Palavra do leitor
- 14 de setembro de 2009
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O homem-espelho
Vou lhes contar uma história. Se verídica ou lorota, aí cabe a cada um de vocês julgar. Tudo aconteceu no pacato vilarejo de São Roque. A simplicidade e a alegria de gozar a vida com pouco regiam os hábitos de seus habitantes. As águas magníficas do oceano. O suave ressoar da gaivota. O resplandecer da lua. A areia esbranquiçada do macia, como se fosse tecido de seda. O silêncio da tranquilidade. A ausência de turistas predadores. Tantas outras beldades da natureza. Neste palco sublime, estonteante — quem sabe a casa de algum deus, cenário de uma realidade bucólica, de um imaginário inócuo, de uma estética frugal - está o protagonista de toda essa trama de acontecimentos fascinantes, inadmissíveis e além das muralhas e ponderações das verdades traçadas pelo homem.
Em São Roque, a economia tinha o seu lastro na pesca, no artesanato e na colheita de frutas viçosas e deleitosas. Ali não havia embates, desavenças e arbitrariedades. Sem hesitar, era um lugar não tocado pelas mãos gananciosas, interesseiras e conquistadoras do ser racional. A fé servia como um cordão umbilical que aglutinava um habitante ao outro. As escolhas - no tocante a com quem esculpir, escrever e pintar uma história de intimidade, afinidade e profundo carinho - não desencadeavam repulsa em ninguém.
As lágrimas não permaneciam sozinhas. Em vez disso, outras lágrimas vinham ao seu encalço, com abraço, ternura e esperança. Nos momentos de escassez, as mãos suscitavam uma dobra de três nós e supriam os combalidos, sedentos de pão e água espirituais, de afeto, calor e odor de gente. Eis o ritmo, a melodia, a harmonia e o equilíbrio que imperavam em São Roque. E tudo isso estava ligado ao homem-espelho.
Ora, quem era? Por que recebia esse nome? Seria um mito? Ou então um deus? Confesso a todos os oráculos: não uma resposta na ponta da língua e talvez tenha sido melhor assim. Às vezes, é melhor a doçura dos enigmas do que a fria e enrijecida certeza das verdades. Todos iam ao homem-espelho em busca de inspiração, conselho e discernimento. O interessante dessa absurda história, parecida com as de pescadores, é que o homem-espelho não tinha uma face restrita. Em direção oposta, emanava a face negra, parda, amarela, branca, mulata e, enfim, miscigenada. O seu olhar esparramava a mais gostosa brincadeira. Em suas palavras, florescia o mais aconchegante perdão. A sua ética nos ensinava a não mensurarmos o próximo por sua raça, cor, credo, sexo e outros aspectos de pouca monta.
Infelizmente, algumas garrafas chegaram à praia, trazendo perigosos e insidiosos ensinamentos de como lograr poder, status e reconhecimento, ser mais do que os outros. Não demorou muito, a cobiça insuflou corações, a degradação começou a se disseminar e suas conseqüências foram mais danosas do que a peste bubônica. Por conseguinte, anos e anos de harmonia, justiça e dignidade sucumbiram. O sangue alheio não foi perdoado. O virulento desejo de ser um ícone tramitava por todos os recônditos das almas.
A outrora São Roque, retrato da mais adocicada e afável presença da vida, passou a viver o holocausto, as chacinas, os estupros, a miséria, a mendicância, o fundamentalismo, o racismo, a discriminação, o homicídio, o genocídio e outros estigmas, como mãos sagrando, arruinando e asfixiando outras. Nenhum espaço para a comunidade, liberdade, esperança e infância. De uma maneira tétrica, a cidade parecia Guernica, a célebre obra de Picasso. Os horrores de uma menina abandonada no viaduto em alguma grande metrópole e os gemidos dos perseguidos ganhavam cada vez mais projeção.
Agora, diante dos catastróficos acontecimentos, porque o homem-espelho não agia ou ao menos, numa cólera fulminante, não acabava com tudo e todos? Bem, seria difícil, pelo que sei. O homem espelho havia sido retirado do imaginário e passando a ser tratado como uma data a ser comemorada em determinado período do ano pelas pessoas.
Hoje, estou num gueto, com receio de ser eu mesmo. A farsa representa um meio de não ser consumido. As palavras pérfidas são as estacas para solapar não mais o semelhante, e, sim, os concorrentes, que devem ser deletados. A noite não têm mais veia e sangue de transcendência. A poesia não serpenteia o espírito. O romance e a boêmia foram desfigurados pelos holofotes midiáticos. A arte, o diálogo e a música foram subjugados por uma densa névoa de consumismo. As nuvens estão acinzentadas. As estrelas, opacas. A lua, sem a graça e o tempero das fábulas. O travesseiro não é mais a balsa que nos leva a singrar as águas faceiras do mundo onírico. Restaram os amontoados de corpos em busca do ópio, a loucura, a falta de compromisso, de arte, de estética, de ética e de infância. Quem sabe um apocalipse possa terminar com tudo, para, então, recomeçarmos a partir do nada!
