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Opinião

A Bíblia e a luta contra o racismo hoje

Por Quéfren de Moura
 
Se há uma lição que devemos reter da Bíblia, ela é o amor ao próximo. Esse amor, que é a essência do próprio Deus, é o fundamento, a resposta, o princípio, o valor eterno e a mensagem mais importante desse livro.
 
Nas periferias e favelas, nos bairros pobres das cidades, nas regiões desamparadas dos grandes centros urbanos, dentro dos presídios, nas ocupações, a realidade atual é dura. E as principais vítimas disso são, indubitavelmente, os negros. De acordo com o Atlas da Violência, 75,5% das pessoas assassinadas no nosso país são negras. Além disso, pessoas negras são 2,5 vezes mais vítimas de armas de fogo do que pessoas brancas. Segundo dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, 61% das mulheres vítimas de feminicídio são negras. 75,4% das pessoas mortas em intervenções policiais entre 2017 e 2018 eram negras. Policiais negros morrem mais do que policiais não negros, mesmo sendo 34% da corporação. E, com base em informações da ONG Rio pela Paz, entre 2016 e 2019, 91% das crianças mortas por balas perdidas no Rio de Janeiro eram negras.
 
Esses não são apenas números e dados. Trata-se de seres humanos. E cada pessoa nessas estatísticas tem valor, um nome, uma história, uma trajetória, uma vida, uma família — mesmo que a maioria delas permaneça no anonimato. Imaginemos cada uma delas, aquelas de quem conhecemos o rosto, a imagem e a voz, mas também aquelas tantas que cotidianamente sofrem silenciadas, agora, proferindo as palavras do Salmo 139: “Pois tu formaste o meu interior, tu me teceste no ventre de minha mãe. Graças te dou, visto que de modo assombrosamente maravilhoso me formaste (...). Os meus ossos não te foram encobertos, quando no oculto fui formado e entretecido como nas profundezas da terra. Os teus olhos viram a minha substância ainda informe, e no teu livro foram escritos todos os meus dias, cada um deles escrito e determinado, quando nem um deles ainda existia…” (Sl 139.13-16).
 
A Bíblia ensina que a vida importa! Os seres humanos foram feitos à imagem e semelhança de Deus — um Deus que vê cada um de nós antes de qualquer olho humano. Ele nos conheceu quando ainda éramos matéria sem forma, no ventre da nossa mãe. E ele preparou para nós uma vida e um futuro de esperança. Não bastasse isso, Jesus deu a vida por toda a humanidade! O amor de Deus pelo mundo foi tanto que ele não negou seu próprio Filho por todos nós.
 
Isso precisa nos inspirar a lutar! Porque jamais haverá justiça, punição, dinheiro ou retratação que traga de volta vidas perdidas em nome da desigualdade social, da violência, do racismo e do ódio. Não há nada que façamos que devolva às famílias seus entes queridos. Ou que apague da memória uma violência vivida. E cada ser humano assassinado e violentado nas ruas, nas vielas, nos becos e nas “quebradas” tem o valor do sangue de Jesus.
 
Mas como as igrejas e os cristãos podem contribuir para mudanças que impactem a realidade e cumpram o propósito de Deus nesse mundo? Como o professor Kabengele Munanga afirma, é difícil “aniquilar as raças fictícias que rondam em nossas representações e imaginários coletivos”. Porém, se a Bíblia já foi um dia usada como instrumento de opressão e justificação da violência contra os negros, é nosso papel hoje reescrever essa história, construindo e compartilhando uma exegese que confronte os discursos que foram artificialmente produzidos com fins de controle e dominação das populações negras, e propor uma hermenêutica bíblica contextual e empoderadora, que resgate aquilo que a Bíblia tem a dizer sobre o amor ao próximo e a dignidade humana. 
 
O Brasil se construiu, historicamente, a partir de uma realidade marcada pela escravidão dos negros, e, posteriormente, por uma inserção precária dessas pessoas na sociedade depois de livres. Isso engendrou enormes abismos sociais, a que estamos sujeitos até hoje. Nos nossos dias, vidas importantes habitam as favelas, as comunidades, as vilas, os morros, os bairros, as aldeias e as ocupações do nosso país, muitas vezes em situações precárias, sem acesso a condições que permitam uma existência digna. Lutemos por elas, em oração, fé e atitude, para que possam desfrutar do sopro de vida que lhes foi dado. Lutemos pelas crianças e pelos adolescentes das periferias, para que possam correr como crianças, sem medo de ser baleados ou considerados ladrões ou fugitivos, apenas por serem negros e pobres. Não nos conformemos com uma mentalidade que ainda reitera e perpetua a exclusão. Batalhemos para que todos tenham moradia, alimento, condições de viver bem, proteção, segurança, educação e oportunidades.
 
Se há uma lição que devemos reter da Bíblia, ela é o amor ao próximo. Esse amor, que é a essência do próprio Deus (1Jo 4.8), é o fundamento, a resposta, o princípio, o valor eterno e a mensagem mais importante desse livro! Assim, que a nossa leitura do texto resgate o que há nele que nos ensina e interpela a esse respeito.
 
Nesse ano de 2020, a pandemia fez muitos de nós entrarem num estado de grande introspecção. E, talvez, seja mesmo um momento importante e propício para isso. Mas não deixemos que ela nos leve à indiferença e nos torne insensíveis e alheios ao mundo que nos cerca e suas enormes contradições. Se precisamos de orientação para saber como agir, a Bíblia está repleta de princípios que podem nortear nossa atuação nessa sociedade ainda tão marcada por desigualdades. E Jesus, nesse sentido, é o melhor paradigma. 
 
O desafio está lançado: que não apenas voltemos nosso olhar para o nosso interior, mas que nos abramos e saiamos um pouco de nós mesmos, estendendo nossa atenção e nossos braços, como os do próprio Jesus, para amar e lutar pelos negros, pelo fim das opressões e desigualdades, pela erradicação do racismo e por uma sociedade melhor.

>> Leia também o primeiro artigo – O que a Bíblia tem a nos ensinar sobre o racismo? – e o segundo – A Bíblia e as raízes míticas do racismo.

• Quéfren de Moura é doutoranda em Letras (Estudos Críticos da Bíblia Hebraica) na Universidade de São Paulo (USP). É mestre em Letras (Estudos da Tradução) e graduada em História e Comunicação Social pela USP. Desde 2011, colabora com a Sociedade Bíblica do Brasil nas áreas de tradução e publicações, atuando como revisora de textos e consultora de traduções em preparação. Atualmente, também apoia projetos de tradução para línguas indígenas e de sinais.


 

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