Palavra do leitor
- 12 de fevereiro de 2009
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A tentação e as fomes
A cena é conhecida. Fala-se dela há muito tempo. Fascina, causa estranheza e temor. Basta ler as primeiras palavras e as imagens nos vêm já convertidas em filmes mentais, inspiradas em versões cinematográficas de outros. Jesus, com o rosto sofredor ou um olhar perdido para os céus, num lugar ermo qualquer, e um homem a representar o diabo, saltitante ao redor, sorrisos histéricos, olhar pontiagudo de maldade a sugerir-lhe que transforme pedras em pães.
Os três evangelistas afirmam a mesma coisa: Jesus esteve quarenta dias e quarenta noites naquele lugar, em jejum. Lucas e Marcos dizem que foi tentado ao longo de todo este período. Marcos, lacônico, acrescenta que estava entre feras, mas os anjos o serviam e isso é tudo que diz sobre o episódio. Mateus e Lucas afirmam que ao final deste período teve fome. Óbvio, você diria. Não estava ali um faquir, um ET, uma múmia, um comedor de luz como alguns hoje se intitulam, nem um anjo, era um homem.
Estar no deserto não significa apenas um lugar distante, sem condições de sobrevivência, quer dizer, acima de tudo, estar só, sem possibilidade de ajuda dos seus. Autenticar-se, construir-se, gerar uma identidade, pode até usar materiais dos ancestrais, do entorno, mas é sempre um trabalho solitário. Você luta, como Ele, contra você mesmo. Na verdade, contra as forças indomadas em você, espicaçadas por desejos sem freio, loucos para se realizarem agora. A tentação é filha do desejo. As fomes várias, o anseio vário, as tendências, as verdades, as certezas, a fé. Quais serão as suas que, afinal, dirão quem você é?
A palavra em Mateus anago=levado (pelo Espírito - 4.1) metaforicamente aponta para alguém que zarpou de um porto, fez vela, lançou-se ao mar. Esta viagem não tem volta. Não no mesmo instante. Quem é o mesmo depois de tantos portos e paisagens? Ali Ele se definiria irremediavelmente como o Cristo. Apenas porque rejeitaria a sugestão diabólica? Por que não lhe obedeceria? Tenho dificuldade de aceitar esta interpretação. Parece-me por demais simples. Onde está o motivo para pecar?
Técnicos afirmam que uma pessoa agüenta, em média, 60 dias em jejum. O problema é que o corpo se devora a si mesmo e morre-se de outras complicações. Certamente satisfazer ao corpo faminto não era (não é) pecado. A questão é quando isso substitui um ato maior. A entrega absoluta ao Espírito não havia acabado. Tomar as rédeas quando estas são determinadas pelo instinto de sobrevivência, pela fome que doía, pela necessidade de se salvar, não seria entrega. Seria razoável, um corpo em quarenta dias de jejum, convenhamos, estar às portas da morte. Há razões maiores que se impõem, diriam os teólogos, mais espirituais. Pode ser.
Quero, neste momento, falar daquelas razões que nos desconstroem, às quais nos entregamos em substituto de outro algo faltante. A diferença do remédio para o veneno, diz-se, é a dosagem. O pecado, o perder-se, acontecem nas coisas comuns, banais mesmo. Comer é saudável e necessário, mas desagregações internas na alma fazem o sujeito comer demais ou não comer. É interessante como isso afeta, mental e fisicamente, a imagem de si. Nas ciências da mente chamam estes problemas de transtornos alimentares. Mas comer ou jejuar é apenas a ponta do iceberg.
