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Palavra do leitor

Cortesia e gratidão

Em 1997, um guri mal vestido foi até uma livraria evangélica olhar a seção de CDs, mas como sempre observava as prateleiras e perguntava os preços sem nada comprar, um dia uma das vendedoras colocou as mãos sobre os ombros dele com delicadeza e o retirou do local. Ele não era alvo preferencial no atendimento do estabelecimento comercial, claro. Mas faltou somente um pouquinho mais de cortesia.

A paixão daquele garoto por música era tamanha que parte do dinheiro que ganhava (vendendo picolé) era gasto comprando Fitas K7 nas bancas de Camelô. Aos treze anos, já tinha caixas de sapatos repletas dessas Fitas. Quando ouvia algumas músicas e não as encontrava disponíveis para ouvir em seu Walkmam (movido à pilhas), comprava Fitas K7 virgens (Sony, AIWA, Phipllips) e pedia para outros que tinham os CDs gravar.

Menos de dois anos após ter sido expulso carinhosamente daquela Loja (por reiteradas vezes perguntar os preços e nada comprar), agora com seu primeiro "salário", todo arrumadinho, cabelo cortado, camisa por dentro da calça, sapatos limpos, unhas cortadas (quase formatado nas regras de ABNT) retornou à referida loja e comprou à vista o que já sabia quanto custaria. A vendedora que um dia o pôs para fora, estava em outro setor, próximo ao Caixa. Talvez tivesse sido promovida a gerente. Disse ao rapazinho na hora do pagamento: "Olá, irmãzinho, lembro de você!". Momento quase constrangedor sem sinal de rancor ou menção ao vilipêndio.

Cortesia está relacionada à delicadeza, gentileza, educação e bom trato para com o próximo. A Bíblia narra muitas histórias de cortesia e gratidão.

Abraão foi cortês para com seu sobrinho Ló, mesmo a recíproca não sendo verdadeira. Apesar disso, este patriarca não mediu esforços ao enfrentar perigos para salvar Ló tempos depois, quando este esteve em grande perigo (Gn 12-14).

José foi outro exemplo de cortesia. Sendo um hebreu vendido como escravo pelos próprios irmãos, tornando-se poderoso líder político do Egito (o segundo maior homem poderoso do mundo na época), tratou todos eles (irmãos) sem ressentimento ao reencontrá-los anos depois. (Gn 37-50).

Davi agiu com gentileza e perdão para com Simei, que antes o injuriou e ultrajou. O mesmo fez Davi para com Saul, mesmo tendo oportunidade de matá-lo algumas vezes – no mínimo para se defender. Poderíamos lembrar de seu perdão ao ingrato Nabal por meio de Abigail, etc. (exemplos que evidenciam porque Davi era considerado um Homem segundo o coração de Deus -- I Sm; II Sm) e o monarca babilônico tratou o rei prisioneiro Joaquim com máxima gentileza (Jr 52).

Assisti a uma interessante matéria de um pinguim encontrado sujo de petróleo e areia, mas carinhosamente cuidado por um pescador chamado João. Mesmo depois de jogado ao mar para voltar ao seu habitat, a ave aquática retornava aos braços do senhor que dela cuidou. Segundo a autora da reportagem, o pinguim reconhecia a voz de João e permitia que apenas ele o tocasse. Também nadava cerca de 8 mil km para o local de sua reprodução, mas todos os anos regressava até João. Embora reação animal naturalmente instintiva, torna-se inevitável desassociar nessa história cortesia e gratidão.

O filósofo São Tomás de Aquino em sua primorosa obra "Tratado da Gratidão" resumiu a virtude de ser grato em três dimensões básicas: 1) reconhecimento do benefício recebido; 2) dar graças e elogiar de viva voz o benfeitor pelo favor que recebeu; 3) "recompensar o benfeitor na medida das possibilidades do beneficiado em tempo oportuno", manifestando compromisso de vínculo respeitoso.

Sem a ação divina no coração humano pela graça e Santo Espírito, mesmo os gestos mais generosos de bondade e altruísmo de alguém estaria eivado de egoísmo ou orgulho, mas assim como é preciso reconhecer a atuação dessa graça nas melhores ações humanas em prol do próximo, de igual modo um sublime ato bondoso não espera aplauso ou retribuição, muito menos exige reconhecimento ou eterna dívida de gratidão.

Por outro lado, genuína gratidão é humildade que não se confunde com bajulação, subserviência, renúncia dos próprios valores ou supressão da personalidade como tentativa de agradar quem um dia o ajudou. Mas assim como a verdadeira prática do bem vem acompanhada do autoesquecimento, a sincera gratidão guarda na memória do coração devido apreço ao benfeitor por parte de quem se considera de alguma forma devedor.

Ano passado, informei casualmente a um amigo (via whatsapp) que estava noutro estado, sendo surpreendido ao saber que seu concunhado morava na mesma capital onde eu estava hospedado. Mediado o contato e apresentado ao novo amigo (e família), recebi calorosa recepção e fui tratado não como desconhecido, mas um irmão bem-vindo. Por toda generosidade recebida, confirmei outra vez: o poder do amor em ação tem efeito muito mais eficaz e proveitoso que qualquer recordação negativa que tenhamos na experiência vivida - mesmo com professos cristãos. Assim, resta-nos compartilhar a cortesia e guardar sempre a gratidão.
Alagoinhas - BA
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