Palavra do leitor
- 07 de março de 2008
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Ipê florido
É ele quem diz que é primavera por estas latitudes, embora esta estação, para nós, amarrados ao Equador, cercados de verde por todos os lados, não consigamos perceber a sucessão característica de cada período estacional. Como só o sol nos rege, pleno, sem concessões, o tempo seco e as chuvas se alternam indiferentes. Agora menos, pois as esperamos para as mangas e cajus e elas não vieram. Tímidas, as fruteiras floresceram mesmo assim. Já se vê que frutos chochos darão.
Sigo absorto à faina de todos os dias, meio mecânico, como uma formiguinha atarefada que faz aquilo que tem que fazer. Aquilo que lhe cabe no formigueiro. Não que eu me pense predestinado, geneticamente determinado para ser formiga-operária, formiga-soldado... Além do que, tenho cá minhas resistências a pré-determinações do que seja. Mas não poucas vezes é este o sentimento. Corta folha, carrega folha, protege o formigueiro, come, dorme, corta folha, carrega folha...
É então, num desses dias, que o encontro explodindo em amarelo. Ele está numa ruaperpendicular à curva que é minha passagem diária no carro. Um lugar sem qualquer atrativo. Mas basta sua visão rápida, e aquele dia é salvo. Aquele amarelo puro penetra pupila adentro e irriga de luz todo meu corpo. A sensação é de um pequeno êxtase diante de um fenômeno que me deixa alumbrado. Depois da visão sigo pensando nele, relembrando os tufos de flores que lhe dão uma aparência como se muitas bolhas encaracoladas de sabão se amontoassem.
Dois, três dias depois as flores começam a cair. Chuva de ouro em pétalas delicadas que um vento febril joga em várias direções e as arrastam pelo chão sujo que fica coalhado, como as ruas de ouro do céu de que fala o Evangelho. Sabe lá qual é a sensação de ficar embaixo desta árvore? As flores caem na cabeça, uma ou outra bate no rosto e rapidamente sentimos seu leve perfume. Caem como se a árvore tivesse pressa. Isso sempre me intrigou. Fico com pena. Queria voltá-las todas ao seu lugar. Sou assaltado pelo mesmo sentimento de Pedro. “Senhor, bom é estarmos aqui” (Mt 17.4). Quero também construir minha tenda ali mesmo e tornar-me amarelo pelo efeito da luz do sol filtrada pelas flores.
A rua de ouro, entretanto, é fugaz, porque ali mesmo, as dores passam dentro das pessoas azedando as flores no chão. A árvore nua, sem flores ou folhas, parece sem vida, exaurida depois de um espetáculo. Como um ator que fez sua melhor e mais arrebatadora performance. A morte aparente é, na verdade, uma trégua, um recolhimento necessário para que novas folhas esbranquiçadas, que logo ficarão verdes, arrebentem dos brotos e vistam novamente a árvore e os frutos, alimentados, se preparem para conceber árvores de Ipê em outros cantos. Se elas se juntassem em seu silêncio de árvore por muitos lugares, espalhariam seu amarelo feito de flores dentro das pessoas, mas são raras na cidade, conheço apenas três. Nos lugares onde estão é como se fossem últimas de uma linhagem, morrerão um dia e ninguém lembrará que ali, de maneira gratuita, um Ipê iluminou dias com ouro. Penso que a felicidade é assim, como o florescimento do Ipê, o que - entendo desta forma - é o ápice. É como a subida ao monte da transfiguração. Somos envolvidos em glória lá em cima. Atravessados de prazer em tal intensidade que dói. Nosso corpo não agüenta. Não dormiríamos mais, não comeríamos... É assim que será no céu. Mas lá haverá um corpo adaptado a esta espécie de alegria, outra fibra constituinte, outro tipo de célula, outro metabolismo. Come felicidade e não morre.
Nosso melhor é o percurso, que tantas vezes perdemos por distraídos. E, se não sabotamos a nós mesmos, é possível, ao longo da vida, termos dias acometidos com picos de festa intraduzível de um Ipê em flor. Mas não, teimamos em querer o alto do monte, a florada em estado permanente sem a espera nem a subida. Dizemos: Isso é felicidade. Um montão de gente estabelece isto como alvo: Eu quero chegar lá (rápido) e ficar. Impossível. Resultado: colhem uma grande frustração. Se infelicitam e se consideram as mais infelizes das criaturas e pioram ainda mais quando se comparam com outros. Quem quer esse tipo de felicidade ainda não aprendeu a saber o que quer. E como não sabem, perdem a paisagem do trajeto onde, talvez, uma maria-sem-vergonha de flor roxa ajudaria a quebrar o cinza do caminho.
