Palavra do leitor
- 16 de março de 2009
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A igreja do diabo de Machado de Assis
Semelhante a narrativa acerca da reunião celeste ocorrida na introdução do livro de Jó, onde o diabo, satã, capiroto, cramunhão, belzebu, veio conversar com Deus, o Santo dos santos, o Rei dos reis, o Senhor dos senhores, o Alfa e o Ômega, o Amado de nossas almas, o mesmo chifrudo veio tempos depois, na presença do Altíssimo, pedir autorização para abrir uma igreja só para ele.
Conforme Machado relata em uma das suas "histórias sem data", de 1884, a mesma que dá nome ao nosso post, o capeta desejava ardentemente colocar a igreja de Deus à prova, mostrando-lhe que todos os dons e talentos que o Espírito distribuía generosamente a sua noiva, eram trocados facilmente por pratos de lentilhas de um espírito de negação da nova natureza; ou seja, o próprio espírito maligno, mas ambiguamente mantidos em sorrisos amarelos, moralismo e legalismos.
Enfim, satã teve a permissão e saiu para fundar a sua comunidade, pregando assim a sua ‘boa nova’ aos homens. A irmandade crescia bem rápido, tendo a frente à oratória sinistra do pregador e pescador de prosélitos, que trocou todas as virtudes por práticas sínicas e demoníacas de teologias de causa e efeito, e de prosperidades que prometiam aos fiéis as “delícias da terra, todas as glórias e os deleites mais íntimos”.
A igreja do capiroto estava indo de vento em popa, o mundo inteiro a conhecia pela sua catedral da fé que renascia nos corações de seus fiéis seguidores, até que um dia:
“Notou o diabo que muitos dos seus fiéis, às escondidas, praticavam [ainda a sua antiga/nova natureza]. Não as praticavam todas, nem integralmente, mas algumas, por partes, e, como digo, às ocultas (...) muitos avaros davam esmolas, à noite, ou nas ruas mal povoadas; vários dilapidadores de erários (agiotas), restituiam-lhes pequenas quantias; os fraudulentos falavam (banqueiros e políticos) uma ou outra vez, com o coração nas mãos, mas com o mesmo rosto dissimulado, para fazer crer que estavam embaçando os outros (...) entre elas esta, que desorientou completamente o diabo. Um dos seus melhores apóstolos era um calabrês, varão de cinqüenta anos, insigne falsificador de documentos, que possuía uma bela casa na campanha romana, telas, estátua, biblioteca, etc. Era a fraude em pessoa; chegava a meter-se na cama para não confessar que estava são. Pois esse homem, não só furtava ao jogo, como ainda dava gratificações aos criados (...) orava duas vezes ao dia, ao ajoelhar-se, e ao levantar-se. O diabo mal pôde crer tamanha aleivosia. Mas não havia que duvidar; o caso era verdadeiro” – parênteses e colchetes nosso.
Desnorteado com tanta revelação desagradável, o diabo “voou de novo ao céu, trêmulo de raiva, ansioso de conhecer a causa secreta de tão singular fenômeno. Deus ouviu-o com infinita complacência; não o interrompeu, não o repreendeu, não triunfou, sequer, daquela agonia satânica. Pôs os olhos nele, e disse-lhe:
- Que queres tu, meu pobre diabo? As capas de algodão têm agora franjas de seda, como as de veludo tiveram franjas de algodão. Que queres tu? É a eterna contradição humana”
Contradição esta que tem muito sentido para Machado no que ele quis transmitir sobre a natureza humana, mas como ilustração para nós, ou quem sabe, espelho para a nossa realidade, não do enigma da graça que nos convence, pelo Espírito, a voltarmos, como filhos pródigos, para a casa do pai, mas no exemplo negativo dos nossos desejos egoístas de construção de catedrais em nossos corações, que desejam tudo, menos a coerência do amor em serviço ao Dono e Senhor da Igreja.
Dentro dessa contradição, ou paradoxo, como Antonio Ferreira diz ao refletir sobre o conceito de eclesiologia: “O Cristão é um participante na vida em Cristo, tanto em seu sofrimento e crucificação, quanto pelo batismo, em novidade de vida. Desse modo, os muitos são incluídos em Um só, Cristo, sem perda de identidade individual. O corpo é Cristo e, contudo, Ele é a cabeça do corpo; o corpo é inseparável da cabeça e, contudo, distinto dele. Para propósitos práticos da fé e experiência, pois, pode-se bem dizer: quem está ‘em Cristo’ está no corpo de Cristo, a Igreja, e quem está no corpo, como pessoa verdadeiramente crente, está “em Cristo”. Mas o corpo e seus membros não tem ainda atingido a plenitude em Cristo, o cabeça (...) tais coisas são um paradoxo (...), mas somente dentro do paradoxo pode a Igreja continuar a viver”.
