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Palavra do leitor

Viva o ceguinho!

-- Shalom!
-- Shalom, mestre...
-- Reclina um pouco homem, fique a vontade, essa época do ano é quente...
-- A casa é tua e a família aqui é generosa. Esse é Jairo (cara de desconfiando sente só pelo jeito da pegada); essa é Marta (é cego, mas fareja estresse ao cumprimentá-la). Esta aqui é Maria (... sem maiores comentários).
-- Água para lavar os pés?
-- Maria, por favor? (a bacia chega rapidinho!).
-- A administração política nesses últimos dias de Betsaida para cá anda ruim, mestre. Nunca vi tanta poeira! Ops! Vi não, senti... (ele ri da própria brincadeira). Ainda não existe por aqui o politicamente correto, só lá para as bandas de Jerusalém. Mas também, com aquela trinca de sumo-sacerdotes! (reclama).
-- Mestre... (enquanto serve-se figos novos e fresquinhos). Sou cego. (os olhos perdidos buscam um lugar para pousar). Mas eu não sei se quero algum dia enxergar. (Seguem numa longa e frutífera conversa entre eles...).
-- Meu amigo (intervém Maria, olhos arregalados, não agüentando mais aquele papo)... É o que todo mundo anda querendo esses dias. Todos querem ver! E você quer permanecer cego!! (ouça-se uma voz vinda da cozinha. Maria vai ver do que se trata).
-- Maria (intervém Marta) pelo amor de Deus! Desculpe-me, pelo amor de Jesus Cristo, pare com essas interferências em conversa alheia, mulher!
-- Ah! Marta! Deixe de ser chata e ortodoxa, depois que eu saí daquele grupo conservador de vocês nunca vi um espírito tão crítico como esse seu! Nossa comunidade só cresce e é só benção, irmãzinha! (dá um volteio sobre o próprio corpo e volta para a sala. Marta continua batendo panelas. Ficou tiririca da vida!).
-- Sim, meu jovem, você quer permanecer cego então. Mas se quer assim ficar, qual a razão de ter vindo me procurar? (o mestre deixa de propósito cair um figo bem perto da mão direita do ceguinho...).
-- Eis a questão, ver ou não ver. Eis a questão! (puxa novamente um longo suspiro desses filosóficos). O mundo está um horror, mestre! Só se fala em crimes, os mais hediondos possíveis. Levam tudo, até o cajado. Ainda a pouco uns zelotes amigos meu andaram prendendo um sujeito que se fingia de morto, todo arrebentado, e quando levado a uma estalagem, desfez-se da dor e atacou quem lhe havia dado a mão! Um horror!
-- As vezes eu me pergunto se vale a pena permanecer assim, desde o meu nascimento; ou se valeria a pena ver, dar uma espiada aí fora para saber se é tal qual.

A noitinha chegou rápido. O jovem aceitou o pernoite na casa tão acolhedora. O jantar fora servido, todos quedaram-se ao redor e reclinaram. Marta cozinhava bem...



Aconteceu em 1647 na então pequena cidade de Nimes no sul da França onde nasceu Saint-Etienne, um dos líderes da Revolução Francesa, hoje tomada por escolas e liceus.
Naquela época a universidade local estava sob os cuidados de um certo doutor Vincent de Paul D'Argent que fez o primeiro transplante de córnea em um aldeão por nome Angel.

Foi um sucesso da medicina para a época, menos para Angel, que assim que passou a enxergar ficou horrorizado com o mundo que via. Disse que o mundo que ele imaginava era muito melhor. Pediu ao cirurgião que arrancasse seus olhos. O caso foi acabar no tribunal de Paris e depois chegou ao Vaticano. Angel ganhou a causa! Teve os olhos arrancados e entrou para a história como o "cego que não queria ver".

Um dos problemas do ‘evangelicalismo’ nessa vertente do colorido exuberante de curas e milagres (tem o ortodoxo anacrônico, também) é o de contemplar com a cura a dor presente e angustiante dos que procuram a saída para muitos males, como o ponto fulcral da fé.

Querem porque querem que o infeliz veja, o coxo ande, a bexiga caída suba, as menorréias e amenorréias deixem de ser aquela tristeza na vida do casal.

Esquecem, porém, que os supostamente curados acabam enxergando o que tomavam por santa inocência e passam a julgar tudo ao redor por um critério até então desconhecido.

Assim, os ‘curados’, descobrem agora, no ‘olhar’ do dia a dia, o quanto a fé na sua singeleza anterior e interior não necessita do olhar que os sentidos oferecem. Pode até fazer bem ao corpo (a cura), mas o ‘olhar’ agora da fé chega embaçado.

Conta-se que Bartimeu voltou um dia e pediu a Jesus que voltasse a ficar cego. Foi aí que Maria, quando soube do ocorrido com ele, entendeu que a sua procura por um corpo no túmulo vazio não era o que valia a pena ver. Agora ela entendera tudo! Enxergara tudo direitinho com os olhos da fé!
P - RN
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