Opinião
- 02 de abril de 2018
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A Bíblia é traduzida dos originais. Mas o que significa isto?
Por Vilson Scholz
Em julho de 2017, uma revista de circulação nacional publicou uma interessante matéria sobre a Bíblia, falando da sua popularidade no Brasil. Na mesma matéria, deu-se destaque a uma tradução do Antigo Testamento a partir da Septuaginta, feita por um erudito de Portugal. Essa tradução foi descrita como “a Bíblia mais completa em português com tradução direta dos originais”. Na continuação, a mesma publicação afirma que “boa parte das traduções [bíblicas] hoje usadas pelos brasileiros passou antes pelo espanhol, francês ou latim”. Diante destas informações, cabe perguntar: Será que a nossa Bíblia em português passou antes pelo espanhol ou francês? E uma tradução do Antigo Testamento a partir da Septuaginta pode ser descrita como tradução direta dos originais? O que se entende por “originais”?
Quando afirmamos que a Bíblia é traduzida dos originais, temos um pequeno problema, porque “original” pode ter diferentes significados. “Original” pode significar o “escrito primeiro de que se fizeram cópias”. Assim, por exemplo, existem hoje cópias digitalizadas e disponíveis na Internet de alguns originais de obras de Machado de Assis. Neste caso, os originais dessas obras são as folhas escritas à mão, guardadas na sede da Academia Brasileira de Letras, no Rio de Janeiro. Existe também, hoje, uma cópia digitalizada da primeira edição impressa do primeiro Novo Testamento completo em português, de 1681, em tradução de João Ferreira Annes de Almeida. Neste caso, como não temos as folhas de papel em que Almeida escreveu à mão, o original dessa tradução é um dos exemplares impressos que se encontra na Biblioteca Nacional de Portugal. Pode-se obter uma cópia digitalizada desse original aqui.
Aplicando isto à Bíblia, é preciso dizer que não temos à disposição os “originais” no mesmo sentido em que temos os originais de Machado de Assis e de Almeida. Os documentos originais da Bíblia não foram preservados. Por exemplo, as folhas de papiro em que Tércio escreveu a carta aos Romanos, ditada pelo apóstolo Paulo, não foram preservadas. A nós chegaram apenas cópias feitas de outras cópias, hoje preservadas em bibliotecas e museus.
Mas a palavra “original” pode significar também o “texto a partir do qual uma tradução é feita”. Se um texto foi escrito em inglês e é traduzido ao português, o original é o texto em inglês. A Bíblia foi escrita em hebraico, aramaico e grego. Como temos os textos nessas línguas originais, ainda que preservados apenas em cópias, podemos dizer que a Bíblia é traduzida dos originais, no sentido de “traduzida dos textos originais”. Os livros do Antigo Testamento em hebraico estão na Bíblia Hebraica e os livros do Novo Testamento estão no Novo Testamento Grego, dois livros publicados pela Sociedade Bíblica do Brasil.
A Bíblia Hebraica reproduz o texto hebraico (e aramaico) do mais antigo manuscrito completo que temos, o Códice de Leningrado. Esta cópia em hebraico foi feita em 1008 d. C. e se encontra numa biblioteca da cidade de São Petersburgo, na Rússia. Mas este documento pode ser acessado online, aqui. Existem, porém, manuscritos hebraicos mais antigos, como os documentos de Qumran, que foram descobertos a partir de 1947, além das versões antigas, como a Septuaginta e a Vulgata, que foram feitas a partir de cópias hebraicas conhecidas naquele tempo. Se outros manuscritos hebraicos e as versões antigas trazem um texto um pouco diferente do Códice de Leningrado, a Bíblia Hebraica faz esse registro em notas de rodapé. Assim, ao se traduzir o Antigo Testamento, são levadas em conta também as notas que aparecem ao pé da página da Bíblia Hebraica. Em outras palavras, antes de traduzir é preciso fazer a crítica textual.
