Palavra do leitor
- 16 de fevereiro de 2010
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Sobre "retiros culturais" e outros perigos
(O Maranhão ganhou uma nova versão de retiros. Resulta do conluio, com apoio das lideranças religiosas, entre políticos ditos evangélicos e o governo do Estado. Uma quantia não declarada foi repassada a uma ONG de uma deputada estadual e desta para os retirantes com o objetivo de financiar produções culturais em cerca de 200 retiros).
Em alguns lugares da cidade deparei-me com um outdoor curioso, entre os milhares que enquadram nossas vistas com propagandas do governo estadual. Para minha surpresa, o governo festejava o apoio a um carnaval, com pierrôs e colombinas de outro tipo. Sei que essa ironia não passará despercebida, mas peço um abre alas que eu quero passar.
Na mesma toada, o site governamental tinha como principal notícia, nesta terça-feira gorda de carnaval: "Governadora participa de retiros culturais em São Luís". Os outdoors faziam propaganda destes eventos.
Dirão: está parado no tempo, é um mente atrasada, um despeitado, um desmancha-prazeres. Que seja. Aceito todos os epítetos, desde que deem ampla divulgação de todas as obras produzidas no período carnavalesco. Não vale esquete, nem jogral.
Em todo caso, se me dissessem, há não mais que vinte anos, época em que realizar retiros era um desafio contra o entendimento teológico da época, que pregava que no carnaval o fiel tinha duas opções: pregar a palavra aos perdidos na folia de momo ou ir à igreja que não mudava sua rotina de cultos nem sob fogo cerrado dos blocos da Madre Deus à sua porta. Pois bem, eu não acreditaria. Já se vê que não tenho tino para profeta. Tampouco quero a volta do tempo passado.
A mudança foi rápida e inexorável. O que a explica? Não foi certamente uma mudança teológica, esta, aparentemente, continua intacta, embora cada vez mais sem qualquer diálogo com a realidade, no caso da principal igreja beneficiada. Temos aqui algo mais escatológico, uma quarta-feira de cinzas.
Que mal haveria a igreja receber dinheiro público para financiar seus “retiros culturais” (já falamos disso)? Desde que fosse uma iniciativa que recebesse publicidade, para toda e qualquer igreja, com critérios claros – não aqueles regrados por acordos políticos – objetivos e resultados e prestação de contas do gastado. Tudo bem? Não. Ainda aí haveria um conflito insanável que os patrocinadores da invenção não querem nem de longe falar, pois para estes, no raso mesmo, se trata tão somente de estratégia política para alcançar objetivos eleitorais, é nisso que tudo se resume, ou alguém acha que andar em procissão com a governadora nos “retiros culturais” era um tipo de zelo para ver se o dinheiro estava bem empregado? Se vocês fossem sinceros...
A questão de fundo é, portanto, uma tese que saiu vencedora, embora suas bases sejam frágeis ao extremo. Eis a tese: um retiro é uma manifestação cultural, um tipo de espaço religioso onde as pessoas se reúnem para expressar seus dotes artísticos. Ora, sendo um tipo de cultura, cabe ao governo não só preservá-la como apoiá-la financeiramente, pois, argumentam os donos da tese – todos políticos – se o governo apoia festas católicas e de outras expressões religiosas sob o manto cultural, nada mais justo que dar igual tratamento ao, como agora é chamado, “retiros culturais”. Não se iluda, o nome “cultural” agregado a retiro é tão somente para legitimar a tese esperta. Vocês pensam que política é água?
