Palavra do leitor
- 10 de novembro de 2018
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Você iria mal vestido a uma festa?
Sören Kierkegaard (1813-1855) foi um filósofo dinamarquês, filho de Michael Pedersen Kierkegaard, um pastor luterano. Sören Kierkegaard nunca foi ordenado pastor tal como seu pai queria. Ele preferiu dedicar toda a sua vida e obra a refletir sobre o que significava ser cristão. Criticou de maneira pungente a sociedade e a igreja de seu tempo.
Em sua época, qualquer pessoa nascida em Copenhague (Dinamarca) era considerada cristã simplesmente pelo fato de ter nascido num país aonde as pessoas professavam-se cristãs. Kierkegaard dirá então, cheio de ironia, de que em meio a tantos cristãos ele não é cristão. Na verdade Kierkegaard diz isto por meio de Johannes de Silentio (João do Silêncio, um de seus pseudônimos). E ele não é cristão porque segundo Kierkegaard ninguém "é" cristão, mas todos precisam "tornar-se" cristãos.
Tornar-se cristão é tarefa para uma vida inteira. Não basta nascer numa sociedade cristã, num berço cristão ou no seio da cristandade; é preciso tornar-se cristão. Ser cristão é pois, uma questão existencial e de escolha diária que requer muito esforço e disciplina. E só se torna cristão o indivíduo capaz de realizar um duplo movimento:
(i) primeiro ele renuncia ao mundo e renuncia a racionalidade, dando o salto da fé, – um salto no escuro –
(ii) para depois e paradoxalmente, abraçar novamente o mundo e auxiliar Deus em seu processo de restauração e redenção de um mundo fraturado pelo mal e pelo pecado. Um mundo angustiado (posteriormente poderemos falar sobre a diferença entre as pessoas que sentem "angústia do bem" e aquelas que sentem "angústia do mal" – conceitos importantíssimos no pensamento kierkegaardiano.
Abraão teria sido o homem a realizar este duplo movimento que culminou por dar-lhe o título de pai da fé. Pois para obedecer a ordem aparentemente absurda de sacrificar seu próprio filho Isaque, renunciou a razão, mas em chegando ao cume do monte Moriá e ter o novilho preparado para o sacrifício, desceu com Isaque nos braços e tornou-se herói da fé.
Abraão fez o duplo movimento: renunciou ao mundo e à racionalidade, dando o salto da fé, e paradoxalmente, ao receber Isaque de volta em seus braços, alcançou sim a fé dos heróis da fé, sem contudo perder a razão outrora abdicada; antes, re-apropriando-se da razão sob uma forma mais elaborada e refinada. Uma razão que tem em si a fé e uma fé que não extingue de todo a razão. Numa bela e harmoniosa tensão dialética.
Fé, portanto, não é algo comprado na quitanda. Não é algo que encontramos por aí como quando ouvimos alguém dizer: tenha fé! Fé é esse duplo movimento de renuncia e re-apropriação de si mesmo, que só os heróis da fé descritos em Hebreus 11 conseguiram fazer. Ou aqueles que seguiram os seus passos, como Eliseu que ao tomar a capa de Elias esteve pronto para sucedê-lo.
Esforcemo-nos pois, por tomar o caminho árduo dos heróis da fé e caminharmos à semelhança de Abraão que foi capaz de fazer o duplo movimento, realinhando assim razão e fé numa harmoniosa tensão dialética. Nem só razão que leva ao ceticismo, tampouco a fé solitária que leva ao fanatismo.
E que possamos ser cristãos não porque nascemos numa família ou pais majoritariamente cristão, mas porque fazemos uma escolha diária de rumar e nos vestir com as roupas de Deus: compaixão, bondade, humildade, autocontrole, disciplina, moderação, satisfeitos com o segundo lugar e rápidos em perdoar as ofensas. Porque nós somos as roupas que Deus veste e se nos portarmos de maneira rude, seria como se Deus estivesse vestindo trapos ao invés de roupas finas. Porque nós somos ou deveríamos ser, a roupa que Deus veste.
