Opinião
- 16 de junho de 2017
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A Catolicidade da Igreja hoje
Por Thiago Machado Silva
Introdução
O termo “igreja católica” é usado em quase todos os documentos da Igreja cristã através da história. Porém, a catolicidade da igreja foi se perdendo no decorrer da história, e principalmente no Brasil, o termo é fácil e rapidamente ligado à Roma. Muitos cristãos, em diferentes lugares, se confundem ao ouvirem o termo “igreja católica” pois logo associam o termo com a Igreja Católica Romana, porém, não é bem esse o sentido de catolicidade que os antigos credos e confissões cristãs se referem. O termo original “católico” ou “catolicidade”, em termos gerais, traz o significado de universalidade ou totalidade; “de acordo com o todo” – portanto, quando lemos sobre a catolicidade da igreja cristã nos credos e confissões, eles estão se referindo à Igreja universal, e não à uma Igreja restrita à um país ou nacionalidade, como a Igreja Católica Apostólica Romana, por exemplo.
O termo “Igreja católica” foi extensivamente empregado pela igreja medieval, e mesmo a Reforma Protestante não destruiu sua legitimidade. Filipe Melanchton, o principal sucessor de Lutero, descreveu a confissão de Augsburgo como “um documento católico”, e afirmava que os luteranos seriam parte da “igreja católica”, no sentido da igreja universal.
A catolicidade da igreja, de acordo com Todd Billings, é bíblica e centrada em Cristo. Sendo assim, faz-se necessário resgatar a catolicidade da igreja e da fé cristã nos dias de hoje, se quisermos uma melhor compreensão do evangelho e da missão da igreja neste mundo. Mas o que significa dizer que a igreja cristã é católica? Será que os credos e confissões da igreja podem nos ajudar a compreender melhor o que significa dizer que a igreja de Cristo é católica? Neste breve texto, meu objetivo é simplesmente reunir o que os documentos antigos do cristianismo falam à respeito da catolicidade da igreja, e por fim, trazer algumas implicações práticas do que significa sermos considerados católicos, no sentido bíblico e reformado do termo.
I. A Catolicidade nos Documentos Antigos da Igreja Cristã
O Credo Apostólico, originado nos primórdios do cristianismo, afirma: “Creio... Na Santa Igreja Católica, na comunhão dos Santos”. Em Português, talvez pelo temor de ser confundido com a Igreja de Roma, o texto foi modificado para: “Creio... na Santa Igreja Universal...” O sentido, porém, é o mesmo: O Credo dos Apóstolos afirma a comunhão de todos os santos eleitos por Deus, em todos os lugares e épocas. Ou seja, a eleição divina gera a comunhão dos santos, e esta comunhão dos santos forma a catolicidade da igreja, é a igreja universal e não uma igreja nacional ou limitada por tempos ou épocas.
O Catecismo de Heidelberg de 1563 também compreendia a igreja de Jesus Cristo como a Igreja universal ou católica. Na pergunta 54 lê-se:
54. O que você crê sobre “a santa igreja universal de Cristo”?
R. Creio que o Filho de Deus reúne, protege e conserva, dentre todo o gênero humano, sua comunidade eleita para a vida eterna. Isto Ele fez por seu Espírito e sua Palavra, na unidade da verdadeira fé, desde o princípio do mundo até o fim. Creio que sou membro vivo dessa igreja, agora e para sempre.
De acordo com Heidelberg, o Filho de Deus, Jesus Cristo, se fez carne e veio habitar entre nós para reunir, proteger e conservar, dentre toda a humanidade, um povo eleito. Esse povo eleito é a igreja, formada por gente de toda tribo, língua e nação, por isso é chamada de igreja universal ou católica. Tal igreja católica é a igreja onde todo cristão eleito por Deus fará parte como membro, agora e por todo o sempre. Não há um fim para a igreja católica. A catolicidade da igreja fala de uma comunhão dos santos que não tem fim.
