Opinião
- 07 de fevereiro de 2020
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1917: apenas um filme de guerra?
Por Carlos Caldas
1917, do diretor inglês Sam Mendes, que recentemente entrou em cartaz, é sem dúvida um marco na história do cinema. Não será exagero afirmar que o filme já nasceu clássico. Merecidamente faturou o Globo de Ouro na categoria Melhor Filme, e é candidatíssimo ao Oscar na mesma categoria. Se algum filme tem chance de desbancar Coringa, de Todd Philips, este filme certamente é 1917. Além da categoria Melhor Filme, 1917 concorre também em outras categorias importantes, como Melhor Diretor e Melhor Roteiro Original. Conforme declarações de Sam Mendes, que pela primeira vez trabalhou também como roteirista, a inspiração para o roteiro veio das histórias contadas por Alfred Mendes, seu avô, combatente na Primeira Guerra.
É mais um filme de guerra. Sendo assim, o que tem de especial? É bem verdade que é sobre a Primeira Guerra Mundial, que não tem sido (re)visitada com muita frequência. Sobre a Segunda Guerra e a Guerra do Vietnã há centenas, talvez milhares de filmes, mas são poucos, muito poucos, os sobre a Primeira.
Sam Mendes é diretor experiente. Apenas um exemplo da competência do diretor britânico de origem lusitana: Mendes fez o que muitos consideravam impossível, a saber, produzir um filme da franquia James Bond melhor que os estrelados por Sean Connery. Mas Mendes conseguiu realizar esta proeza em Skyfall, de 2012, filme que disparadamente é o melhor em mais de 50 anos da história da franquia do legendário 007.
Em termos técnicos 1917 é impecável. A reconstituição perfeita das trincheiras e do cenário de terra arrasada do interior francês devastado pela guerra, a trilha sonora, que imprime um tom de suspense nos momentos adequados, a fotografia, com uma paleta de cores que varia do cinzento para o totalmente escuro e daí para a claridade da manhã, a atuação dos atores e mesmo dos figurantes, enfim, tudo forma um todo harmonioso que faz deste filme um espetáculo. Mas quanto ao aspecto técnico o que com certeza mais chama a atenção de todos é a técnica utilizada por Mendes, chamada de “plano sequência”: tem-se a impressão que não há cortes. Assiste-se toda a narrativa como se fosse em tempo real. A impressão que se tem é a de que se está em um destes games de altíssima resolução nos quais parece que o jogador está no cenário, ou em um daqueles antigos filmes de 3D em que há uma ilusão de ótica muito bem feita de que quem o assiste está em tela, lado a lado com os protagonistas. Alguns dos meus colegas que entendem de técnica cinematográfica mais que eu disseram que perceberam alguns cortes na narrativa, mas que estes são muito rápidos. Eu não fui capaz de perceber nenhum. Todo este conjunto de fatores faz com que assistir ao filme seja uma experiência estética profunda e arrebatadora, de literalmente uma imersão na narrativa de Mendes.
Uma palavra quanto aos atores: o filme tem pesos pesados do cinema inglês, “monstros” como Colin Firth, Mark Strong e o sempre bom Benedict Cumberbatch (o Doutor Estranho do UCM, o Universo Cinematográfico Marvel), que tem tanto carisma que rouba a cena mesmo aparecendo apenas por poucos segundos. Mas a participação destes atores consagrados é muito rápida. O destaque se dá para os jovens atores George Mackay e Dean-Charles Chapman. E eles dão conta do recado com muita competência. A meu ver foi uma ousadia sensacional de Mendes dar pouco espaço para atores veteranos consagrados e muita abertura para jovens iniciantes.
A história propriamente contada pelo filme é muito simples: dois cabos (Tom Blake, interpretado por Chapman, e William Schofield, o personagem de Mackay) do exército inglês no campo de batalha da França recebem a missão de levar uma mensagem para o Coronel Mackenzie (Cumberbatch), que lidera um pelotão de 1600 homens prestes a desferir um ataque contra as forças alemãs. Só que a inteligência britânica descobriu que era uma armadilha muito bem armada pelo inimigo, e o ataque teria que ser cancelado. Caso contrário, seria uma carnificina, e todo o batalhão liderado por Mackenzie seria massacrado. Há um elemento pessoal em jogo, porque o irmão do Cabo Blake está entre os comandados por Mackenzie. A narrativa então segue os dois jovens pelas linhas inimigas. O suspense é grande, e o filme não é de modo algum previsível. Acompanhar Blake e Schofield pelo terreno dominado pelos alemães faz lembrar a jornada de Frodo Bolseiro e Samwise Gamgee até Mordor para destruir o Um Anel...
Todo e qualquer filme de guerra faz pensar sobre este acontecimento terrível. Talvez não seja exagero afirmar que a história da humanidade é uma história de guerras. Uma das primeiras narrativas da Bíblia cita uma guerra – Gênesis 14, que envolvera Ló e seu tio, o patriarca Abraão. Depois desta, muitas outras são citadas na Bíblia. Mas a Bíblia apresenta também com forte ênfase promessas de paz e de fim da guerra. Javé, o Deus de Israel, muito embora seja chamado muitas vezes de “Senhor dos Exércitos”, é descrito em um dos poemas sagrados como aquele que “põe termo á guerra até aos confins do mundo, quebra o arco e despedaça a lança, queima os carros no fogo” (Sl 46.9). O Messias é chamado de Príncipe da Paz (Is 9 .6). Ainda conforme Isaías, o Senhor “julgará entre as nações, e repreenderá a muitos povos; e estes converterão as suas espadas em relhas de arado, e as suas lanças em foices; uma nação não levantará espada contra outra nação, nem aprenderão mais a guerra” (2.4). Jesus, no Sermão da Montanha, ensina que serão os mansos que herdarão a terra, não os violentos e poderosos (Mt 5.5; nesta bem-aventurança Jesus cita o Sl 37.11), e ensina também que os pacificadores, não os guerreiros, serão chamados filhos de Deus (Mt 5.9).
Vivemos tempos em que há um discurso de apologia da violência. Situações extremas e de exceção no que diz respeito ao uso da força e da violência são apresentadas como se fossem a regra. Desvaloriza-se a vida, comprovando-se tristemente a famosa tese da “banalização do mal”, exposta pela filósofa Hannah Arendt. Contra “necropolíticas” que defendem a guerra em nome do lucro e a violência como solução para problemas a ética cristã propõe outras alternativas.
1917 faz lembrar uma das estrofes de Solo le pido a Dios, poesia belíssima do argentino Leon Gieco, imortalizada na interpretação poderosa da inesquecível Mercedes Sosa:
Solo le pido a Dios
Que la guerra no me sea indiferente
Es un monstruo grande y pisa fuerte
Toda la pobre inocência de la gente...
(Só peço a Deus
Que a guerra não me seja indiferente
É um monstro grande e pisa forte
Toda a pobre inocência desta gente...)
É professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da PUC Minas, onde coordena o GPRA – Grupo de Pesquisa Religião e Arte.
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