Alguns se saem com alguma tentativa tosca de explicar que a felicidade que é para um não é para outro, como se felicidade fosse questão de escolha e gosto. Não é. Quem pensa assim define uma felicidade marcada a ferro pelo materialismo. Pensam: Se eu tivesse tal coisa. Se eu morasse em tal lugar. E seu olhar dá voltas à cata de mediadores, balanças ou metros para comparar, sopesar suas medidas de felicidade. Diminuir esta expectativa espaventosa deve ser compromisso diário. Não como defesa, não sou contra os sonhos, mas como saúde.
É claro que não há fórmula para a felicidade, mesmo o mais obtuso dos sábios, do vendedor de auto-ajuda, sabe, embora finjam para vender. Há uma base comum que explica que não se trata de gosto, esta coisa esquisita que nos dá a ilusão de único. Digo, é do ser humano que se trata. Os ingredientes para uma pessoa feliz passam por tornar o homem/mulher encontrado. Gente fica feliz de modo igual. O necessário é sempre o mesmo.
Lembro da frase do pai do filho que se foi: “...porque este meu filho estava morto e reviveu, estava perdido e foi achado” (Lc 15.24). Perdido, na Bíblia, equivale a morto, percebem? Morte é a ausência do outro numa dor presente. Este “outro” sou eu e você.
Todos aqueles que, como eu, se sentem formiguinhas autômatas às vezes, experimentam uma mortezinha. A ausência chega e se instala em nós e cutuca uma dor de uma saudade que nem sabemos o que é. O sentido maior, que tem a ver com felicidade - pois a vida precisa de propósito - parece perdido. Sentido na vida, no entanto, não é fazer coisas. O curso superior que remunera bem. A casa. O carro. São todas coisas boas, só as relativizo aqui. Sentido é completude, nunca com o outro meu igual, que é parte, sem dúvida – já viram que esta coisa de alma gêmea é ficção. A totalidade é construída em e com Deus. Digam o quiserem, repitam as calejadas histórias de práticas transcendentes, busquem ajuda na psicoterapia ou na religião, só em Deus um se acha, porque nEle o Ipê florido torna-se uma dádiva, a brisa do mar, fresca, com cheiro de sal e água, torna-se um abraço. O beijo na pessoa amada ou o abraço do amigo ou amiga, o cafuné no filho, ganham a dimensão de um Ipê em flor.
Sigo absorto à faina de todos os dias, meio mecânico, como uma formiguinha atarefada que faz aquilo que tem que fazer. Aquilo que lhe cabe no formigueiro. Não que eu me pense predestinado, geneticamente determinado para ser formiga-operária, formiga-soldado... Além do que, tenho cá minhas resistências a pré-determinações do que seja. Mas não poucas vezes é este o sentimento. Corta folha, carrega folha, protege o formigueiro, come, dorme, corta folha, carrega folha...
É então, num desses dias, que o encontro explodindo em amarelo. Ele está numa ruaperpendicular à curva que é minha passagem diária no carro. Um lugar sem qualquer atrativo. Mas basta sua visão rápida, e aquele dia é salvo. Aquele amarelo puro penetra pupila adentro e irriga de luz todo meu corpo. A sensação é de um pequeno êxtase diante de um fenômeno que me deixa alumbrado. Depois da visão sigo pensando nele, relembrando os tufos de flores que lhe dão uma aparência como se muitas bolhas encaracoladas de sabão se amontoassem.
Dois, três dias depois as flores começam a cair. Chuva de ouro em pétalas delicadas que um vento febril joga em várias direções e as arrastam pelo chão sujo que fica coalhado, como as ruas de ouro do céu de que fala o Evangelho. Sabe lá qual é a sensação de ficar embaixo desta árvore? As flores caem na cabeça, uma ou outra bate no rosto e rapidamente sentimos seu leve perfume. Caem como se a árvore tivesse pressa. Isso sempre me intrigou. Fico com pena. Queria voltá-las todas ao seu lugar. Sou assaltado pelo mesmo sentimento de Pedro. “Senhor, bom é estarmos aqui” (Mt 17.4). Quero também construir minha tenda ali mesmo e tornar-me amarelo pelo efeito da luz do sol filtrada pelas flores.