Seguindo a mesma linha de raciocínio, o artigo 27 da Confissão Belga também afirma que existe apenas uma única e santa igreja católica, onde apenas os crentes verdadeiros, regenerados pelo Espírito Santo e lavado pelo sangue de Cristo, fazem parte. Este igreja católica difere das igrejas locais, visíveis e imperfeitas:
Cremos e confessamos uma só igreja católica ou universal. Ela é uma santa congregação e assembleia dos verdadeiros crentes em Cristo, que esperam toda a sua salvação de Jesus Cristo, lavados pelo sangue dEle, santificados e selados pelo Espírito Santo.
Esta igreja existe desde o princípio do mundo e existirá até o fim. Pois, Cristo é um Rei eterno, que não pode estar sem súditos. Esta santa igreja é mantida por Deus contra o furor do mundo inteiro, mesmo que ela, às vezes, por algum tempo, seja muito pequena e na opinião dos homens, quase desaparecida. Assim, Deus guardou para si, na perigosa época de Acabe, sete mil homens, que não tinham dobrado os joelhos a Baal.
Esta santa igreja também não está situada, fixada ou limitada em certo lugar, ou ligada a certas pessoas, mas ela está espalhada e dispersa pelo mundo inteiro. Contudo, está integrada e unida, de coração e vontade, no mesmo Espírito, pelo poder da fé.
A Segunda Confissão Helvética, publicada em 1566, também afirma, no capítulo 17, a catolicidade da igreja de Cristo e condena toda tentativa de confinar ou restringir a igreja cristã em um lugar ou outro, como fizeram os Donatistas ou a Igreja de Roma:
E, visto que há sempre um só Deus e um só Mediador entre Deus e os homens, Jesus o Messias, e um só Pastor de todo o rebanho, uma só Cabeça deste corpo, enfim, um só Espirito, uma só salvação, uma só fé, um só testamento ou aliança, segue-se, necessariamente, que existe uma só Igreja. A Igreja Católica. Por isso chamamos “católica” e essa Igreja, porque é universal, e se espalha por todas as partes do mundo, estende-se por todos os tempos e não é limitada pelo tempo ou pelo espaço. Condenamos, portanto, os donatistas, que confinavam a Igreja a não sei que cantos da África, e não aprovamos o clero romano, que vive a propalar que só a Igreja de Roma é Católica.
Por último, a Confissão de Fé de Westminster, concluída em 1646, também afirma e declara a catolicidade da igreja como algo conceito fundamental da fé cristã, e esta Confissão também afirma que tanto a igreja invisível como a igreja visível, ambas são católicas, pois o Evangelho é católico e não está restrito à um lugar, tempo ou nação. No capítulo 25 lê-se:
I. A Igreja Católica ou Universal, que é invisível, consta do número total dos eleitos que já foram, dos que agora são e dos que ainda serão reunidos em um só corpo sob Cristo, seu cabeça; ela é a esposa, o corpo, a plenitude daquele que cumpre tudo em todas as coisas.
II. A Igreja Visível, que também é católica ou universal sob o Evangelho (não sendo restrita a uma nação, como antes sob a Lei) consta de todos aqueles que pelo mundo inteiro professam a verdadeira religião, juntamente com seus filhos; é o Reino do Senhor Jesus, a casa e família de Deus, fora da qual não há possibilidade ordinária de salvação.
É notável, portanto que, os principais documentos antigos da Igreja cristã (Credo Apostólico, Catecismo de Heidelberg, Confissão Belga, Segunda Confissão Helvética e a Confissão de Fé de Westminster) acreditavam, afirmavam e declaravam a catolicidade da igreja e da fé cristã, ou seja, a igreja cristã é uma comunhão de todos os verdadeiros cristãos em todos os lugares e épocas, no decorrer da história. Uma igreja que não está restrita à um determinado tempo, local ou denominação, mas que é gerada e preservada pelo evangelho, e sustentada pela graça de Deus por toda a eternidade.