José Chadan, mestre em filosofia pela PUC-SP.
Site: https://josechadan.wixsite.com/professor/livros
Em sua época, qualquer pessoa nascida em Copenhague (Dinamarca) era considerada cristã simplesmente pelo fato de ter nascido num país aonde as pessoas professavam-se cristãs. Kierkegaard dirá então, cheio de ironia, de que em meio a tantos cristãos ele não é cristão. Na verdade Kierkegaard diz isto por meio de Johannes de Silentio (João do Silêncio, um de seus pseudônimos). E ele não é cristão porque segundo Kierkegaard ninguém "é" cristão, mas todos precisam "tornar-se" cristãos.
Tornar-se cristão é tarefa para uma vida inteira. Não basta nascer numa sociedade cristã, num berço cristão ou no seio da cristandade; é preciso tornar-se cristão. Ser cristão é pois, uma questão existencial e de escolha diária que requer muito esforço e disciplina. E só se torna cristão o indivíduo capaz de realizar um duplo movimento:
(i) primeiro ele renuncia ao mundo e renuncia a racionalidade, dando o salto da fé, – um salto no escuro –
(ii) para depois e paradoxalmente, abraçar novamente o mundo e auxiliar Deus em seu processo de restauração e redenção de um mundo fraturado pelo mal e pelo pecado. Um mundo angustiado (posteriormente poderemos falar sobre a diferença entre as pessoas que sentem "angústia do bem" e aquelas que sentem "angústia do mal" – conceitos importantíssimos no pensamento kierkegaardiano.
Abraão teria sido o homem a realizar este duplo movimento que culminou por dar-lhe o título de pai da fé. Pois para obedecer a ordem aparentemente absurda de sacrificar seu próprio filho Isaque, renunciou a razão, mas em chegando ao cume do monte Moriá e ter o novilho preparado para o sacrifício, desceu com Isaque nos braços e tornou-se herói da fé.
Abraão fez o duplo movimento: renunciou ao mundo e à racionalidade, dando o salto da fé, e paradoxalmente, ao receber Isaque de volta em seus braços, alcançou sim a fé dos heróis da fé, sem contudo perder a razão outrora abdicada; antes, re-apropriando-se da razão sob uma forma mais elaborada e refinada. Uma razão que tem em si a fé e uma fé que não extingue de todo a razão. Numa bela e harmoniosa tensão dialética.
Fé, portanto, não é algo comprado na quitanda. Não é algo que encontramos por aí como quando ouvimos alguém dizer: tenha fé! Fé é esse duplo movimento de renuncia e re-apropriação de si mesmo, que só os heróis da fé descritos em Hebreus 11 conseguiram fazer. Ou aqueles que seguiram os seus passos, como Eliseu que ao tomar a capa de Elias esteve pronto para sucedê-lo.
Esforcemo-nos pois, por tomar o caminho árduo dos heróis da fé e caminharmos à semelhança de Abraão que foi capaz de fazer o duplo movimento, realinhando assim razão e fé numa harmoniosa tensão dialética. Nem só razão que leva ao ceticismo, tampouco a fé solitária que leva ao fanatismo.
E que possamos ser cristãos não porque nascemos numa família ou pais majoritariamente cristão, mas porque fazemos uma escolha diária de rumar e nos vestir com as roupas de Deus: compaixão, bondade, humildade, autocontrole, disciplina, moderação, satisfeitos com o segundo lugar e rápidos em perdoar as ofensas. Porque nós somos as roupas que Deus veste e se nos portarmos de maneira rude, seria como se Deus estivesse vestindo trapos ao invés de roupas finas. Porque nós somos ou deveríamos ser, a roupa que Deus veste.
José Chadan, mestre em filosofia pela PUC-SP.
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