Receber dinheiro público, no fim das contas, é o de menos. Será que ele é? O que está em curso, sem que haja qualquer resistência, é o aparelhamento da igreja sem a menor cerimônia para fins políticos. Desde que as igrejas, de modo geral, entraram na política, isso sempre aconteceu. Sempre foi vergonhoso, mas a coisa se limitava à imposição de candidatos e pedidos de voto no púlpito. Os tais “retiros culturais” são um passo adiante. Manipula-se, destorce-se e impõem-se uma particular compreensão – se quiserem entender assim – de uma atividade simples e comum da igreja, que sempre teve o propósito de descanso, estudo da Bíblia, oração, enfim, renovação espiritual, onde cabia, sim, brincadeiras, cânticos, até pequenas apresentações, mas que nunca pretenderam ser expressão artística de coisa nenhuma. Era lazer e ponto. O que se faz aqui é vestir a igreja com uma casca de banana nanica, como o fez a Chiquita Bacana.
Qual será o próximo passo nesta escalada? Cultos temáticos como já é comum, mas com o objetivo de doutrinar sobre partidos e candidatos? Círculos culturais de oração? Quem será o patrono religioso destas empreitadas? Daniel? Sugiro Roboão, mas desconfio que não será aceito.
O caminho nesta destrambelhada carreira político-religiosa parece sem volta e cobrará seu preço não muito adiante. Não se trata da igreja não participar da política, mas de não se lambuzar a ponto de não se saber mais que certos setores e atividades estão se tornando meras extensões de um programa eleitoral particular. Cuidado para que não se veja muito riso, muita alegria e, na igreja, mais de mil políticos no salão.
Nestes tempos sombrios, tempos de “mamãe eu quero mamar”, em que os políticos protagonizam os piores escândalos, roubam, mentem, desviam milhões, fazem negócios sujos à luz do dia – o Maranhão não está isento desta mazela, como se sabe muito bem – à igreja caberia ser uma espécie de reserva moral, a defensora da ética em sua mais perfeita acepção da palavra, não porque os pastores e líderes não erram, mas porque seriam homens e mulheres, apesar de si mesmos, comprometidos com o que há de mais sublime em termos de aspiração humana, ser imitador de Cristo. Se a canoa não virar...
Enquanto a igreja se encantar e deslumbrar com um protagonismo político tolo e inconsequente – em termos sociais, para ela haverá consequências funestas -, permitir que políticos dela ou de fora se imiscuam em seus negócios ou ela se introduza nas coisas mundanas em sua mais feia aparência, é de se perguntar se este não é um caminho para a mais absoluta irrelevância da mornidão.
Viemos do Egito
E muitas vezes
Nós tivemos que rezar
Allah! allah! allah, meu bom allah! Alalaôôôôô
Em alguns lugares da cidade deparei-me com um outdoor curioso, entre os milhares que enquadram nossas vistas com propagandas do governo estadual. Para minha surpresa, o governo festejava o apoio a um carnaval, com pierrôs e colombinas de outro tipo. Sei que essa ironia não passará despercebida, mas peço um abre alas que eu quero passar.
Na mesma toada, o site governamental tinha como principal notícia, nesta terça-feira gorda de carnaval: "Governadora participa de retiros culturais em São Luís". Os outdoors faziam propaganda destes eventos.
Dirão: está parado no tempo, é um mente atrasada, um despeitado, um desmancha-prazeres. Que seja. Aceito todos os epítetos, desde que deem ampla divulgação de todas as obras produzidas no período carnavalesco. Não vale esquete, nem jogral.
Em todo caso, se me dissessem, há não mais que vinte anos, época em que realizar retiros era um desafio contra o entendimento teológico da época, que pregava que no carnaval o fiel tinha duas opções: pregar a palavra aos perdidos na folia de momo ou ir à igreja que não mudava sua rotina de cultos nem sob fogo cerrado dos blocos da Madre Deus à sua porta. Pois bem, eu não acreditaria. Já se vê que não tenho tino para profeta. Tampouco quero a volta do tempo passado.
A mudança foi rápida e inexorável. O que a explica? Não foi certamente uma mudança teológica, esta, aparentemente, continua intacta, embora cada vez mais sem qualquer diálogo com a realidade, no caso da principal igreja beneficiada. Temos aqui algo mais escatológico, uma quarta-feira de cinzas.