Portanto, faz-se necessário resgatar a catolicidade da igreja e da fé cristã nos dias de hoje, se quisermos uma melhor compreensão do evangelho e da missão da igreja neste mundo. Os principais documentos se referiam à igreja católica, e hoje, nós não precisamos ter medo de referir à nossa fé cristã como sendo católica, contanto que não façamos confusão com a errônea concepção de catolicismo da Igreja de Roma. Mas porque esta compreensão é importante para nossa fé e nossa missão neste mundo?
II. A Catolicidade na Prática
Em 1888, o teólogo holandês Herman Bavinck, em um artigo sobre a catolicidade do cristianismo e da igreja , escreveu que catolicidade possui três significados: (1) Se refere à “Igreja como um todo unificado, em contraste com as congregações locais dispersas que compõem o todo e são incluídas na mesma. A igreja local pode, no entanto, legitimamente chamar-se católica porque ela se liga à Igreja universal”. (2) Catolicidade também se refere à unidade da igreja como abrangendo todos os crentes de todas as nações, em todos os tempos e lugares.” (3) E em terceiro lugar, a catolicidade se refere à “totalidade da experiência humana”. Ele diz que o termo catolicidade “perfeitamente possui todas as doutrinas relativas tanto as coisas visíveis quanto invisíveis que os seres humanos precisam saber; ela fornece cura para todos os tipos de pecado, seja do corpo ou da alma; ela produz todas as virtudes e boas obras, e partilha de todos os dons espirituais.” – Em outra palavras, Bavinck já falava do “evangelho todo, para o homem todo, para todos os homens”. É sobre isso que a catolicidade da igreja nos fala.
No entanto, vivemos em um mundo onde a nossa cultura contemporânea se desenvolve sem qualquer referencia à fé e a igreja cristã, e ao perdermos o conceito de catolicidade, passamos a viver neste mundo como se estivéssemos em uma “batalha individualista onde todos lutam por conta própria e à sua própria maneira, em vez de em uma campanha organizada… O conflito é caracterizado por uma luta contra os pecados individuais, enquanto a raiz de todos os pecados é muitas vezes negligenciada.” Em outras palavras, ao perdermos de vista a integralidade do evangelho e da comunhão dos santos, passamos a agir no mundo de maneira individual e egoísta.
Qual é o resultado disto? Bem, perdida a noção de catolicidade, e na tentativa de lidar com os problemas da igreja de maneira egoísta, surgem os cismas, seitas e as diversas fragmentações e divisões das igrejas evangélicas. Quando cada pessoa, dentro de nossas igrejas, vive e luta com as próprias armas, de maneira individual e egoísta, a unidade da doutrina e da igreja é quebrada. E quando isso acontece, afirma Bavinck, “os cristãos violentam a comunhão dos santos, privam-se dos dons do Espírito da graça, pelos quais os santos trabalharam para construir, se trancam em seu próprio círculo, promovem o orgulho espiritual, fortalecem Roma, e dão ocasião ao desprezo e zombaria mundial.”
Se o evangelho é a verdade absoluta para todas as áreas da vida, se ele provê cura para todos os tipos de pecados para o homem todo, em sua integralidade e totalidade, e se ele produz todas as virtudes e boas obras necessárias para a vida em sociedade, então, é urgente a necessidade de resgatar essa integralidade do evangelho, da igreja e da fé cristã.
Um dos legados que os reformadores nos deixaram ao enfatizar a catolicidade da igreja, é que a verdadeira igreja cristã não deve ser vista como uma instituição qualquer que pode ser banida da sociedade, mas sim, como uma organização instituída pelo próprio Deus, edificada por Cristo, fundamentada no evangelho e que luta ativamente contra o pecado e o domínio do mal em todas as esferas da sociedade. A catolicidade da igreja nos fala de uma igreja em seu caráter absoluto, possuindo a verdade absoluta, que precisa abandonar a passividade e se tornar ativa em seu engajamento no mundo criado por Deus. Afinal de contas, a fé no evangelho de Jesus Cristo, que também é católico ou universal é que traz cura para qualquer situação, em qualquer cultura e em qualquer tempo.