Dessa forma, sou esse paradoxo, sou essa contradição, até que pelo maravilhoso amor divino, essa capa de veludo seja despida na plenitude daquele que nos sustenta e perdoa nossas falhas humanas, tudo pela infinita e misteriosa graça de seu Cristo.
www.roberas.blogspot.com
Conforme Machado relata em uma das suas "histórias sem data", de 1884, a mesma que dá nome ao nosso post, o capeta desejava ardentemente colocar a igreja de Deus à prova, mostrando-lhe que todos os dons e talentos que o Espírito distribuía generosamente a sua noiva, eram trocados facilmente por pratos de lentilhas de um espírito de negação da nova natureza; ou seja, o próprio espírito maligno, mas ambiguamente mantidos em sorrisos amarelos, moralismo e legalismos.
Enfim, satã teve a permissão e saiu para fundar a sua comunidade, pregando assim a sua ‘boa nova’ aos homens. A irmandade crescia bem rápido, tendo a frente à oratória sinistra do pregador e pescador de prosélitos, que trocou todas as virtudes por práticas sínicas e demoníacas de teologias de causa e efeito, e de prosperidades que prometiam aos fiéis as “delícias da terra, todas as glórias e os deleites mais íntimos”.
A igreja do capiroto estava indo de vento em popa, o mundo inteiro a conhecia pela sua catedral da fé que renascia nos corações de seus fiéis seguidores, até que um dia:
“Notou o diabo que muitos dos seus fiéis, às escondidas, praticavam [ainda a sua antiga/nova natureza]. Não as praticavam todas, nem integralmente, mas algumas, por partes, e, como digo, às ocultas (...) muitos avaros davam esmolas, à noite, ou nas ruas mal povoadas; vários dilapidadores de erários (agiotas), restituiam-lhes pequenas quantias; os fraudulentos falavam (banqueiros e políticos) uma ou outra vez, com o coração nas mãos, mas com o mesmo rosto dissimulado, para fazer crer que estavam embaçando os outros (...) entre elas esta, que desorientou completamente o diabo. Um dos seus melhores apóstolos era um calabrês, varão de cinqüenta anos, insigne falsificador de documentos, que possuía uma bela casa na campanha romana, telas, estátua, biblioteca, etc. Era a fraude em pessoa; chegava a meter-se na cama para não confessar que estava são. Pois esse homem, não só furtava ao jogo, como ainda dava gratificações aos criados (...) orava duas vezes ao dia, ao ajoelhar-se, e ao levantar-se. O diabo mal pôde crer tamanha aleivosia. Mas não havia que duvidar; o caso era verdadeiro” – parênteses e colchetes nosso.
Desnorteado com tanta revelação desagradável, o diabo “voou de novo ao céu, trêmulo de raiva, ansioso de conhecer a causa secreta de tão singular fenômeno. Deus ouviu-o com infinita complacência; não o interrompeu, não o repreendeu, não triunfou, sequer, daquela agonia satânica. Pôs os olhos nele, e disse-lhe:
- Que queres tu, meu pobre diabo? As capas de algodão têm agora franjas de seda, como as de veludo tiveram franjas de algodão. Que queres tu? É a eterna contradição humana”
Contradição esta que tem muito sentido para Machado no que ele quis transmitir sobre a natureza humana, mas como ilustração para nós, ou quem sabe, espelho para a nossa realidade, não do enigma da graça que nos convence, pelo Espírito, a voltarmos, como filhos pródigos, para a casa do pai, mas no exemplo negativo dos nossos desejos egoístas de construção de catedrais em nossos corações, que desejam tudo, menos a coerência do amor em serviço ao Dono e Senhor da Igreja.
Dentro dessa contradição, ou paradoxo, como Antonio Ferreira diz ao refletir sobre o conceito de eclesiologia: “O Cristão é um participante na vida em Cristo, tanto em seu sofrimento e crucificação, quanto pelo batismo, em novidade de vida. Desse modo, os muitos são incluídos em Um só, Cristo, sem perda de identidade individual. O corpo é Cristo e, contudo, Ele é a cabeça do corpo; o corpo é inseparável da cabeça e, contudo, distinto dele. Para propósitos práticos da fé e experiência, pois, pode-se bem dizer: quem está ‘em Cristo’ está no corpo de Cristo, a Igreja, e quem está no corpo, como pessoa verdadeiramente crente, está “em Cristo”. Mas o corpo e seus membros não tem ainda atingido a plenitude em Cristo, o cabeça (...) tais coisas são um paradoxo (...), mas somente dentro do paradoxo pode a Igreja continuar a viver”.
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