Palavra do leitor
- 13 de janeiro de 2010
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A singularidade da fé cristã
Existem diversas maneiras de entender o mundo, de dar-lhe um significado último. Genericamente falando, dois grandes grupos. O das que negam a existência de algo além da humanidade (transcendente a ela), e o das que a aceitam. O primeiro nega a possibilidade de qualquer divindade; o segundo, a aceita. Divindade aqui definida como qualquer ser ou instância que, conscientemente, influencia e/ou determina os rumos dos acontecimentos vivenciados por nós. O primeiro grupo é a-teísta, o segundo, teísta.
A psicanálise coloca a religião como fruto do inconsciente individual ou coletivo, uma criação que nasce de circunstâncias desconhecidas (inconscientes). Deus ou deuses têm características e atitudes que são humanas, e vistas como se não o fossem (mecanismo batizado por Freud como "projeção": ver no outro aquilo que não consigo ver em mim). Ela é uma fonte de crítica feroz a religião em si, mas sem unanimidade dentro da escola freudiana. Já Jung via em toda religião "um sistema terapêutico", o que não significa, necessariamente, endossar alguma, ou aceitar como verdadeira. Os ateístas encontram nela e em outras ferramentas (como a sociologia) argumentos científicos para defender sua afirmativa: nada existe além do ser humano, seja força cósmica, seja um ser maior que possa ser chamado deus.
Sendo construção humana, a religião ocupa um lugar no meio da espécie, que pode ser lúgubre (quando manipulada politicamente) ou muito lindo, quando vivenciada apropriadamente.
Cada religião exclui as outras, à medida que desenha um(ns) deus(es) que exclue(m) outro(s), sob o risco de, não o fazendo, ser(em) uma quimera sem sentido. Propagar-se como síntese de todas é afirmar ser a síntese superior e diferente de cada uma individualmente; ter aspectos de várias religiões não significa abrigar todos os detalhes de todas...
No mercado religioso, há várias "mercadorias" à disposição. Cada um fará sua escolha inicial (inclusive a de não visitar o mercado, para os ateístas), conforme sua cultura, criação, perfil ideológico, identidade, etc. Sempre é possível converter-se, escolher outro referencial. E a adoção de determinado esquema obedece a diversos graus de comprometimento pessoal, desde o meramente social (encontros periódicos como cultos e missas) até o vital (recusa em negar sua religião mesmo ao custo da própria vida). E todas as religiões abrigam fiéis dentro deste amplo espectro, e o martírio não é propriedade exclusiva de nenhuma, assim como as ocorrências sobrenaturais (curas, visões, falar em línguas estranhas, etc).
O que chamo de singular, único, na fé cristã? Não é o número de adeptos nominais, nem sua mensagem de amor, nem sua história heroica, nem a relação entre defeitos e virtudes. Muito menos seu clamor de ser "a verdade". Mas a resposta que dá às grandes questões da vida.
O Deus cristão é de tal forma Santo que seu nome não é pronunciável. Introduziu-se a Moisés como "Eu sou", ou "Eu sou aquele que sou". Nada mais era necessário ser conhecido a respeito de sua identidade que não Suas autosuficiência, radical santidade e atemporalidade. Não lhe deu maiores explicações, mas uma tarefa. Uma vez cumprida, apresenta a proposta de um pacto para com aqueles que libertara, onde Seu lugar era metaforicamente similiar ao dos reis de então, e o do povo, aos vassalos. Felicidade, harmonia, paz, prosperidade eram as consequências do cumprimento por parte dos israelitas.
O Deus cristão não faz longos discursos sobre Si mesmo, mas age. Não explica os grandes mistérios, mas deles toma parte.
Qual a origem última do mal? Não explica. Apenas revela que a raça humana fez/faz uma escolha por ele.
Por que sofremos? Além da óbvia dedução do sofrimento como consequência natural pela escolha do mal, não responde.
Somos capazes de transformar a realidade à imagem dos nossos mais nobres desejos? Não. Teremos poder para fazê-lo? Não. Construiremos uma sociedade perfeita? Não. Teremos poder para usá-lo sem justificativa? Não. Na atual existência, ficaremos livres da Falta, como a descrita pela psicanálise? Não.
Sua resposta é torna-se homem. Eterno, sem ser afetado por noções de passado, presente e futuro, a eles Se submete, como ser humano, assumindo nossos referenciais cronológicos. Sem necessitar de alimento, tem fome. Sem necessitar de abrigo, é desabrigado. Sem necessitar de enfrentar situações limites, as escolhe e as enfrenta. As mais variadas emoções humanas entendidas como negativas vivencia sem contrariar sua santidade enquanto Deus-homem: raiva, decepção, traição, angústia, solidão, luto. Não dá as respostas aos grandes enigmas, mas vivencia-os conosco, assumindo-os como Seus. Retira-lhes a ameaça, geradora de angústia, através da solidariedade profunda conosco.