A correta compreensão da catolicidade da igreja e da fé cristã traz, portanto, implicações práticas para a igreja. Nós, como cristãos e membros da igreja de Cristo, temos o dever e a responsabilidade de nos engajarmos ativamente na sociedade, ao mesmo tempo em que lutamos contra o pecado e demonstramos como o evangelho possui a cura para o mal em qualquer esfera da sociedade. Diferente da Igreja de Roma, a Reforma Protestante nos encoraja a não nos posicionarmos contra a cultura, contra o estado, a sociedade, a arte e a ciência. Muito pelo contrário, ao enfatizar a catolicidade da igreja e da fé cristã, a Reforma nos encoraja a nos envolver no mundo, seguindo nossas vocações, a trabalhar e a agir no mundo em obediência ao mandatos cultural, social e espiritual. A fé cristã reformada não está restrita ou limitada pelo tempo ou pelo espaço, mas é católica e universal. E como bem disse Guilherme de Carvalho, essa catolicidade “não está no romanismo” mas sim “no evangelho e na universalidade de Jesus Cristo.”
Considerações Finais
Diante de tudo isto, é fundamental que resgatemos as vozes dos credos, dos reformadores e das confissões reformadas e busquemos uma compreensão mais abrangente e prática da catolicidade da igreja e da fé cristã. Eu creio que a igreja cristã, que é católica ou universal, é a esperança para o mundo. É a pura, santa e perfeita comunhão dos santos preservada e sustentada por toda a eternidade. É desta igreja que o mundo precisa. É deste evangelho integral que o mundo precisa; este evangelho que tem uma mensagem não apenas para a igreja, mas para todas as esferas da sociedade; este evangelho que tem algo a dizer não apenas aos cristãos, mas para toda a nossa cultura mergulhada no pecado.
Na catolicidade nós enxergamos a igreja como a “a multiforme sabedoria de Deus” (Cf.: Efésios 3:10), e quando compreendemos esta catolicidade tão enfatizada pelos credos e confissões reformadas da igreja, nos envolvemos no mundo criado por Deus, em todas as suas esferas, e demonstramos com palavras e ações que a cura para todo o mal no mundo está no evangelho de Jesus Cristo e na verdadeira igreja cristã, na comunhão dos santos. Por fim, nas palavras de Cirilo de Jerusalém (313-386 d.C): A Igreja [...] é chamada Católica porque se espalhou por todo o mundo, de um extremo ao outro da terra, e porque ela nunca cessa de ensinar em toda a sua plenitude cada doutrina que os homens devem ser levados a conhecer: e isso com respeito a coisas visíveis e invisíveis, no céu e na terra. Ela é chamada Católica também porque traz à obediência todo tipo de homens, governantes e governados, eruditos e simples, e porque é um tratamento e cura universal para cada tipo de pecado perpetrado, seja pela alma ou pelo corpo, e possui nela cada forma de virtude que se nomeia, seja isso expresso em atos ou obras ou em cada graça espiritual que se pode descrever.
Notas:
1. J. Todd Billings, “Catholic and Reformed: Rediscovering a Tradition,” Pro Ecclesia 23, no 2 (Março, 2014), p. 132 (Tradução nossa).
2. Herman Bavinck, “The Catholicity of Christianity and the Church,” trad. John Bolt. Calvin Theological Journal 27, no. 2 (1992).
3. Bavinck, “The Catholicity of Christianity and the Church”, p. 221.
4. Bavinck, “The Catholicity of Christianity and the Church”, p. 247-248.
5. Bavinck, “The Catholicity of Christianity and the Church”, p. 249.
6. Guilherme de Carvalho, “Fé em Busca de Catolicidade,” Acessado em 18 de Março de 2016. http://ultimato.com.br/sites/guilhermedecarvalho/2016/01/11/fe-em-busca-de-catolicidade.