A rua de ouro, entretanto, é fugaz, porque ali mesmo, as dores passam dentro das pessoas azedando as flores no chão. A árvore nua, sem flores ou folhas, parece sem vida, exaurida depois de um espetáculo. Como um ator que fez sua melhor e mais arrebatadora performance. A morte aparente é, na verdade, uma trégua, um recolhimento necessário para que novas folhas esbranquiçadas, que logo ficarão verdes, arrebentem dos brotos e vistam novamente a árvore e os frutos, alimentados, se preparem para conceber árvores de Ipê em outros cantos. Se elas se juntassem em seu silêncio de árvore por muitos lugares, espalhariam seu amarelo feito de flores dentro das pessoas, mas são raras na cidade, conheço apenas três. Nos lugares onde estão é como se fossem últimas de uma linhagem, morrerão um dia e ninguém lembrará que ali, de maneira gratuita, um Ipê iluminou dias com ouro. Penso que a felicidade é assim, como o florescimento do Ipê, o que - entendo desta forma - é o ápice. É como a subida ao monte da transfiguração. Somos envolvidos em glória lá em cima. Atravessados de prazer em tal intensidade que dói. Nosso corpo não agüenta. Não dormiríamos mais, não comeríamos... É assim que será no céu. Mas lá haverá um corpo adaptado a esta espécie de alegria, outra fibra constituinte, outro tipo de célula, outro metabolismo. Come felicidade e não morre.
Nosso melhor é o percurso, que tantas vezes perdemos por distraídos. E, se não sabotamos a nós mesmos, é possível, ao longo da vida, termos dias acometidos com picos de festa intraduzível de um Ipê em flor. Mas não, teimamos em querer o alto do monte, a florada em estado permanente sem a espera nem a subida. Dizemos: Isso é felicidade. Um montão de gente estabelece isto como alvo: Eu quero chegar lá (rápido) e ficar. Impossível. Resultado: colhem uma grande frustração. Se infelicitam e se consideram as mais infelizes das criaturas e pioram ainda mais quando se comparam com outros. Quem quer esse tipo de felicidade ainda não aprendeu a saber o que quer. E como não sabem, perdem a paisagem do trajeto onde, talvez, uma maria-sem-vergonha de flor roxa ajudaria a quebrar o cinza do caminho.
Alguns se saem com alguma tentativa tosca de explicar que a felicidade que é para um não é para outro, como se felicidade fosse questão de escolha e gosto. Não é. Quem pensa assim define uma felicidade marcada a ferro pelo materialismo. Pensam: Se eu tivesse tal coisa. Se eu morasse em tal lugar. E seu olhar dá voltas à cata de mediadores, balanças ou metros para comparar, sopesar suas medidas de felicidade. Diminuir esta expectativa espaventosa deve ser compromisso diário. Não como defesa, não sou contra os sonhos, mas como saúde.
É claro que não há fórmula para a felicidade, mesmo o mais obtuso dos sábios, do vendedor de auto-ajuda, sabe, embora finjam para vender. Há uma base comum que explica que não se trata de gosto, esta coisa esquisita que nos dá a ilusão de único. Digo, é do ser humano que se trata. Os ingredientes para uma pessoa feliz passam por tornar o homem/mulher encontrado. Gente fica feliz de modo igual. O necessário é sempre o mesmo.
Lembro da frase do pai do filho que se foi: “...porque este meu filho estava morto e reviveu, estava perdido e foi achado” (Lc 15.24). Perdido, na Bíblia, equivale a morto, percebem? Morte é a ausência do outro numa dor presente. Este “outro” sou eu e você.
Todos aqueles que, como eu, se sentem formiguinhas autômatas às vezes, experimentam uma mortezinha. A ausência chega e se instala em nós e cutuca uma dor de uma saudade que nem sabemos o que é. O sentido maior, que tem a ver com felicidade - pois a vida precisa de propósito - parece perdido. Sentido na vida, no entanto, não é fazer coisas. O curso superior que remunera bem. A casa. O carro. São todas coisas boas, só as relativizo aqui. Sentido é completude, nunca com o outro meu igual, que é parte, sem dúvida – já viram que esta coisa de alma gêmea é ficção. A totalidade é construída em e com Deus. Digam o quiserem, repitam as calejadas histórias de práticas transcendentes, busquem ajuda na psicoterapia ou na religião, só em Deus um se acha, porque nEle o Ipê florido torna-se uma dádiva, a brisa do mar, fresca, com cheiro de sal e água, torna-se um abraço. O beijo na pessoa amada ou o abraço do amigo ou amiga, o cafuné no filho, ganham a dimensão de um Ipê em flor.
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