O Novo Testamento Grego é uma edição eclética, no sentido de que resulta da comparação e combinação entre os mais importantes manuscritos gregos de que dispomos. Assim, no caso do Novo Testamento Grego, a crítica textual já foi feita. E onde estão os manuscritos gregos que são usados para editar o Novo Testamento Grego? Estão espalhados pelo mundo, em bibliotecas e museus, embora existam cópias de todos eles na cidade de Münster, na Alemanha. Um desses manuscritos, de número 2437, produzido no século 12 e contendo os quatro Evangelhos, se encontra na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro e é o único que está no Brasil. Uma lista completa de manuscritos gregos aparece na Introdução ao Novo Testamento Grego. Muitos deles, como, por exemplo, o Códice Sinaítico, foram digitalizados e podem ser acessados neste link.
Portanto, a Bíblia é traduzida dos originais? Sim, ela é traduzida dos textos originais, embora os documentos originais não mais existam. Diante disto, não é correto dizer que boa parte das traduções bíblicas hoje usadas pelos brasileiros passou antes pelo espanhol, francês ou latim. A maior parte das traduções bíblicas vem diretamente dos textos originais em hebraico, aramaico e grego. Quanto às traduções publicadas pela Sociedade Bíblica do Brasil, todas são feitas a partir dos originais e são fiéis a esses originais.
E que dizer de uma tradução do Antigo Testamento feita a partir da Septuaginta? Seria esta uma “tradução direta dos originais”? A Septuaginta é uma tradução grega do Antigo Testamento, e traduzir da Septuaginta é fazer uma tradução a partir de outra tradução. Nada impeça que se traduza a Septuaginta ao português. Mas será uma tradução feita de outra tradução. Melhor mesmo é sempre traduzir das línguas originais, o que, no caso da Bíblia, é perfeitamente possível.
2018: Ano da Bíblia
Maior Museu da Bíblia do mundo é inaugurado na capital dos Estados Unidos
A Bíblia Toda, o Ano Todo - John Stott
Artigo publicado na edição 257 da Revista A Bíblia no Brasil, da Sociedade Bíblica do Brasil, de Novembro/2017 a Janeiro de 2018.
Em julho de 2017, uma revista de circulação nacional publicou uma interessante matéria sobre a Bíblia, falando da sua popularidade no Brasil. Na mesma matéria, deu-se destaque a uma tradução do Antigo Testamento a partir da Septuaginta, feita por um erudito de Portugal. Essa tradução foi descrita como “a Bíblia mais completa em português com tradução direta dos originais”. Na continuação, a mesma publicação afirma que “boa parte das traduções [bíblicas] hoje usadas pelos brasileiros passou antes pelo espanhol, francês ou latim”. Diante destas informações, cabe perguntar: Será que a nossa Bíblia em português passou antes pelo espanhol ou francês? E uma tradução do Antigo Testamento a partir da Septuaginta pode ser descrita como tradução direta dos originais? O que se entende por “originais”?
Quando afirmamos que a Bíblia é traduzida dos originais, temos um pequeno problema, porque “original” pode ter diferentes significados. “Original” pode significar o “escrito primeiro de que se fizeram cópias”. Assim, por exemplo, existem hoje cópias digitalizadas e disponíveis na Internet de alguns originais de obras de Machado de Assis. Neste caso, os originais dessas obras são as folhas escritas à mão, guardadas na sede da Academia Brasileira de Letras, no Rio de Janeiro. Existe também, hoje, uma cópia digitalizada da primeira edição impressa do primeiro Novo Testamento completo em português, de 1681, em tradução de João Ferreira Annes de Almeida. Neste caso, como não temos as folhas de papel em que Almeida escreveu à mão, o original dessa tradução é um dos exemplares impressos que se encontra na Biblioteca Nacional de Portugal. Pode-se obter uma cópia digitalizada desse original aqui.
Aplicando isto à Bíblia, é preciso dizer que não temos à disposição os “originais” no mesmo sentido em que temos os originais de Machado de Assis e de Almeida. Os documentos originais da Bíblia não foram preservados. Por exemplo, as folhas de papiro em que Tércio escreveu a carta aos Romanos, ditada pelo apóstolo Paulo, não foram preservadas. A nós chegaram apenas cópias feitas de outras cópias, hoje preservadas em bibliotecas e museus.