7. Herman Bavinck, Reformed Dogmatics, org. John Bolt, vol. 3 (Grand Rapids, MI: Baker Academic, 2008), p. 282.
8. Cirilo de Jerusalém, “Epístolas Catequéticas” (XVIII, 23).
• Thiago Machado Silva
Introdução
O termo “igreja católica” é usado em quase todos os documentos da Igreja cristã através da história. Porém, a catolicidade da igreja foi se perdendo no decorrer da história, e principalmente no Brasil, o termo é fácil e rapidamente ligado à Roma. Muitos cristãos, em diferentes lugares, se confundem ao ouvirem o termo “igreja católica” pois logo associam o termo com a Igreja Católica Romana, porém, não é bem esse o sentido de catolicidade que os antigos credos e confissões cristãs se referem. O termo original “católico” ou “catolicidade”, em termos gerais, traz o significado de universalidade ou totalidade; “de acordo com o todo” – portanto, quando lemos sobre a catolicidade da igreja cristã nos credos e confissões, eles estão se referindo à Igreja universal, e não à uma Igreja restrita à um país ou nacionalidade, como a Igreja Católica Apostólica Romana, por exemplo.
O termo “Igreja católica” foi extensivamente empregado pela igreja medieval, e mesmo a Reforma Protestante não destruiu sua legitimidade. Filipe Melanchton, o principal sucessor de Lutero, descreveu a confissão de Augsburgo como “um documento católico”, e afirmava que os luteranos seriam parte da “igreja católica”, no sentido da igreja universal.
A catolicidade da igreja, de acordo com Todd Billings, é bíblica e centrada em Cristo. Sendo assim, faz-se necessário resgatar a catolicidade da igreja e da fé cristã nos dias de hoje, se quisermos uma melhor compreensão do evangelho e da missão da igreja neste mundo. Mas o que significa dizer que a igreja cristã é católica? Será que os credos e confissões da igreja podem nos ajudar a compreender melhor o que significa dizer que a igreja de Cristo é católica? Neste breve texto, meu objetivo é simplesmente reunir o que os documentos antigos do cristianismo falam à respeito da catolicidade da igreja, e por fim, trazer algumas implicações práticas do que significa sermos considerados católicos, no sentido bíblico e reformado do termo.
I. A Catolicidade nos Documentos Antigos da Igreja Cristã
O Credo Apostólico, originado nos primórdios do cristianismo, afirma: “Creio... Na Santa Igreja Católica, na comunhão dos Santos”. Em Português, talvez pelo temor de ser confundido com a Igreja de Roma, o texto foi modificado para: “Creio... na Santa Igreja Universal...” O sentido, porém, é o mesmo: O Credo dos Apóstolos afirma a comunhão de todos os santos eleitos por Deus, em todos os lugares e épocas. Ou seja, a eleição divina gera a comunhão dos santos, e esta comunhão dos santos forma a catolicidade da igreja, é a igreja universal e não uma igreja nacional ou limitada por tempos ou épocas.
O Catecismo de Heidelberg de 1563 também compreendia a igreja de Jesus Cristo como a Igreja universal ou católica. Na pergunta 54 lê-se:
54. O que você crê sobre “a santa igreja universal de Cristo”?
R. Creio que o Filho de Deus reúne, protege e conserva, dentre todo o gênero humano, sua comunidade eleita para a vida eterna. Isto Ele fez por seu Espírito e sua Palavra, na unidade da verdadeira fé, desde o princípio do mundo até o fim. Creio que sou membro vivo dessa igreja, agora e para sempre.
De acordo com Heidelberg, o Filho de Deus, Jesus Cristo, se fez carne e veio habitar entre nós para reunir, proteger e conservar, dentre toda a humanidade, um povo eleito. Esse povo eleito é a igreja, formada por gente de toda tribo, língua e nação, por isso é chamada de igreja universal ou católica. Tal igreja católica é a igreja onde todo cristão eleito por Deus fará parte como membro, agora e por todo o sempre. Não há um fim para a igreja católica. A catolicidade da igreja fala de uma comunhão dos santos que não tem fim.
