, formada em psicologia (clínica) pela UCM (Universidad Complutense de Madrid) e mestre em psicologia na linha de avaliação e reabilitação neuropsicológica pela UFPR (com foco em espiritualidade e envelhecimento cognitivo). É professora e atua junto com seu marido na co-liderança do grupo local da ABC2-Curitiba, de Amigos de L"abri e do Ministério Cristianismo e Cultura da Igreja Presbiteriana Central da mesma cidade.

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