Mas a palavra “original” pode significar também o “texto a partir do qual uma tradução é feita”. Se um texto foi escrito em inglês e é traduzido ao português, o original é o texto em inglês. A Bíblia foi escrita em hebraico, aramaico e grego. Como temos os textos nessas línguas originais, ainda que preservados apenas em cópias, podemos dizer que a Bíblia é traduzida dos originais, no sentido de “traduzida dos textos originais”. Os livros do Antigo Testamento em hebraico estão na Bíblia Hebraica e os livros do Novo Testamento estão no Novo Testamento Grego, dois livros publicados pela Sociedade Bíblica do Brasil.
A Bíblia Hebraica reproduz o texto hebraico (e aramaico) do mais antigo manuscrito completo que temos, o Códice de Leningrado. Esta cópia em hebraico foi feita em 1008 d. C. e se encontra numa biblioteca da cidade de São Petersburgo, na Rússia. Mas este documento pode ser acessado online, aqui. Existem, porém, manuscritos hebraicos mais antigos, como os documentos de Qumran, que foram descobertos a partir de 1947, além das versões antigas, como a Septuaginta e a Vulgata, que foram feitas a partir de cópias hebraicas conhecidas naquele tempo. Se outros manuscritos hebraicos e as versões antigas trazem um texto um pouco diferente do Códice de Leningrado, a Bíblia Hebraica faz esse registro em notas de rodapé. Assim, ao se traduzir o Antigo Testamento, são levadas em conta também as notas que aparecem ao pé da página da Bíblia Hebraica. Em outras palavras, antes de traduzir é preciso fazer a crítica textual.
O Novo Testamento Grego é uma edição eclética, no sentido de que resulta da comparação e combinação entre os mais importantes manuscritos gregos de que dispomos. Assim, no caso do Novo Testamento Grego, a crítica textual já foi feita. E onde estão os manuscritos gregos que são usados para editar o Novo Testamento Grego? Estão espalhados pelo mundo, em bibliotecas e museus, embora existam cópias de todos eles na cidade de Münster, na Alemanha. Um desses manuscritos, de número 2437, produzido no século 12 e contendo os quatro Evangelhos, se encontra na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro e é o único que está no Brasil. Uma lista completa de manuscritos gregos aparece na Introdução ao Novo Testamento Grego. Muitos deles, como, por exemplo, o Códice Sinaítico, foram digitalizados e podem ser acessados neste link.
Portanto, a Bíblia é traduzida dos originais? Sim, ela é traduzida dos textos originais, embora os documentos originais não mais existam. Diante disto, não é correto dizer que boa parte das traduções bíblicas hoje usadas pelos brasileiros passou antes pelo espanhol, francês ou latim. A maior parte das traduções bíblicas vem diretamente dos textos originais em hebraico, aramaico e grego. Quanto às traduções publicadas pela Sociedade Bíblica do Brasil, todas são feitas a partir dos originais e são fiéis a esses originais.
E que dizer de uma tradução do Antigo Testamento feita a partir da Septuaginta? Seria esta uma “tradução direta dos originais”? A Septuaginta é uma tradução grega do Antigo Testamento, e traduzir da Septuaginta é fazer uma tradução a partir de outra tradução. Nada impeça que se traduza a Septuaginta ao português. Mas será uma tradução feita de outra tradução. Melhor mesmo é sempre traduzir das línguas originais, o que, no caso da Bíblia, é perfeitamente possível.
- Vilson Scholz é pastor e professor de Teologia Exegética e tem mestrado e doutorado na área do Novo Testamento. Consultor de Tradução da Sociedade Bíblica do Brasil, é professor da Universidade Luterana do Brasil, em Canoas (RS). É tradutor do Novo Testamento Interlinear Grego-Português (SBB) e autor de Princípios de Interpretação Bíblica (Editora da Ulbra).
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Artigo publicado na edição 257 da Revista A Bíblia no Brasil, da Sociedade Bíblica do Brasil, de Novembro/2017 a Janeiro de 2018.
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