Seguindo a mesma linha de raciocínio, o artigo 27 da Confissão Belga também afirma que existe apenas uma única e santa igreja católica, onde apenas os crentes verdadeiros, regenerados pelo Espírito Santo e lavado pelo sangue de Cristo, fazem parte. Este igreja católica difere das igrejas locais, visíveis e imperfeitas:
Cremos e confessamos uma só igreja católica ou universal. Ela é uma santa congregação e assembleia dos verdadeiros crentes em Cristo, que esperam toda a sua salvação de Jesus Cristo, lavados pelo sangue dEle, santificados e selados pelo Espírito Santo.
Esta igreja existe desde o princípio do mundo e existirá até o fim. Pois, Cristo é um Rei eterno, que não pode estar sem súditos. Esta santa igreja é mantida por Deus contra o furor do mundo inteiro, mesmo que ela, às vezes, por algum tempo, seja muito pequena e na opinião dos homens, quase desaparecida. Assim, Deus guardou para si, na perigosa época de Acabe, sete mil homens, que não tinham dobrado os joelhos a Baal.
Esta santa igreja também não está situada, fixada ou limitada em certo lugar, ou ligada a certas pessoas, mas ela está espalhada e dispersa pelo mundo inteiro. Contudo, está integrada e unida, de coração e vontade, no mesmo Espírito, pelo poder da fé.
A Segunda Confissão Helvética, publicada em 1566, também afirma, no capítulo 17, a catolicidade da igreja de Cristo e condena toda tentativa de confinar ou restringir a igreja cristã em um lugar ou outro, como fizeram os Donatistas ou a Igreja de Roma:
E, visto que há sempre um só Deus e um só Mediador entre Deus e os homens, Jesus o Messias, e um só Pastor de todo o rebanho, uma só Cabeça deste corpo, enfim, um só Espirito, uma só salvação, uma só fé, um só testamento ou aliança, segue-se, necessariamente, que existe uma só Igreja. A Igreja Católica. Por isso chamamos “católica” e essa Igreja, porque é universal, e se espalha por todas as partes do mundo, estende-se por todos os tempos e não é limitada pelo tempo ou pelo espaço. Condenamos, portanto, os donatistas, que confinavam a Igreja a não sei que cantos da África, e não aprovamos o clero romano, que vive a propalar que só a Igreja de Roma é Católica.
Por último, a Confissão de Fé de Westminster, concluída em 1646, também afirma e declara a catolicidade da igreja como algo conceito fundamental da fé cristã, e esta Confissão também afirma que tanto a igreja invisível como a igreja visível, ambas são católicas, pois o Evangelho é católico e não está restrito à um lugar, tempo ou nação. No capítulo 25 lê-se:
I. A Igreja Católica ou Universal, que é invisível, consta do número total dos eleitos que já foram, dos que agora são e dos que ainda serão reunidos em um só corpo sob Cristo, seu cabeça; ela é a esposa, o corpo, a plenitude daquele que cumpre tudo em todas as coisas.
II. A Igreja Visível, que também é católica ou universal sob o Evangelho (não sendo restrita a uma nação, como antes sob a Lei) consta de todos aqueles que pelo mundo inteiro professam a verdadeira religião, juntamente com seus filhos; é o Reino do Senhor Jesus, a casa e família de Deus, fora da qual não há possibilidade ordinária de salvação.
É notável, portanto que, os principais documentos antigos da Igreja cristã (Credo Apostólico, Catecismo de Heidelberg, Confissão Belga, Segunda Confissão Helvética e a Confissão de Fé de Westminster) acreditavam, afirmavam e declaravam a catolicidade da igreja e da fé cristã, ou seja, a igreja cristã é uma comunhão de todos os verdadeiros cristãos em todos os lugares e épocas, no decorrer da história. Uma igreja que não está restrita à um determinado tempo, local ou denominação, mas que é gerada e preservada pelo evangelho, e sustentada pela graça de Deus por toda a eternidade.