'' muitos dentro da seara evangélica porfiam em manter uma relação com Deus irrisória; semelhante ao indivíduo que contempla o alumiar do dia, através de uma fresta''.
Em São Roque, a economia tinha o seu lastro na pesca, no artesanato e na colheita de frutas viçosas e deleitosas. Ali não havia embates, desavenças e arbitrariedades. Sem hesitar, era um lugar não tocado pelas mãos gananciosas, interesseiras e conquistadoras do ser racional. A fé servia como um cordão umbilical que aglutinava um habitante ao outro. As escolhas - no tocante a com quem esculpir, escrever e pintar uma história de intimidade, afinidade e profundo carinho - não desencadeavam repulsa em ninguém.
As lágrimas não permaneciam sozinhas. Em vez disso, outras lágrimas vinham ao seu encalço, com abraço, ternura e esperança. Nos momentos de escassez, as mãos suscitavam uma dobra de três nós e supriam os combalidos, sedentos de pão e água espirituais, de afeto, calor e odor de gente. Eis o ritmo, a melodia, a harmonia e o equilíbrio que imperavam em São Roque. E tudo isso estava ligado ao homem-espelho.
Ora, quem era? Por que recebia esse nome? Seria um mito? Ou então um deus? Confesso a todos os oráculos: não uma resposta na ponta da língua e talvez tenha sido melhor assim. Às vezes, é melhor a doçura dos enigmas do que a fria e enrijecida certeza das verdades. Todos iam ao homem-espelho em busca de inspiração, conselho e discernimento. O interessante dessa absurda história, parecida com as de pescadores, é que o homem-espelho não tinha uma face restrita. Em direção oposta, emanava a face negra, parda, amarela, branca, mulata e, enfim, miscigenada. O seu olhar esparramava a mais gostosa brincadeira. Em suas palavras, florescia o mais aconchegante perdão. A sua ética nos ensinava a não mensurarmos o próximo por sua raça, cor, credo, sexo e outros aspectos de pouca monta.
Infelizmente, algumas garrafas chegaram à praia, trazendo perigosos e insidiosos ensinamentos de como lograr poder, status e reconhecimento, ser mais do que os outros. Não demorou muito, a cobiça insuflou corações, a degradação começou a se disseminar e suas conseqüências foram mais danosas do que a peste bubônica. Por conseguinte, anos e anos de harmonia, justiça e dignidade sucumbiram. O sangue alheio não foi perdoado. O virulento desejo de ser um ícone tramitava por todos os recônditos das almas.
A outrora São Roque, retrato da mais adocicada e afável presença da vida, passou a viver o holocausto, as chacinas, os estupros, a miséria, a mendicância, o fundamentalismo, o racismo, a discriminação, o homicídio, o genocídio e outros estigmas, como mãos sagrando, arruinando e asfixiando outras. Nenhum espaço para a comunidade, liberdade, esperança e infância. De uma maneira tétrica, a cidade parecia Guernica, a célebre obra de Picasso. Os horrores de uma menina abandonada no viaduto em alguma grande metrópole e os gemidos dos perseguidos ganhavam cada vez mais projeção.
Agora, diante dos catastróficos acontecimentos, porque o homem-espelho não agia ou ao menos, numa cólera fulminante, não acabava com tudo e todos? Bem, seria difícil, pelo que sei. O homem espelho havia sido retirado do imaginário e passando a ser tratado como uma data a ser comemorada em determinado período do ano pelas pessoas.
Hoje, estou num gueto, com receio de ser eu mesmo. A farsa representa um meio de não ser consumido. As palavras pérfidas são as estacas para solapar não mais o semelhante, e, sim, os concorrentes, que devem ser deletados. A noite não têm mais veia e sangue de transcendência. A poesia não serpenteia o espírito. O romance e a boêmia foram desfigurados pelos holofotes midiáticos. A arte, o diálogo e a música foram subjugados por uma densa névoa de consumismo. As nuvens estão acinzentadas. As estrelas, opacas. A lua, sem a graça e o tempero das fábulas. O travesseiro não é mais a balsa que nos leva a singrar as águas faceiras do mundo onírico. Restaram os amontoados de corpos em busca do ópio, a loucura, a falta de compromisso, de arte, de estética, de ética e de infância. Quem sabe um apocalipse possa terminar com tudo, para, então, recomeçarmos a partir do nada!
'' muitos dentro da seara evangélica porfiam em manter uma relação com Deus irrisória; semelhante ao indivíduo que contempla o alumiar do dia, através de uma fresta''.
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