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Palavra do leitor

Esquivar e Tempos de descrença

(mais duas crônicas da coletânea 'algumas fagulhas')

Esquivar

"o ideal do evangelho autêntico implica decidir pelo serviço espiritual, ético e existencial, a começar dentro da comunhão; para, então, tão somente assim, falarmos de um processo missiológico urbano e transcultural sério e honesto."

Os casos sobre improbidade administrativa, indevida aplicabilidade dos recursos públicos, práticas de nepotismo e outras maracutaias são fluentes no cenário político brasileiro. Mormente todos os esforços desenvolvidos pelos setores governamentais, pelas organizações não governamentais e pelos demais interlocutores da sociedade civil a efeito de combater e erradicar com os focos de corrupção, tudo parece um desperdício.

De tudo isso, sempre me deparo com uma maléfica resposta, ao ouvir os comentários das pessoas, diante da corrupção:

- Se você estivesse lá, não faria o mesmo?

No desdobrar dessas reflexões, vou a direção da frase esculpida pelo escritor, jornalista, roteirista, dramaturgo e poeta português – Jose Saramango:

‘’E Deus, falando à multidão anunciou. A partir de hoje chamar-me-eis Justiça. E a multidão respondeu-lhe: Justiça nos já a temos e não nos atende. Sendo assim, tomarei o nome de Direito. E a multidão tornou-lhe a responder: Direito já nos o temos e não nos conhece. E Deus: Nesse caso, ficarei com o nome de Caridade, que é um nome bonito. Disse a multidão: Não necessitamos de caridade, o que queremos é uma Justiça que se cumpra e um Direito que nos respeite. ’’ (Jose Saramago: escritor, roteirista, jornalista, dramaturgo e poeta português).’’

De notar, as explanações oferecidas por José Saramango descortinam todo um estado de decepção ora experimentado pro nossa sociedade.

Cada vez mais, uma névoa espessa de impunidade, de desumanização e conformismo tem sido arraigado no nosso cotidiano.

Tetricamente, acostumamo-nos com homicidas, a degradação de jovens drogados, o declínio das instituições públicas e da família, a banalização de uma ética voltada ao dever e a responsabilidade.

Aliás, deixo bem claro, não objetivo ser um puritano, ou um conservador tolhedor das liberdades individuais, comunitárias e públicas. No entanto aqui ponho em pauta o discurso cristão atual:

- Será que não procedemos segundo as leis do mercado, de uma cultura pragmática, utilitária e participarmos de uma justiça, de uma liberdade, de uma humanidade, de uma dignidade de fachada?

Indo ao texto de Jeremias 22.03, encontramos o clamor do profeta a fim de sermos um não colossal, diante das indiferenças, da iniqüidades e das impiedades:

‘’ Assim diz o SENHOR: Exercei o juízo e a justiça, e livrai o espoliado da mão do opressor; e não oprimais ao estrangeiro, nem ao órfão, nem à viúva; não façais violência, nem derrameis sangue inocente neste lugar.’’

Das palavras até aqui enfocadas, estamos dispostos a assumirmos uma espiritualidade de combate e transformação?

Tempos de descrença

As lágrimas estão em extinção? A partir dessa pergunta, comecei a observar um processo de descrença, entranhado no presente século. Deve ser dito, diante de uma realidade de profunda solidão, acabamos por desacreditar na possibilidade de um futuro melhor.

Vale dizer, as palavras esculpidas por Mario Quintana nos convidam para uma salutar discussão sobre a vida, através de um trecho de seu poema:

‘’Milagre não é ter Jesus
Dado visão ao cego,
Feito falar o mudo
Milagre é a gente acreditar nisto tudo.’’

Ora, você pode, então, interpelar:

- Qual a correlação a ser estabelecida entre lágrimas, descrença e milagre?

Simplesmente, sem pretender dar respostas categóricas, vejo nesses três elementos, uma urgência para resgatarmos nossa capacidade de ser humano. Deve ser destacado, principalmente, em virtude de trilharmos por uma panorâmica de pessoas enclausuradas e embevecidas pela utopia de uma cultura da auto-satisfação, do auto-reconhecimento, do autoconhecimento e por ai vai.

Vamos mais adiante, prosseguimos tresloucadamente por aceitação e aprovação e, como desfecho, negligenciamos o quão fundamental e salutar representa uma vida de interdependência. Em tempos de sequiosidade e afetuosidade, torna-se de bom parecer resgatarmos uma liberdade para recomeçar.

Neste ponto, dirijo-me ao episodio de Pedro, quando, literalmente, foi banhado pelo recomeçar de Cristo, do vamos lá, de aceitar as mãos estendidas. Sem qualquer contestação, Pedro exemplifica o ser humano na dúvida, na insegurança, na descrença e que decide pelo recomeçar, por não menosprezar as mãos estendidas, por não fazer da culpa e condenação um subterfúgio.
São Paulo - SP
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