O que se torna pecado ou doença no ato é a exacerbação de algo natural e normal, mas que foi corrompido por outra necessidade que, no caso, comer não supriria. Então, sugiro, a questão lá no deserto como aqui, se trata de um tipo de controle – que se sustenta na submissão – que no caso dEle – e deve ser o nosso também – não deve se fiar em si mesmo ou nos sinais mentais e/ou corporais que nos dizem aos gritos que algo precisa ser feito, uma necessidade precisa ser suprida. Haverá sugestões de fórmulas espirituais, remédios, meditações, imprecações, mantras, contra o diabo, esconjuros, para um se safar. Mas ele, com toda sua astúcia, está lá fora. Aqui, na intimidade, estamos nós sozinhos. Ele aponta e avulta os desejos, subverte-os com manjares coloridos. Fotografia de comida Fast Food. Dá água na boca, não dá? A resposta de Jesus é mais que espiritual no sentido religioso do termo, é realista: “Não só de pão viverá o homem, mas de toda palavra que procede da boca de Deus.” (Mt 4.4)
Comeremos palavras? Palavra, normalmente, se vomita em verborragias incontroláveis, vendo da nossa perspectiva. Mas se come palavras, sim. Aqui diferem diametralmente o realista de fé do religioso. Aquele não tem ilusões de atalhos. Tem um saber cristalino sobre si, seus limites e sua fome. Sua percepção não tremeluz se falta luz, pois apenas um sentido lhe será bastante para notar o engano. É porque não confia na imagem aparente que os sentidos produzem. Já o religioso, fia-se em sua condição de guardar dias santos, fazer obrigações e realizar purificações rituais. Estriba-se em sua condição legal ou casta. Refestela-se com o próprio saber. Morrerá como peixe.
Ora, o realista de fé, sabe que pedra sempre será pedra e ainda que tenha o poder de transformá-la em pão, não o fará não porque não possa, mas porque sabe que submeter-se ao desígnio de Deus pede a ação completa e cabal dEle, nunca daquele que se submete. Todo este poder contido é deixado aos pés daquEle que o convoca e mesmo ante a iminência da morte, não será usado. O desafio maior se coloca porque em Jesus há uma dinâmica que demanda a utilização do poder. Ele não foi simplesmente depositado aos pés do trono, enquanto Ele esperava passivamente uma ordem. Ele está em movimento e o cosmo inteiro se movimenta ao lado e em sentido contrário.
Conosco é assim também. A fortaleza de um será testada no movimento. Nas incontáveis ofertas que se nos mostram ao lado e que cutucam nossos mais primitivos instintos. São todas armadilhas que a um toque, despertarão o vil em nós. Como na mesa posta no filme “O labirinto do fauno”. A menina fora alertada pelo fauno de que não deveria tocar em nada da mesa ornada com todo tipo de alimento desejável, sob pena de acordar o monstro (Homem pálido). Ela não resiste e seu ato termina por matar duas fadas que a acompanham. A conseqüência, além da morte de inocentes, é que ela se torna indigna de se tornar quem de fato era, uma princesa.
Os três evangelistas afirmam a mesma coisa: Jesus esteve quarenta dias e quarenta noites naquele lugar, em jejum. Lucas e Marcos dizem que foi tentado ao longo de todo este período. Marcos, lacônico, acrescenta que estava entre feras, mas os anjos o serviam e isso é tudo que diz sobre o episódio. Mateus e Lucas afirmam que ao final deste período teve fome. Óbvio, você diria. Não estava ali um faquir, um ET, uma múmia, um comedor de luz como alguns hoje se intitulam, nem um anjo, era um homem.
Estar no deserto não significa apenas um lugar distante, sem condições de sobrevivência, quer dizer, acima de tudo, estar só, sem possibilidade de ajuda dos seus. Autenticar-se, construir-se, gerar uma identidade, pode até usar materiais dos ancestrais, do entorno, mas é sempre um trabalho solitário. Você luta, como Ele, contra você mesmo. Na verdade, contra as forças indomadas em você, espicaçadas por desejos sem freio, loucos para se realizarem agora. A tentação é filha do desejo. As fomes várias, o anseio vário, as tendências, as verdades, as certezas, a fé. Quais serão as suas que, afinal, dirão quem você é?
A palavra em Mateus anago=levado (pelo Espírito - 4.1) metaforicamente aponta para alguém que zarpou de um porto, fez vela, lançou-se ao mar. Esta viagem não tem volta. Não no mesmo instante. Quem é o mesmo depois de tantos portos e paisagens? Ali Ele se definiria irremediavelmente como o Cristo. Apenas porque rejeitaria a sugestão diabólica? Por que não lhe obedeceria? Tenho dificuldade de aceitar esta interpretação. Parece-me por demais simples. Onde está o motivo para pecar?