Que outra religião oferece o mesmo?
Publicado originalmente em www.medicinaeciencia.med.br/fecrista/singularidadefecrista.pdf
A psicanálise coloca a religião como fruto do inconsciente individual ou coletivo, uma criação que nasce de circunstâncias desconhecidas (inconscientes). Deus ou deuses têm características e atitudes que são humanas, e vistas como se não o fossem (mecanismo batizado por Freud como "projeção": ver no outro aquilo que não consigo ver em mim). Ela é uma fonte de crítica feroz a religião em si, mas sem unanimidade dentro da escola freudiana. Já Jung via em toda religião "um sistema terapêutico", o que não significa, necessariamente, endossar alguma, ou aceitar como verdadeira. Os ateístas encontram nela e em outras ferramentas (como a sociologia) argumentos científicos para defender sua afirmativa: nada existe além do ser humano, seja força cósmica, seja um ser maior que possa ser chamado deus.
Sendo construção humana, a religião ocupa um lugar no meio da espécie, que pode ser lúgubre (quando manipulada politicamente) ou muito lindo, quando vivenciada apropriadamente.
Cada religião exclui as outras, à medida que desenha um(ns) deus(es) que exclue(m) outro(s), sob o risco de, não o fazendo, ser(em) uma quimera sem sentido. Propagar-se como síntese de todas é afirmar ser a síntese superior e diferente de cada uma individualmente; ter aspectos de várias religiões não significa abrigar todos os detalhes de todas...
No mercado religioso, há várias "mercadorias" à disposição. Cada um fará sua escolha inicial (inclusive a de não visitar o mercado, para os ateístas), conforme sua cultura, criação, perfil ideológico, identidade, etc. Sempre é possível converter-se, escolher outro referencial. E a adoção de determinado esquema obedece a diversos graus de comprometimento pessoal, desde o meramente social (encontros periódicos como cultos e missas) até o vital (recusa em negar sua religião mesmo ao custo da própria vida). E todas as religiões abrigam fiéis dentro deste amplo espectro, e o martírio não é propriedade exclusiva de nenhuma, assim como as ocorrências sobrenaturais (curas, visões, falar em línguas estranhas, etc).
O que chamo de singular, único, na fé cristã? Não é o número de adeptos nominais, nem sua mensagem de amor, nem sua história heroica, nem a relação entre defeitos e virtudes. Muito menos seu clamor de ser "a verdade". Mas a resposta que dá às grandes questões da vida.
O Deus cristão é de tal forma Santo que seu nome não é pronunciável. Introduziu-se a Moisés como "Eu sou", ou "Eu sou aquele que sou". Nada mais era necessário ser conhecido a respeito de sua identidade que não Suas autosuficiência, radical santidade e atemporalidade. Não lhe deu maiores explicações, mas uma tarefa. Uma vez cumprida, apresenta a proposta de um pacto para com aqueles que libertara, onde Seu lugar era metaforicamente similiar ao dos reis de então, e o do povo, aos vassalos. Felicidade, harmonia, paz, prosperidade eram as consequências do cumprimento por parte dos israelitas.
O Deus cristão não faz longos discursos sobre Si mesmo, mas age. Não explica os grandes mistérios, mas deles toma parte.
Qual a origem última do mal? Não explica. Apenas revela que a raça humana fez/faz uma escolha por ele.
Por que sofremos? Além da óbvia dedução do sofrimento como consequência natural pela escolha do mal, não responde.
Somos capazes de transformar a realidade à imagem dos nossos mais nobres desejos? Não. Teremos poder para fazê-lo? Não. Construiremos uma sociedade perfeita? Não. Teremos poder para usá-lo sem justificativa? Não. Na atual existência, ficaremos livres da Falta, como a descrita pela psicanálise? Não.
Sua resposta é torna-se homem. Eterno, sem ser afetado por noções de passado, presente e futuro, a eles Se submete, como ser humano, assumindo nossos referenciais cronológicos. Sem necessitar de alimento, tem fome. Sem necessitar de abrigo, é desabrigado. Sem necessitar de enfrentar situações limites, as escolhe e as enfrenta. As mais variadas emoções humanas entendidas como negativas vivencia sem contrariar sua santidade enquanto Deus-homem: raiva, decepção, traição, angústia, solidão, luto. Não dá as respostas aos grandes enigmas, mas vivencia-os conosco, assumindo-os como Seus. Retira-lhes a ameaça, geradora de angústia, através da solidariedade profunda conosco.
Que outra religião oferece o mesmo?
Publicado originalmente em www.medicinaeciencia.med.br/fecrista/singularidadefecrista.pdf
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