Palavra do leitor
- 27 de dezembro de 2015
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Toda amargura nasce velha
Os dois homens estão um diante do outro. A história contada por um deles visita um evento passado há décadas. No contador da história, restaram marcas indeléveis na alma. E ele viveu como se tivesse um transtorno de stress pós-traumático eterno. E sua alma caminhou cambaleante, avinagrada pelas lembranças que lhe atacavam agudas, com chuchadas de vergonha, medo, nojo e uma percepção de si que o fazia se ver como um monstro blasfemo.
De repente, como que assediado pela matilha de pensamentos ruins que o acompanharam vida afora, ele se levanta num salto. Desistiria de continuar remexendo naquele assunto. Deixaria a história pela metade. Chegara ao seu limite. O ouvinte que acompanhava aquela reação intempestiva, disse: “O diabo adora segredos não revelados. É isso que atormenta e adoece a alma.”
O homem absintiado estacou para ouvir e refletir sobre a frase contundente. Conclui, por fim, que ficara calado muito tempo e assim dá vazão à amargura que o prendera, que o ensinara que ele nada valia e a vida é só um tédio sem fim em que cada qual carrega suas dores e deve mantê-las em silêncio. Eis o segredo a que se referia o ouvinte, como que a fazer eco de uma expressão de Provérbios: “Cada coração conhece a sua própria amargura, e não há quem possa partilhar sua alegria.”
A fala do interlocutor, entretanto, cavou fundo nas lembranças, reorganizou sentidos, possibilitou um reencontro com sua vergonha mais profunda. Náufrago, canibalizou companheiros mortos para sobreviver. A lembrança desse ato afeleou sua existência. É como se uma raiz e semente de amargura tivessem sido plantadas fundo no espírito, o que lhe daria uma psicalgia irremediável até que falasse.
Toda amargura nasce velha. Amiga do desespero. Cheira a podre. Exala odor de molambos sujos e não lavados, guardados num canto. Se o diabo adora segredos, como disse o outro personagem, desconfio que tenha razão. Toda amargura é escravizadora e o segredo é seu aguilhão. Conserva a impotência, avinagra a existência porque faz o amargurado voltar vez após vez ao fracasso, à decepção, cega-o para qualquer saída possível. Estas são suas flores acerbas.
Amargura gera depressão ou é sua filha. Torna a pessoa razinza, com um olhar enviesado para ver sempre o pior ângulo de tudo. O homem-mulher cáusticos são os anti-Pollyana. Aprendem duas coisas que podem ser concomitantes: sentem culpa por tudo, o que se torna parte de sua forma de expressão como uma identidade distorcida; e culpam a tudo e a todos por sua miserável condição.
A fala é a primeira forma de enfrentamento da amargura. Ela revisita as distorções cognitivas e lhes expõe à realidade. É só o começo. O amargurado que só sentiu pena de si mesmo precisará aprender a ter compaixão. Precisará se perdoar e a quem mais for. Acolher sua humanidade como quem canta canção de ninar e, humildemente, aceitar que, sim, é falho. Permitir a congruência entre aquele que queria ser e o homem-mulher real, estes que sofrem as pequenas mazelas e, lembrando Fernando Pessoa no Poema em Linha Reta, não são príncipes.
A fala é um caminho e um instrumento de observação de si. Ela faz o sofrido visitar lugares que, antes, faria de tudo para não estar, sequer passar perto. Mas não há como curar feridas sem limpá-las. A fala é o bisturi da alma. Ela expõe à luz da verdade toda a escuridão dos precipícios do ser. A fala cura.
(Os personagens aqui mencionados são do filme “No Coração do Mar”, baseado no trabalho histórico de Nathaniel Philbrick, que narra a história do naufrágio do baleeiro Essex, em 1820.)
De repente, como que assediado pela matilha de pensamentos ruins que o acompanharam vida afora, ele se levanta num salto. Desistiria de continuar remexendo naquele assunto. Deixaria a história pela metade. Chegara ao seu limite. O ouvinte que acompanhava aquela reação intempestiva, disse: “O diabo adora segredos não revelados. É isso que atormenta e adoece a alma.”
O homem absintiado estacou para ouvir e refletir sobre a frase contundente. Conclui, por fim, que ficara calado muito tempo e assim dá vazão à amargura que o prendera, que o ensinara que ele nada valia e a vida é só um tédio sem fim em que cada qual carrega suas dores e deve mantê-las em silêncio. Eis o segredo a que se referia o ouvinte, como que a fazer eco de uma expressão de Provérbios: “Cada coração conhece a sua própria amargura, e não há quem possa partilhar sua alegria.”
A fala do interlocutor, entretanto, cavou fundo nas lembranças, reorganizou sentidos, possibilitou um reencontro com sua vergonha mais profunda. Náufrago, canibalizou companheiros mortos para sobreviver. A lembrança desse ato afeleou sua existência. É como se uma raiz e semente de amargura tivessem sido plantadas fundo no espírito, o que lhe daria uma psicalgia irremediável até que falasse.
Toda amargura nasce velha. Amiga do desespero. Cheira a podre. Exala odor de molambos sujos e não lavados, guardados num canto. Se o diabo adora segredos, como disse o outro personagem, desconfio que tenha razão. Toda amargura é escravizadora e o segredo é seu aguilhão. Conserva a impotência, avinagra a existência porque faz o amargurado voltar vez após vez ao fracasso, à decepção, cega-o para qualquer saída possível. Estas são suas flores acerbas.
Amargura gera depressão ou é sua filha. Torna a pessoa razinza, com um olhar enviesado para ver sempre o pior ângulo de tudo. O homem-mulher cáusticos são os anti-Pollyana. Aprendem duas coisas que podem ser concomitantes: sentem culpa por tudo, o que se torna parte de sua forma de expressão como uma identidade distorcida; e culpam a tudo e a todos por sua miserável condição.
A fala é a primeira forma de enfrentamento da amargura. Ela revisita as distorções cognitivas e lhes expõe à realidade. É só o começo. O amargurado que só sentiu pena de si mesmo precisará aprender a ter compaixão. Precisará se perdoar e a quem mais for. Acolher sua humanidade como quem canta canção de ninar e, humildemente, aceitar que, sim, é falho. Permitir a congruência entre aquele que queria ser e o homem-mulher real, estes que sofrem as pequenas mazelas e, lembrando Fernando Pessoa no Poema em Linha Reta, não são príncipes.
A fala é um caminho e um instrumento de observação de si. Ela faz o sofrido visitar lugares que, antes, faria de tudo para não estar, sequer passar perto. Mas não há como curar feridas sem limpá-las. A fala é o bisturi da alma. Ela expõe à luz da verdade toda a escuridão dos precipícios do ser. A fala cura.
(Os personagens aqui mencionados são do filme “No Coração do Mar”, baseado no trabalho histórico de Nathaniel Philbrick, que narra a história do naufrágio do baleeiro Essex, em 1820.)
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