Opinião
- 08 de outubro de 2009
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A alma e a matéria
Miguel Del Castillo
Para o filósofo Martin Heidegger (1889-1976), a maior necessidade do ser humano era o habitar, que vinha antes mesmo do construir. No ensaio “Construir, Habitar, Pensar”, ele mostra que o homem habita, por essência, a quadratura, um “polígono” cujas quatro pontas são céu, terra, divino e mortal. O ser humano habita o “entre”, é a própria fronteira.
Está com os pés na terra e a cabeça no céu. O habitar se finca na poesia, no poetar-pensante. A existência é vista como um todo indivisível. Ao habitar, o homem pensa e constrói seus espaços, suas arquiteturas, seus relacionamentos, sua vida.
Parece-me que, ao nos separarmos de Deus no Jardim, perdemos esse estado de “fronteira”. Estar ligado apenas à terra e ao que é mortal, sem possibilidade de transcendência, é um indício disso. O extremo oposto – uma vida nas alturas somente – não é, no entanto, a essência do ser. Ela talvez esteja arraigada numa mistura entre céu e terra, divino e humano, como uma dança entre os dois.
Vemos no Gênesis o homem sendo criado por Deus a partir do pó da terra. Ele é feito de chão, de barro. Deus então sopra o seu Espírito e ele se torna “alma vivente” – uma união entre terra e céu.
Marisa Monte canta algo parecido na música “A alma e a matéria”: “Vem pra esse mundo, Deus quer nascer. E a alma aproveita pra ser a matéria e viver”. Clarice Lispector, no livro “Um Sopro de Vida” – que trata da relação de um escritor com o personagem criado por ele –, escreve: “Aspiro a uma fusão de corpo e alma”. Eu também aspiro.
Os rituais do templo descritos no Antigo Testamento são belos e cheios de significados. Deus vinha e se manifestava concretamente no altar, com fogo, ou através de símbolos, como a imposição de mãos do sacerdote no animal, transferindo figuradamente o pecado do povo para o animal a ser sacrificado. O altar do templo era o principal local onde o divino entrava em contato com o mortal.
Nietzsche disse certa vez que “somente acreditaria em um Deus que soubesse dançar”. Jesus foi e é essa dança: Deus e homem coexistindo sem conflitos, numa existência que transforma tudo. Ele é a materialização da própria quadratura. Quando diz “isto é o meu corpo” (e não quero aqui discutir a transubstanciação) ele está falando sobre algo muito palpável. Jesus amava a vida, não no sentido que condena em uma parábola, mas a vivia com intensidade. Marx estava certo ao dizer que a religião, caso vivamos somente “nas alturas”, é o ópio do povo. Contudo a espiritualidade encarnada proposta por Jesus é diferente. Nela a religião deixa de ser uma droga para se tornar o mecanismo pelo qual podemos viver e experimentar Deus aqui, nessa dança celestial e terrena, onde ele nos convida a habitarmos seguros e construirmos nossa vida pensando, sem esquecer da poesia que a permeia.
• Miguel Del Castillo é estudante de arquitetura e letras e editor da revista Noz.
Para o filósofo Martin Heidegger (1889-1976), a maior necessidade do ser humano era o habitar, que vinha antes mesmo do construir. No ensaio “Construir, Habitar, Pensar”, ele mostra que o homem habita, por essência, a quadratura, um “polígono” cujas quatro pontas são céu, terra, divino e mortal. O ser humano habita o “entre”, é a própria fronteira.
Está com os pés na terra e a cabeça no céu. O habitar se finca na poesia, no poetar-pensante. A existência é vista como um todo indivisível. Ao habitar, o homem pensa e constrói seus espaços, suas arquiteturas, seus relacionamentos, sua vida.
Parece-me que, ao nos separarmos de Deus no Jardim, perdemos esse estado de “fronteira”. Estar ligado apenas à terra e ao que é mortal, sem possibilidade de transcendência, é um indício disso. O extremo oposto – uma vida nas alturas somente – não é, no entanto, a essência do ser. Ela talvez esteja arraigada numa mistura entre céu e terra, divino e humano, como uma dança entre os dois.
Vemos no Gênesis o homem sendo criado por Deus a partir do pó da terra. Ele é feito de chão, de barro. Deus então sopra o seu Espírito e ele se torna “alma vivente” – uma união entre terra e céu.
Marisa Monte canta algo parecido na música “A alma e a matéria”: “Vem pra esse mundo, Deus quer nascer. E a alma aproveita pra ser a matéria e viver”. Clarice Lispector, no livro “Um Sopro de Vida” – que trata da relação de um escritor com o personagem criado por ele –, escreve: “Aspiro a uma fusão de corpo e alma”. Eu também aspiro.
Os rituais do templo descritos no Antigo Testamento são belos e cheios de significados. Deus vinha e se manifestava concretamente no altar, com fogo, ou através de símbolos, como a imposição de mãos do sacerdote no animal, transferindo figuradamente o pecado do povo para o animal a ser sacrificado. O altar do templo era o principal local onde o divino entrava em contato com o mortal.
Nietzsche disse certa vez que “somente acreditaria em um Deus que soubesse dançar”. Jesus foi e é essa dança: Deus e homem coexistindo sem conflitos, numa existência que transforma tudo. Ele é a materialização da própria quadratura. Quando diz “isto é o meu corpo” (e não quero aqui discutir a transubstanciação) ele está falando sobre algo muito palpável. Jesus amava a vida, não no sentido que condena em uma parábola, mas a vivia com intensidade. Marx estava certo ao dizer que a religião, caso vivamos somente “nas alturas”, é o ópio do povo. Contudo a espiritualidade encarnada proposta por Jesus é diferente. Nela a religião deixa de ser uma droga para se tornar o mecanismo pelo qual podemos viver e experimentar Deus aqui, nessa dança celestial e terrena, onde ele nos convida a habitarmos seguros e construirmos nossa vida pensando, sem esquecer da poesia que a permeia.
• Miguel Del Castillo é estudante de arquitetura e letras e editor da revista Noz.
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