Que mal haveria a igreja receber dinheiro público para financiar seus “retiros culturais” (já falamos disso)? Desde que fosse uma iniciativa que recebesse publicidade, para toda e qualquer igreja, com critérios claros – não aqueles regrados por acordos políticos – objetivos e resultados e prestação de contas do gastado. Tudo bem? Não. Ainda aí haveria um conflito insanável que os patrocinadores da invenção não querem nem de longe falar, pois para estes, no raso mesmo, se trata tão somente de estratégia política para alcançar objetivos eleitorais, é nisso que tudo se resume, ou alguém acha que andar em procissão com a governadora nos “retiros culturais” era um tipo de zelo para ver se o dinheiro estava bem empregado? Se vocês fossem sinceros...
A questão de fundo é, portanto, uma tese que saiu vencedora, embora suas bases sejam frágeis ao extremo. Eis a tese: um retiro é uma manifestação cultural, um tipo de espaço religioso onde as pessoas se reúnem para expressar seus dotes artísticos. Ora, sendo um tipo de cultura, cabe ao governo não só preservá-la como apoiá-la financeiramente, pois, argumentam os donos da tese – todos políticos – se o governo apoia festas católicas e de outras expressões religiosas sob o manto cultural, nada mais justo que dar igual tratamento ao, como agora é chamado, “retiros culturais”. Não se iluda, o nome “cultural” agregado a retiro é tão somente para legitimar a tese esperta. Vocês pensam que política é água?
Receber dinheiro público, no fim das contas, é o de menos. Será que ele é? O que está em curso, sem que haja qualquer resistência, é o aparelhamento da igreja sem a menor cerimônia para fins políticos. Desde que as igrejas, de modo geral, entraram na política, isso sempre aconteceu. Sempre foi vergonhoso, mas a coisa se limitava à imposição de candidatos e pedidos de voto no púlpito. Os tais “retiros culturais” são um passo adiante. Manipula-se, destorce-se e impõem-se uma particular compreensão – se quiserem entender assim – de uma atividade simples e comum da igreja, que sempre teve o propósito de descanso, estudo da Bíblia, oração, enfim, renovação espiritual, onde cabia, sim, brincadeiras, cânticos, até pequenas apresentações, mas que nunca pretenderam ser expressão artística de coisa nenhuma. Era lazer e ponto. O que se faz aqui é vestir a igreja com uma casca de banana nanica, como o fez a Chiquita Bacana.
Qual será o próximo passo nesta escalada? Cultos temáticos como já é comum, mas com o objetivo de doutrinar sobre partidos e candidatos? Círculos culturais de oração? Quem será o patrono religioso destas empreitadas? Daniel? Sugiro Roboão, mas desconfio que não será aceito.
O caminho nesta destrambelhada carreira político-religiosa parece sem volta e cobrará seu preço não muito adiante. Não se trata da igreja não participar da política, mas de não se lambuzar a ponto de não se saber mais que certos setores e atividades estão se tornando meras extensões de um programa eleitoral particular. Cuidado para que não se veja muito riso, muita alegria e, na igreja, mais de mil políticos no salão.
Nestes tempos sombrios, tempos de “mamãe eu quero mamar”, em que os políticos protagonizam os piores escândalos, roubam, mentem, desviam milhões, fazem negócios sujos à luz do dia – o Maranhão não está isento desta mazela, como se sabe muito bem – à igreja caberia ser uma espécie de reserva moral, a defensora da ética em sua mais perfeita acepção da palavra, não porque os pastores e líderes não erram, mas porque seriam homens e mulheres, apesar de si mesmos, comprometidos com o que há de mais sublime em termos de aspiração humana, ser imitador de Cristo. Se a canoa não virar...
Enquanto a igreja se encantar e deslumbrar com um protagonismo político tolo e inconsequente – em termos sociais, para ela haverá consequências funestas -, permitir que políticos dela ou de fora se imiscuam em seus negócios ou ela se introduza nas coisas mundanas em sua mais feia aparência, é de se perguntar se este não é um caminho para a mais absoluta irrelevância da mornidão.
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