Palavra do leitor
- 09 de maio de 2011
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Depois da entrevista, a Morte visita o Instituto Médico Legal
Entrei no IML para exame de corpo de delito do meu cliente.
O ambiente cheirava a formol. Quem estaria sendo dissecado àquelas horas nas dependências ao lado? Quem dissecava com o título de médico legista? Que tipo era? Gostaria de crianças? Cheiraria uma flor? Usaria a lâmina afiada para cortar um bolo de aniversário com graça e delicadeza? Seria uma mulher ou um homem bruto a realizar os cortes?
E se fosse uma mulher bela, de olhos azuis e face rósea, mas com o olhar de quem gritasse aos técnicos, ‘tragam o próximo cadáver’!
A primeira citação documental acerca de exame cadavérico em vítima de homicídio, segundo os relatos do historiador Suetônio, refere-se à realizada em Júlio César (44 a.C). César fora vítima de um ataque provindo de senadores liderado por seu filho adotivo Marcus Julius Brutus. O exame cadavérico foi realizado por Antístio, médico e amigo do imperador-deus: 23 golpes de adaga, sendo apenas um deles mortal.
Ouço barulho de metais na mesa de aço com furos por onde correm os líquidos, o odor fétido de sangue coalhado e a água do chuveirinho a limpar a lama lavada dos cadáveres nus. Incisões profundas com um estilete da altura da garganta até o púbis são feitas, como me contaram.
O corpo é retalhado, vísceras retiradas, tudo é exposto, vasculhado e depois costurado com barbante feito de sisal. Compreendi então o que se passava na minha mente e a minha angustia pessoal. O que se fazia ali no IML era científico e correto, mas me levava a pensar na perda total do sagrado de um corpo humano, pensei.
Imaginei o desespero de familiares que esperavam na ante-sala os corpos a serem reconhecidos, depois de retalhados. Mas lá dentro deveria ser um açougue mesmo... Naquele momento o legista conversaria o tempo todo com o defunto.
Lá dentro, continuei a imaginar, dissecava-se e seguia o trabalho de detetive. Puxa, estica, aperta, rasga a roupa do corpo frio e enrijecido, e sempre perguntando ao defunto os porquês.
Deveria ter de tudo ali: cadáver envenenado, queimado, explodido, asfixiado, torturado, afogado, estuprado, baleado, esfaqueado. Se baleado, o médico legista deveria ir cortando tudo em busca da bala perdida. Cortaria e indagaria ao defunto dos motivos, das dilacerações. Muitos cadáveres autopsiados devem ter os olhos escancarados enquanto se lhes retalham, imaginei horrorizado.
Aqui fora, porém, os olhares são de dor e angústia incontida. Quem terá sido aquela adolescente com oito balas de grosso calibre que deixaram apenas um pedaço da cabeça? Como é que um ser humano criado por Deus é capaz de fazer uma coisa dessas?
Há os que vêem aí a mão do diabo: “Foi ele! Foi ele!”. Outros preferem o realismo: o homem é a prova cabal da inexistência de Deus. Os práticos indagam: terá saído tudo errado na criação? Não é possível que ele tenha sido criado pela divindade boa e pura! Outros filosofam: eis aí o resultado do livre arbítrio. Cada cabeça, uma sentença, arbitram.
Lembrei-me de Gênesis em um dos seus mais lindos relatos mitológicos de origem mesopotâmica sobre a criação. Nem o Enuma Elish chega perto. Uma terrível advertência deve ter soado naquela vastidão de beleza primitiva: ‘no dia em que dela comerdes, certamente morrerás... ’. Eis a herança maldita, pensei.
Certo inglês, por volta de 1859, achou que a morte, porém, não era maldição, mas um processo natural evolutivo próprio da criação. Tudo nasce, cresce e morre. Por mais de dois mil anos a fé cristã tem discordado dele.
Saí do IML aquele dia pensando na morte, naquela mistura tresloucada de realismo com teologia; sentindo o gosto de morte, o cheiro da morte e do seu odor, o formol. Conclui que não tenho medo de morte. (Ouço ‘Castelo Forte’ nesse exato momento!). Nem eu nem minha esposa temos medo da morte. Ela, pelas suas razões evangélicas, eu, pelas minhas.
Mas medo de morrer eu tenho.
Vi o que fizeram com um grande amigo para mantê-lo vivo. Aquilo era um crime hediondo com a ajuda do estilete e da lei. Uma invasão monstruosa naquele corpo seco como bambu.
Tenho medo de morrer, também, por conta dos minutinhos finais antes que a consciência apague de vez.
Penso se a memória, nos minutos finais, não vai dar um show de flashbacks de coisas feias ou boas que deixei de fazer; de coisas que poderia ter feito e não fiz; de momentos que deveriam ser curtidos, mas deixei passar.
Meu medo é da minha mente, também! Da morte, não. Eu já não existira mesmo antes-de-vir-a-ser um dia no mundo. Da morte, portanto, não tenho medo.
Para dizer a verdade, eu tenho fobia é de elevador, varanda de apartamento a partir do 2º andar. Mas medo da morte não tenho. Impressionei-me com o comportamento dos japoneses durante o terremoto seguido do tsunami. E olha que não é um povo Cristão. Se fosse no Brasil, com essa religiosidade anêmica, superficial e animista...