Portanto, faz-se necessário resgatar a catolicidade da igreja e da fé cristã nos dias de hoje, se quisermos uma melhor compreensão do evangelho e da missão da igreja neste mundo. Os principais documentos se referiam à igreja católica, e hoje, nós não precisamos ter medo de referir à nossa fé cristã como sendo católica, contanto que não façamos confusão com a errônea concepção de catolicismo da Igreja de Roma. Mas porque esta compreensão é importante para nossa fé e nossa missão neste mundo?
II. A Catolicidade na Prática
Em 1888, o teólogo holandês Herman Bavinck, em um artigo sobre a catolicidade do cristianismo e da igreja , escreveu que catolicidade possui três significados: (1) Se refere à “Igreja como um todo unificado, em contraste com as congregações locais dispersas que compõem o todo e são incluídas na mesma. A igreja local pode, no entanto, legitimamente chamar-se católica porque ela se liga à Igreja universal”. (2) Catolicidade também se refere à unidade da igreja como abrangendo todos os crentes de todas as nações, em todos os tempos e lugares.” (3) E em terceiro lugar, a catolicidade se refere à “totalidade da experiência humana”. Ele diz que o termo catolicidade “perfeitamente possui todas as doutrinas relativas tanto as coisas visíveis quanto invisíveis que os seres humanos precisam saber; ela fornece cura para todos os tipos de pecado, seja do corpo ou da alma; ela produz todas as virtudes e boas obras, e partilha de todos os dons espirituais.” – Em outra palavras, Bavinck já falava do “evangelho todo, para o homem todo, para todos os homens”. É sobre isso que a catolicidade da igreja nos fala.
No entanto, vivemos em um mundo onde a nossa cultura contemporânea se desenvolve sem qualquer referencia à fé e a igreja cristã, e ao perdermos o conceito de catolicidade, passamos a viver neste mundo como se estivéssemos em uma “batalha individualista onde todos lutam por conta própria e à sua própria maneira, em vez de em uma campanha organizada… O conflito é caracterizado por uma luta contra os pecados individuais, enquanto a raiz de todos os pecados é muitas vezes negligenciada.” Em outras palavras, ao perdermos de vista a integralidade do evangelho e da comunhão dos santos, passamos a agir no mundo de maneira individual e egoísta.
Qual é o resultado disto? Bem, perdida a noção de catolicidade, e na tentativa de lidar com os problemas da igreja de maneira egoísta, surgem os cismas, seitas e as diversas fragmentações e divisões das igrejas evangélicas. Quando cada pessoa, dentro de nossas igrejas, vive e luta com as próprias armas, de maneira individual e egoísta, a unidade da doutrina e da igreja é quebrada. E quando isso acontece, afirma Bavinck, “os cristãos violentam a comunhão dos santos, privam-se dos dons do Espírito da graça, pelos quais os santos trabalharam para construir, se trancam em seu próprio círculo, promovem o orgulho espiritual, fortalecem Roma, e dão ocasião ao desprezo e zombaria mundial.”
Se o evangelho é a verdade absoluta para todas as áreas da vida, se ele provê cura para todos os tipos de pecados para o homem todo, em sua integralidade e totalidade, e se ele produz todas as virtudes e boas obras necessárias para a vida em sociedade, então, é urgente a necessidade de resgatar essa integralidade do evangelho, da igreja e da fé cristã.
Um dos legados que os reformadores nos deixaram ao enfatizar a catolicidade da igreja, é que a verdadeira igreja cristã não deve ser vista como uma instituição qualquer que pode ser banida da sociedade, mas sim, como uma organização instituída pelo próprio Deus, edificada por Cristo, fundamentada no evangelho e que luta ativamente contra o pecado e o domínio do mal em todas as esferas da sociedade. A catolicidade da igreja nos fala de uma igreja em seu caráter absoluto, possuindo a verdade absoluta, que precisa abandonar a passividade e se tornar ativa em seu engajamento no mundo criado por Deus. Afinal de contas, a fé no evangelho de Jesus Cristo, que também é católico ou universal é que traz cura para qualquer situação, em qualquer cultura e em qualquer tempo.
