Opinião
- 02 de julho de 2012
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A Bíblia na Rio + 20
A Bíblia é uma coletânea de fatos e palavras que, conforme a fé das comunidades judaicas e cristãs, contêm revelação do amor de Deus pela humanidade. Porém, o cenário ideal do jardim onde o homem habita só foi chamado de “paraíso” nas versões medievais. Originalmente, nem o mundo foi criado por acaso, nem o homem. Este é um ser criado em permanente busca de identidade e sentido, mas a existência humana não é solitária, nem independente. O homem não está só, faz parte e está sujeito relacionalmente com o restante da criação. O resumo aponta: “ele não existe sem as demais criaturas”. Adam é filho de “adamah”. Filho da terra (Gn 2,7). Um rio brota do jardim para irrigar o jardim, o Éden é paráfrase da terra toda. A observação desse Universo não confirma o determinismo pretendido em nossos dias. E nem mesmo o pragmatismo pós-tecnológico.
A narrativa bíblica não levanta questionamentos sobre a existência do ser Criador, sua origem e razões que o levaram a criar o cosmo. Leis naturais rígidas não conferem com o cenário da criação, onde o pressuposto do Iluminismo é que cada astro, cada estrela, cada componente, funciona como um relógio, uma máquina movida por um combustível inesgotável e perpétuo. Alterado o projeto original pelo homem (Gn 3,17), que ousa interferir na originalidade da criação, este passará a ser juiz do bem e do mal. Arcará com as consequências: “E Yahweh-Deus expulsou o homem do jardim onde fora colocado. Baniu-o e colocou anjos como seguranças para impedi-lo de entrar”. Podemos compreender, portanto, que os autores do grande poema da criação já entendiam as intenções do homem de corromper a terra, enquanto corrompia-se a si mesmo pela ganância.
Com Andrés Queiruga, devo convencer-me de que as aparências, os significados do momento atual, inundado de informações científicas e teorias sobre o planeta Terra, devem ser reavaliados. A cosmovisão bíblica primitiva foi adulterada ao extremo, e nós somos os agentes racionais que dela nos distanciamos e, quando olhamos para traz, embora exista considerável diversidade de manifestações míticas, culturas conservadas dos muitos povos que interpretaram suas origens nos muitos lugares deste Planeta. Não vejo porque não ouvirmos as vozes que vêm de lá. A essência de um mito não é regida pela razão, mas pela consciência da importância do sagrado, o homem e o universo. Como utopia teológica, o Reino de Deus, consequentemente, e a justiça ambiental, formam moldura e quadro para um mundo novo possível.
Os sentimentos neles contidos, porém, como se encontra, refletem uma comunhão que abrange tanto os seres humanos como os demais seres da natureza. Tanto animados como inanimados. Natureza e mundo humano se fundem e se inter-relacionam. Humanos se vêem como humanos, animais se vêem como animais? Não. E os elementos como a Água e a Terra, como se vêem? A Criação geme em dores de parto até agora (Rm 8,22). “Se geme, porque é violentada, podemos ouvir os seus gemidos?”, pergunta Walter Saas.
É exacerbada a importância da natureza, quando desviada para o bem-estar artificial. Turismo ecológico, por exemplo. Por que necessitamos de celulares multifuncionais, capazes de fotografar belezas incríveis no meio da floresta, se eles não atendem às necessidades dos milhões que padecem da fome, das endemias, da exclusão? Lemos informes científicos populares, e só vemos deslumbramento sobre a era pós-tecnológica. O Ocidente, campeão das novas tecnologias, prossegue na globalização da miséria enquanto sustenta a acumulação de bens como panacéia de salvação. E não poupa o planeta, depreda-o enquanto vai esgotando suas riquezas naturais, como a água. Privilegiados no uso das tecnologias para o conforto e bem-estar existentes são apenas 25 %, provavelmente, dos 7 bilhões de habitantes do planeta. O caminho certo é, evidentemente, também reduzir ao máximo a emissão desses gases poluentes, substituindo os motores movidos a petróleo por outros, movidos a eletricidade. Não acreditamos que alguém, em sã consciência, se oponha a isso, em acordo com Ferreira Gullar.
A dificuldade, portanto, não está aí e, sim, na substituição dos seres vivos por máquinas poluidoras. Leiamos, “substituição do ser humano pelos sonhos de consumo deste século”. Oferecem bem-estar localizado para ricos, tecnologias eletrônicas avançadas, saúde e medicina de alto preço, educação para postos de trabalho privilegiados, lazer de alto custo e alcance territorial. Porém, há 5,5 bilhões de deserdados ameaçados pela barbárie tecnocrática e 2 bilhões morrem de fome e brevemente perecerão de sede se a contaminação ou esgotamento de mananciais formados através de milhões de anos prosseguirem no ritmo atual.
O capitalismo alcançou a água, mas cooptou, como sempre, na história do mundo, a religião que defende o lucro e resultados financeiros. Tudo é produto de mercado. Tudo se vende. Tudo é feito mercadoria. Tudo é consumível. Faz-se muito dinheiro também com a religião, como se a parábola das moedas escondidas resumisse o Reino de Deus. Não é a toa que a recente força evangélica pentecostal que mais influencia a religião histórica dedica-se tão intensamente à mídia e ao potencial mercadológico das multidões. A massificação religiosa dá lucro.
É preciso olhar para o chão, portanto. O Planeta se torna cada vez mais inviável. O atual modelo de desenvolvimento, apoiado no sistema liberal capitalista e na orientação que se dá aos conhecimentos científicos, aponta para uma determinada visão de homem, da natureza e da razão. Desenvolvimento sem sustentação da biodiversidade. Em última instância, a causa primeira está no antropocentrismo ocidental, certamente ajudado por uma inadequada interpretação da tradição judaico-cristã, que tende a fazer do ser humano mais um “dominador” e explorador da Criação, do que seu “guardião”. Seria melhor dizer “jardineiro”. Enquanto isso, justifica-se a interpretação espiritualista abstrata como uma “queda de braço” com Deus. O homem perde, mas se vinga destruindo a criação (cf. início).
A questão, portanto, não pertence ao mundo da técnica, mas ao mundo da ética. Estamos diante de uma questão antropológica. Bíblica? Certamente, porque há uma tradição libertária, do homem e da terra, ali refletida, que nos acompanha desde quatro milênios. A sobrevivência do homem está na pauta das lutas ecológico-ambientais. Nas palavras de Edgar Morin: “urge uma nova Antropologia, bem como uma nova Teologia, capaz de restaurar o ser humano no conjunto da obra da Criação”. Uma nova racionalidade que integre as ciências, inclusive a espiritualidade inteligente voltada para o planeta, e outros tipos de razão, é bem-vinda. A Humanidade e a Criação total agradecerão. A cordialidade, o cuidado com o ser humano total e o mundo criado, a compreensão ecumênica da salvação do planeta, estão na pauta da espiritualidade ecológica em absoluta prioridade.
É pastor emérito da Igreja Presbiteriana Unida do Brasil e autor de livros como “Pedagogia da Ganância" (2013) e "O Dragão que Habita em Nós” (2010).
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