Agora, aqui entre nós: eu tenho pavor, horror, medo mesmo, eu e minha mulher temos: eu de rato; ela de barata!
O ambiente cheirava a formol. Quem estaria sendo dissecado àquelas horas nas dependências ao lado? Quem dissecava com o título de médico legista? Que tipo era? Gostaria de crianças? Cheiraria uma flor? Usaria a lâmina afiada para cortar um bolo de aniversário com graça e delicadeza? Seria uma mulher ou um homem bruto a realizar os cortes?
E se fosse uma mulher bela, de olhos azuis e face rósea, mas com o olhar de quem gritasse aos técnicos, ‘tragam o próximo cadáver’!
A primeira citação documental acerca de exame cadavérico em vítima de homicídio, segundo os relatos do historiador Suetônio, refere-se à realizada em Júlio César (44 a.C). César fora vítima de um ataque provindo de senadores liderado por seu filho adotivo Marcus Julius Brutus. O exame cadavérico foi realizado por Antístio, médico e amigo do imperador-deus: 23 golpes de adaga, sendo apenas um deles mortal.
Ouço barulho de metais na mesa de aço com furos por onde correm os líquidos, o odor fétido de sangue coalhado e a água do chuveirinho a limpar a lama lavada dos cadáveres nus. Incisões profundas com um estilete da altura da garganta até o púbis são feitas, como me contaram.
O corpo é retalhado, vísceras retiradas, tudo é exposto, vasculhado e depois costurado com barbante feito de sisal. Compreendi então o que se passava na minha mente e a minha angustia pessoal. O que se fazia ali no IML era científico e correto, mas me levava a pensar na perda total do sagrado de um corpo humano, pensei.
Imaginei o desespero de familiares que esperavam na ante-sala os corpos a serem reconhecidos, depois de retalhados. Mas lá dentro deveria ser um açougue mesmo... Naquele momento o legista conversaria o tempo todo com o defunto.
Lá dentro, continuei a imaginar, dissecava-se e seguia o trabalho de detetive. Puxa, estica, aperta, rasga a roupa do corpo frio e enrijecido, e sempre perguntando ao defunto os porquês.
Deveria ter de tudo ali: cadáver envenenado, queimado, explodido, asfixiado, torturado, afogado, estuprado, baleado, esfaqueado. Se baleado, o médico legista deveria ir cortando tudo em busca da bala perdida. Cortaria e indagaria ao defunto dos motivos, das dilacerações. Muitos cadáveres autopsiados devem ter os olhos escancarados enquanto se lhes retalham, imaginei horrorizado.
Aqui fora, porém, os olhares são de dor e angústia incontida. Quem terá sido aquela adolescente com oito balas de grosso calibre que deixaram apenas um pedaço da cabeça? Como é que um ser humano criado por Deus é capaz de fazer uma coisa dessas?
Há os que vêem aí a mão do diabo: “Foi ele! Foi ele!”. Outros preferem o realismo: o homem é a prova cabal da inexistência de Deus. Os práticos indagam: terá saído tudo errado na criação? Não é possível que ele tenha sido criado pela divindade boa e pura! Outros filosofam: eis aí o resultado do livre arbítrio. Cada cabeça, uma sentença, arbitram.
Lembrei-me de Gênesis em um dos seus mais lindos relatos mitológicos de origem mesopotâmica sobre a criação. Nem o Enuma Elish chega perto. Uma terrível advertência deve ter soado naquela vastidão de beleza primitiva: ‘no dia em que dela comerdes, certamente morrerás... ’. Eis a herança maldita, pensei.
Certo inglês, por volta de 1859, achou que a morte, porém, não era maldição, mas um processo natural evolutivo próprio da criação. Tudo nasce, cresce e morre. Por mais de dois mil anos a fé cristã tem discordado dele.
Saí do IML aquele dia pensando na morte, naquela mistura tresloucada de realismo com teologia; sentindo o gosto de morte, o cheiro da morte e do seu odor, o formol. Conclui que não tenho medo de morte. (Ouço ‘Castelo Forte’ nesse exato momento!). Nem eu nem minha esposa temos medo da morte. Ela, pelas suas razões evangélicas, eu, pelas minhas.
Mas medo de morrer eu tenho.
Vi o que fizeram com um grande amigo para mantê-lo vivo. Aquilo era um crime hediondo com a ajuda do estilete e da lei. Uma invasão monstruosa naquele corpo seco como bambu.
Tenho medo de morrer, também, por conta dos minutinhos finais antes que a consciência apague de vez.
Penso se a memória, nos minutos finais, não vai dar um show de flashbacks de coisas feias ou boas que deixei de fazer; de coisas que poderia ter feito e não fiz; de momentos que deveriam ser curtidos, mas deixei passar.
Meu medo é da minha mente, também! Da morte, não. Eu já não existira mesmo antes-de-vir-a-ser um dia no mundo. Da morte, portanto, não tenho medo.
Para dizer a verdade, eu tenho fobia é de elevador, varanda de apartamento a partir do 2º andar. Mas medo da morte não tenho. Impressionei-me com o comportamento dos japoneses durante o terremoto seguido do tsunami. E olha que não é um povo Cristão. Se fosse no Brasil, com essa religiosidade anêmica, superficial e animista...
Agora, aqui entre nós: eu tenho pavor, horror, medo mesmo, eu e minha mulher temos: eu de rato; ela de barata!
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