A correta compreensão da catolicidade da igreja e da fé cristã traz, portanto, implicações práticas para a igreja. Nós, como cristãos e membros da igreja de Cristo, temos o dever e a responsabilidade de nos engajarmos ativamente na sociedade, ao mesmo tempo em que lutamos contra o pecado e demonstramos como o evangelho possui a cura para o mal em qualquer esfera da sociedade. Diferente da Igreja de Roma, a Reforma Protestante nos encoraja a não nos posicionarmos contra a cultura, contra o estado, a sociedade, a arte e a ciência. Muito pelo contrário, ao enfatizar a catolicidade da igreja e da fé cristã, a Reforma nos encoraja a nos envolver no mundo, seguindo nossas vocações, a trabalhar e a agir no mundo em obediência ao mandatos cultural, social e espiritual. A fé cristã reformada não está restrita ou limitada pelo tempo ou pelo espaço, mas é católica e universal. E como bem disse Guilherme de Carvalho, essa catolicidade “não está no romanismo” mas sim “no evangelho e na universalidade de Jesus Cristo.”
Considerações Finais
Diante de tudo isto, é fundamental que resgatemos as vozes dos credos, dos reformadores e das confissões reformadas e busquemos uma compreensão mais abrangente e prática da catolicidade da igreja e da fé cristã. Eu creio que a igreja cristã, que é católica ou universal, é a esperança para o mundo. É a pura, santa e perfeita comunhão dos santos preservada e sustentada por toda a eternidade. É desta igreja que o mundo precisa. É deste evangelho integral que o mundo precisa; este evangelho que tem uma mensagem não apenas para a igreja, mas para todas as esferas da sociedade; este evangelho que tem algo a dizer não apenas aos cristãos, mas para toda a nossa cultura mergulhada no pecado.
Na catolicidade nós enxergamos a igreja como a “a multiforme sabedoria de Deus” (Cf.: Efésios 3:10), e quando compreendemos esta catolicidade tão enfatizada pelos credos e confissões reformadas da igreja, nos envolvemos no mundo criado por Deus, em todas as suas esferas, e demonstramos com palavras e ações que a cura para todo o mal no mundo está no evangelho de Jesus Cristo e na verdadeira igreja cristã, na comunhão dos santos. Por fim, nas palavras de Cirilo de Jerusalém (313-386 d.C): A Igreja [...] é chamada Católica porque se espalhou por todo o mundo, de um extremo ao outro da terra, e porque ela nunca cessa de ensinar em toda a sua plenitude cada doutrina que os homens devem ser levados a conhecer: e isso com respeito a coisas visíveis e invisíveis, no céu e na terra. Ela é chamada Católica também porque traz à obediência todo tipo de homens, governantes e governados, eruditos e simples, e porque é um tratamento e cura universal para cada tipo de pecado perpetrado, seja pela alma ou pelo corpo, e possui nela cada forma de virtude que se nomeia, seja isso expresso em atos ou obras ou em cada graça espiritual que se pode descrever.
Notas:
1. J. Todd Billings, “Catholic and Reformed: Rediscovering a Tradition,” Pro Ecclesia 23, no 2 (Março, 2014), p. 132 (Tradução nossa).
2. Herman Bavinck, “The Catholicity of Christianity and the Church,” trad. John Bolt. Calvin Theological Journal 27, no. 2 (1992).
3. Bavinck, “The Catholicity of Christianity and the Church”, p. 221.
4. Bavinck, “The Catholicity of Christianity and the Church”, p. 247-248.
5. Bavinck, “The Catholicity of Christianity and the Church”, p. 249.
6. Guilherme de Carvalho, “Fé em Busca de Catolicidade,” Acessado em 18 de Março de 2016. http://ultimato.com.br/sites/guilhermedecarvalho/2016/01/11/fe-em-busca-de-catolicidade.
7. Herman Bavinck, Reformed Dogmatics, org. John Bolt, vol. 3 (Grand Rapids, MI: Baker Academic, 2008), p. 282.
8. Cirilo de Jerusalém, “Epístolas Catequéticas” (XVIII, 23).
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