Técnicos afirmam que uma pessoa agüenta, em média, 60 dias em jejum. O problema é que o corpo se devora a si mesmo e morre-se de outras complicações. Certamente satisfazer ao corpo faminto não era (não é) pecado. A questão é quando isso substitui um ato maior. A entrega absoluta ao Espírito não havia acabado. Tomar as rédeas quando estas são determinadas pelo instinto de sobrevivência, pela fome que doía, pela necessidade de se salvar, não seria entrega. Seria razoável, um corpo em quarenta dias de jejum, convenhamos, estar às portas da morte. Há razões maiores que se impõem, diriam os teólogos, mais espirituais. Pode ser.
Quero, neste momento, falar daquelas razões que nos desconstroem, às quais nos entregamos em substituto de outro algo faltante. A diferença do remédio para o veneno, diz-se, é a dosagem. O pecado, o perder-se, acontecem nas coisas comuns, banais mesmo. Comer é saudável e necessário, mas desagregações internas na alma fazem o sujeito comer demais ou não comer. É interessante como isso afeta, mental e fisicamente, a imagem de si. Nas ciências da mente chamam estes problemas de transtornos alimentares. Mas comer ou jejuar é apenas a ponta do iceberg.
O que se torna pecado ou doença no ato é a exacerbação de algo natural e normal, mas que foi corrompido por outra necessidade que, no caso, comer não supriria. Então, sugiro, a questão lá no deserto como aqui, se trata de um tipo de controle – que se sustenta na submissão – que no caso dEle – e deve ser o nosso também – não deve se fiar em si mesmo ou nos sinais mentais e/ou corporais que nos dizem aos gritos que algo precisa ser feito, uma necessidade precisa ser suprida. Haverá sugestões de fórmulas espirituais, remédios, meditações, imprecações, mantras, contra o diabo, esconjuros, para um se safar. Mas ele, com toda sua astúcia, está lá fora. Aqui, na intimidade, estamos nós sozinhos. Ele aponta e avulta os desejos, subverte-os com manjares coloridos. Fotografia de comida Fast Food. Dá água na boca, não dá? A resposta de Jesus é mais que espiritual no sentido religioso do termo, é realista: “Não só de pão viverá o homem, mas de toda palavra que procede da boca de Deus.” (Mt 4.4)
Comeremos palavras? Palavra, normalmente, se vomita em verborragias incontroláveis, vendo da nossa perspectiva. Mas se come palavras, sim. Aqui diferem diametralmente o realista de fé do religioso. Aquele não tem ilusões de atalhos. Tem um saber cristalino sobre si, seus limites e sua fome. Sua percepção não tremeluz se falta luz, pois apenas um sentido lhe será bastante para notar o engano. É porque não confia na imagem aparente que os sentidos produzem. Já o religioso, fia-se em sua condição de guardar dias santos, fazer obrigações e realizar purificações rituais. Estriba-se em sua condição legal ou casta. Refestela-se com o próprio saber. Morrerá como peixe.
Ora, o realista de fé, sabe que pedra sempre será pedra e ainda que tenha o poder de transformá-la em pão, não o fará não porque não possa, mas porque sabe que submeter-se ao desígnio de Deus pede a ação completa e cabal dEle, nunca daquele que se submete. Todo este poder contido é deixado aos pés daquEle que o convoca e mesmo ante a iminência da morte, não será usado. O desafio maior se coloca porque em Jesus há uma dinâmica que demanda a utilização do poder. Ele não foi simplesmente depositado aos pés do trono, enquanto Ele esperava passivamente uma ordem. Ele está em movimento e o cosmo inteiro se movimenta ao lado e em sentido contrário.
Conosco é assim também. A fortaleza de um será testada no movimento. Nas incontáveis ofertas que se nos mostram ao lado e que cutucam nossos mais primitivos instintos. São todas armadilhas que a um toque, despertarão o vil em nós. Como na mesa posta no filme “O labirinto do fauno”. A menina fora alertada pelo fauno de que não deveria tocar em nada da mesa ornada com todo tipo de alimento desejável, sob pena de acordar o monstro (Homem pálido). Ela não resiste e seu ato termina por matar duas fadas que a acompanham. A conseqüência, além da morte de inocentes, é que ela se torna indigna de se tornar quem de fato era, uma princesa.
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